O mais recente relatório do Ministério para a Propagação da Virtude e Prevenção do Vício, divulgado à imprensa no dia 20 de agosto de 2024, jogou luz sobre uma série de questões sobre os novos rumos que o Afeganistão está tomando com o Talibã no poder.
No relatório constavam as seguintes ações realizadas pelo governo no último ano:
Embora tenham sido apresentados alguns dados que indicam avanços sociais, como a coibição do tráfico de drogas, prevenção da violência contra a mulher, o direito à herança e o combate ao casamento forçado, o país ainda vive um momento socioeconômico dramático.
A principal e mais frequentemente abordada questão é a forma como as mulheres são tratadas pelo governo, sobretudo pela falta de acesso à educação e, consequentemente, à ocupação no mercado de trabalho.
Soma-se a isso o severo subdesenvolvimento do Afeganistão. De acordo com o International Rescue Committee, a pobreza já atinge 90% da população, e a ajuda humanitária é hoje o principal fator que sustenta a economia afegã.
A capacitação profissional das mulheres por meio da educação poderia ser uma das saídas para implementar o desenvolvimento no país.
Mas a pressão internacional não foi capaz de mudar o posicionamento do Talibã sobre essas, e até mesmo sobre outras questões de sua legislação, consideradas rígidas e contrárias aos direitos humanos.
Diante desta situação, chama a atenção o fato de que o Afeganistão, que se encontra em extrema miséria, persista neste modelo que afasta não apenas novos investimentos econômicos.
Atualmente, nenhum país reconhece o Talibã como governo legítimo do Afeganistão, embora alguns possuam relações diplomáticas com Cabul.
Embora o alinhamento geopolítico dos países interfira bastante nisso, as decisões tomadas pelos talibãs, que contrariam os direitos humanos, contribuem bastante para esse isolamento.
Além disso, paira a dúvida se, de fato, as recentes medidas divulgadas pelo Talibã estão surtindo algum efeito para reverter este cenário catastrófico deixado pelos vários anos de guerra.
Uma das mudanças mais eficientes do governo Talibã até aqui certamente foi a redução da corrupção.
Em 2021, último ano de avaliação do governo apoiado pelos EUA antes do Talibã, o país estava em 174º lugar no ranking de corrupção da Transparência Internacional.
Subiu para a posição de 150 em 2022 e atualmente está em 162º lugar. Vale destacar que, em todos os cenários, o índice coloca o Afeganistão na categoria de países altamente corruptos.
No entanto, a mudança foi eficiente para aumentar a receita tributária do país, que, de acordo com o Banco Mundial, atingiu US$ 1,9 bilhões em exportação no ano de 2023.
Outras medidas impactaram a economia de forma negativa, como, por exemplo, os esforços do novo governo no combate ao plantio de papoula, que foi reduzido em 95%.
Este mercado era, até então, monopolizado pelo Afeganistão, que, até 2019, era produtor de 84% do ópio em circulação no planeta, segundo o relatório "World Drug Report 2020" da ONU.
Tais medidas, no entanto, podem ser consideradas a ação de combate às drogas mais bem-sucedida da história do país, levando a produção de opioides à escassez no mundo inteiro.
O Talibã tem buscado diversificar seus acordos internacionais, mas obteve poucos avanços até este momento.
O principal deles foi um acordo com a China para extração de cobre na mina Aynak Mas em julho de 2024, porém, até aqui, a extração não teve início. A licença, no entanto, tem o prazo de 15 anos.
Outro acordo, que deve ser concluído em breve, é para estabelecer o programa Central Asia-South Asia Electricity Transmission and Trade Project (CASA), que envolve uma parceria entre Afeganistão, Paquistão, Quirguistão e Tajiquistão para contribuir com a produção de energia elétrica em toda a região.
Também está em andamento o acordo para restabelecer o gasoduto Turcomenistão-Afeganistão-Paquistão-Índia (TAPI).
O Afeganistão viveu três períodos de guerra praticamente ininterruptos desde 1979. Isso contribuiu para uma crise severa nos direitos humanos no país, que parece estar longe de ser solucionada.
Durante a ditadura apoiada pelos soviéticos, o país sofreu uma dura repressão aos opositores, com muitos presos, torturados e mortos.
Além disso, no período da Revolução Saur, os religiosos enfrentaram restrições à sua liberdade de culto, o que em parte motivou a insurgência de grupos conservadores.
As violações não cessaram durante o governo apoiado pelos Estados Unidos a partir de 2004, quando a ocupação americana cometeu uma série de ataques, execuções de prisioneiros, torturas, estupros e tratamentos humilhantes contra civis.
Os EUA foram criticados por grupos de direitos humanos, como a Human Rights Watch e uma comissão independente de direitos humanos do Afeganistão, por aplicarem punições brandas aos militares criminosos.
Muitos desses abusos tiveram a participação das Forças de Segurança Nacional do Afeganistão, leais aos EUA.
Além disso, os EUA apoiaram diversos líderes jihadistas de facções rivais ao Talibã.
Após tantas décadas de violações sistemáticas aos direitos humanos, o governo do Talibã parece se sentir pouco inclinado a cumprir determinações vindas de países que, há poucos anos, estavam envolvidos nas agressões contra o Afeganistão.
Esse posicionamento do novo governo, no entanto, implica uma série de novas consequências para a população.
De acordo com o relatório da Freedom House, a oposição política foi completamente banida do país, e houve também "execuções sumárias de ex-membros da segurança, supostos críticos e aqueles vistos como apoiadores da resistência armada".
A situação das mulheres é outra questão bastante preocupante, segundo o mesmo relatório, que menciona restrições ao emprego de mulheres, além de proibir a educação secundária e terciária para elas e não permitir que elas viajem por longas distâncias desacompanhadas de um parente masculino.
As únicas instituições que oferecem educação às mulheres são as escolas religiosas, que, de acordo com a Associated Press, somam cerca de 20 mil espalhadas por todo o país.
As minorias religiosas no Afeganistão são basicamente ramos do Islã com menos adeptos, como o salafismo e o xiismo.
Os xiitas sofreram algumas restrições de culto, sendo orientados a celebrar festividades sagradas em locais determinados pelo Talibã.
Salafistas sofreram detenções, torturas e execuções, normalmente acusados de terem ligações com o grupo terrorista Estado Islâmico (ISKP), que o Talibã se esforça para combater e reprimir.
Todos os índices de direitos humanos apresentados no relatório são muito baixos, e o Afeganistão é considerado um país não livre, obtendo uma pontuação geral de 6 em 100.
Sinalizar políticas em favor dos direitos humanos poderia ser uma forma de o Talibã se posicionar melhor no cenário geopolítico, ter sua legitimidade internacional reconhecida e, consequentemente, facilitar novos acordos para reerguer o país devastado pela guerra e pela pobreza.
No entanto, essa agenda foi, por anos, utilizada para minar a autodeterminação do Afeganistão.
Como aponta o analista e historiador afegão Ahmed-Waleed Kakar, questões relacionadas aos direitos humanos foram, desde a época da monarquia, colocadas em antagonismo com os valores religiosos e culturais do Afeganistão.
Na era do rei Amanullah Khan, a obrigatoriedade das mulheres frequentarem a escola veio acompanhada de outras leis, como a proibição do véu islâmico e da poligamia, o que apontava para o modelo europeu como um estilo de vida ideal para os afegãos.
Essas medidas foram extremamente impopulares, e Amanullah acabou sendo deposto, e suas políticas de governo foram suspensas.
Anos mais tarde, a ditadura de Taraki, apoiada pela União Soviética, foi além nas medidas para secularizar o Afeganistão.
Ele proibiu a poligamia, perseguiu, prendeu e matou imames, e tentou instituir uma campanha para criar uma religiosidade mais progressista e livre do que ele chamava de "más superstições".
Mais uma vez, o governo afegão colocava os costumes ocidentais como antagonistas dos valores afegãos, gerando atrito com parte significativa da população, que desejava manter suas tradições como as conceberam.
É nesse contexto que surgem os primeiros grupos islamistas de mujahedins, que viriam a enfrentar o governo socialista na guerra civil afegã.
Já durante a invasão americana, o erro de tentar erradicar os costumes islâmicos não foi repetido, mas houve uma tentativa de moldar a religião conforme os costumes ocidentais.
Enquanto os EUA reinstauravam as escolas seculares abertas para as mulheres, isso vinha acompanhado de uma educação que ensinava o Islã tradicionalista e globalmente neutro.
Na prática, isso foi um modo dos EUA introduzirem uma forma de religiosidade que convergia com seus interesses no país e neutralizava a influência do Talibã na educação popular.
Enquanto essa nova forma de perceber a religião era propagada no Afeganistão, os EUA ocupavam militarmente o país, naquela que foi a invasão americana mais longa da história.
Essa contradição foi mais uma vez percebida pelo grupo fundamentalista como uma ameaça do secularismo contra a religiosidade e a cultura afegã.
O Talibã e boa parte dos afegãos sempre perceberam os direitos humanos como antagonistas aos princípios islâmicos, pois, desde os primórdios da história moderna do Afeganistão, os afegãos foram apresentados ao tema dessa forma.
Além disso, durante a guerra contra os russos, os americanos deram suporte aos mujahedins com vários materiais pedagógicos altamente fundamentalistas por 12 anos.
Uma geração inteira de pessoas cresceu no país sendo ensinada que valores como os do Talibã são melhores para a sociedade.
Por fim, Ahmed-Waleed Kakar conclui que, após uma década, os EUA voltaram atrás e tentaram ensinar à população que todos aqueles valores que eles apoiaram por anos estavam, na verdade, errados.
O chefe de justiça afegão Abdul-Hakim Haqqani se mostra favorável a assuntos como, por exemplo, a educação das mulheres; no entanto, esse é um ponto de disputa dentro do núcleo principal do Talibã.
Este é um assunto que ainda terá muitos desenvolvimentos, que certamente irão impactar o futuro do Afeganistão.
-The Taliban’s three years in power and what lies ahead: https://www.brookings.edu/articles/the-talibans-three-years-in-power-and-what-lies-ahead/
-CORRUPTION PERCEPTIONS INDEX: https://www.transparency.org/en/cpi/2023
-AFGHANISTAN ECONOMIC MONITOR: https://thedocs.worldbank.org/en/doc/804528b1d98fc6a3012fb1754ba4bd45-0090012024/original/Afghanistan-Economic-Monitor-January-2024-002.pdf
- 3 Drug Suply: World Drug Report 2020: https://wdr.unodc.org/wdr2020/field/WDR20_Booklet_3.pdf
-Taliban official says Afghan girls of all ages permitted to study in religious schools: https://apnews.com/article/afghanistan-taliban-girls-madrassas-d168979fb443a910407652c3ef073a79
-U.N. says over 100 ex-Afghan officials have been slain since the Taliban's takeover: https://www.npr.org/2022/01/31/1077003325/united-nations-afghanistan-taliban-takeover-extrajudicial-killings
-FREEDOM IN THE WORLD 2024: https://freedomhouse.org/country/afghanistan/freedom-world/2024
-Afghanistan’s Century of Politicised Education: https://afghaneye.org/2022/12/21/afghanistan-girls-education/
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