Autor: Sh. Abdal Hakim Murad (1999)
“O Profeta disse que as mulheres dominam totalmente os homens de intelecto e possuidores de coração. Mas os homens ignorantes dominam as mulheres, pois estão acorrentados por uma ferocidade animal. Eles não têm bondade, gentileza ou amor, uma vez que a animalidade domina sua natureza. Amor e bondade são atributos humanos; a raiva e a sensualidade pertencem aos animais. Ela é o brilho de Deus, ela não é sua amada. Ela é uma criadora – você poderia dizer que ela não foi criada.”
– Jalal al Din Rumi
“ A mulher-eunuco de 1969 não era nada além de útero. A mulher-eunuco de 1997 não tem útero.”
– Germaine Greer
Os homens não podem mais escrever sobre as mulheres? Nosso discurso sempre irá falaciosamente subjetivar o masculino, como o dígito Lacaniano ao zero feminino? Andrea Dworkin e muitos outros são insistentes aqui. E, no entanto, o teólogo deve se opor a tal fechamento com não menos estridência. Ninguém deve reivindicar o direito monológico de instruir o outro sexo sobre o pensamento e a conduta moral. Além disso, e não menos seriamente, devemos nos opor a esse aspecto anti-dialógico do feminismo acadêmico predominante que, apoiado por notas de rodapé biométricas, propõe que os homens nada têm a dizer aqui porque o verdadeiro “pensamento feminino” é, em todos os níveis, categoricamente diferente do pensamento masculino. Nessa visão, a diferença sexual não apenas cria uma predisposição para se interessar por certos tipos de questões, mas afeta fundamentalmente todas as maneiras com as quais lidamos com conceitos. Os conhecimentos são sexualizados, dizem; “A própria maneira como decidimos o que é verdadeiro e falso é uma função da diferença sexual”.
Uma reação contra essa visão é expressa em detalhes por Jean Curthoys em seu novo livro Feminist Amnesia. Ela aplica uma espécie de fundamentalismo Friedanita, lamentando o recente declínio da teoria feminista radical dos anos 60 e 70, que se baseava em garantias de identidade entre os sexos ao invés de mera igualdade. O feminismo acadêmico convencional hoje, ela afirma, baseia-se na biologia recente para postular uma descontinuidade epistêmica total entre masculino e feminino, de modo que todo o saber e todas as conclusões sobre a realidade são consequentemente bifurcadas, excluindo toda possibilidade de diálogo através do abismo de gênero. Essa cessação aporética, ela insiste, é intolerável.
É claro que há força em sua reclamação. Mas, igualmente claro, ela e seus antagonistas vão longe demais. Biólogos e filósofos agora convergem para uma posição mediana, o que sugere que homens e mulheres realmente pensam de maneira diferente, mas não tão diferente a ponto de não poderem julgar as conclusões uns dos outros. Não são apenas as implicações práticas que tornam essa inferência inescapável (poderíamos tolerar, por exemplo, enciclopédias separadas para cada sexo?). Mais seriamente, a reivindicação de aporia deve ser rejeitada como parte de uma recente virada feminista da própria racionalidade como um produto opressor e ferramenta de “linearidade masculina”. Nessa visão, o discurso das mulheres, cético sobre as tentativas de deduzir quaisquer fatos intrinsecamente verdadeiros sobre a realidade, é, portanto, eminentemente responsivo ao projeto do pós-modernismo, enquanto os homens definham em meio aos jogos racionalizantes da modernidade tardia. Essa tese do atraso masculino é intrigante e atraiu muitos; ainda permanece sem prova persuasiva. Como os Maturidis insistem, a racionalidade e a moralidade são observadas pela mente, não apenas construídas por ela. Seria este escrúpulo uma “objetificação masculina linear”? Certamente, é uma objetificação justa: afirmar que as mulheres têm uma abordagem categoricamente mais indireta, empática e espontânea da realidade pode ser equivalente a afirmar que elas são menos capazes de argumentar com base em fatos. Tal conclusão está longe de ser universal entre as feministas, pois converge para um certo estereótipo masculino. Claro, é quase certo que, como argumentou a professora Carol Gilligan, as respostas éticas diferem de maneira evidente entre os sexos. Para ela, as mulheres “tomam decisões morais em uma estrutura de relacionamentos mais do que em uma estrutura de direitos”. O “processamento moral das mulheres é contextualmente orientado”. Isso é incontroverso. Mas julgamentos de valor em meio ao tumulto da realidade vivida são uma coisa; grandes generalizações sobre a natureza do mundo são outra bem diferente. E neste último campo, nem a revelação, nem a razão nos convencem de que os dois estilos de argumento, o masculino e o feminino, não podem se sobrepor.
O que se segue, portanto, não é uma apologia androcêntrica, embora um discurso masculino deliberado ou mesmo involuntário seja inevitável e não seja inerentemente impróprio. Afirma ser factual, não uma visão auto-autêntica de dentro de um jogo de linguagem específico “de gênero”.
Um segundo ponto preliminar levanta todo o problema das abordagens de gênero à espiritualidade. O filósofo religioso britânico John Hick, em um momento recente de reflexão feminista, propôs que “por causa dos efeitosdas culturas patriarcais sobre elas, muitas mulheres têm egos ‘fracos’, sofrem de um complexo de inferioridade arraigado e são tentadas à difusão e à trivialidade”. Ele sugere, portanto, que as mulheres têm maiores dificuldades para se tornarem santas porque a luta espiritual só pode ser empreendida por uma personalidade coerente e confiante. Nessa visão, as mulheres devem passar por dois estágios para alcançar a santidade, enquanto os homens passam por apenas um.
Uma pequena reflexão revelará que esta posição sofre de dois problemas agudos. Para começar, ele apresenta um estereótipo não examinado de mulheres tradicionais como superficiais e facilmente distraídas; considerando que qualquer observação da presença de mulheres em, digamos, salat, ou um mevlud turco, sugere que o comportamento devocional das mulheres tende a ser não menos sóbrio, focado ou direcionado do que o dos homens. Frequentemente, são as mulheres, e não os homens, que mantêm uma fé mais séria sob as condições de secularização, embora isso possa florescer na privacidade de casa, em vez de estar sob o escrutínio público na mesquita. Em segundo lugar, implica que o crescimento espiritual é um procedimento discursivo principalmente mecânico pelo qual a vontade supera a paixão, levando ao desapego do mundo que é a pré-condição para a santidade. Isso levanta algumas questões fundamentais sobre a vida espiritual; a visão de Hick pode ser válida para algumas formas de Cristianismo e Hinduísmo, mas não pode ser aplicada a muitas outras variedades de desenvolvimento religioso, onde a vontade consciente e calculista é deliberadamente colocada em segundo plano. Especificamente, o que é caracteristicamente masculino no misticismo baseado no amor? A insistência de que a mente é uma prisão e que a emoção e o amor espontâneo de Deus, desencadeados por práticas relativamente informais do tipo dhikr, são um lugar-comum até mesmo na espiritualidade “masculina”. Aqui, por exemplo, tem um poema de Rumi:
“No vendaval estridente do Amor, o intelecto é um mosquito.
Como podem os intelectos encontrar espaço para vagar lá?”
E, de novo:
“Não permaneça um homem de intelecto entre os amantes, especialmente se você ama aquele Amado de rosto doce.
Que os homens de intelecto fiquem longe dos amantes, que o cheiro de esterco fique longe do vento leste!
Se um homem de intelecto entrar, diga-lhe que o caminho está bloqueado, mas se um amante vier, dê-lhe cem saudações!
No momento em que o intelecto deliberou e refletiu, o amor voou para o sétimo céu.
No momento em que o intelecto encontrou um camelo para o hajj, o amor circundou a Caaba.
O amor veio e cobriu minha boca.
Diz: ‘Jogue fora sua poesia e venha para as estrelas!’”
Talvez um teólogo protestante moderno tenha problemas com isso, mas a maioria das religiões tradicionais presume que o caminho para Deus é através do coração, não da mente. Então, a ideia de Hick de que o “patriarcado” bate a porta para Deus na cara das mulheres tradicionais, simplesmente porque elas são (supostamente) menos cerebrais do que os homens, parece claramente pouco convincente. Ele é simplesmente uma vítima de suas próprias limitações culturais e denominacionais.
Com esses pontos preliminares em mente, passemos agora à questão central. As escritoras modernas sobre religião, como Rosemary Ruether, insistem que toda conversa sobre gênero nas religiões deve começar no início, com os arquétipos. O que as imagens de Deus nos dizem sobre o lugar do homem e da mulher no mundo?
Em seu livro Sexism and God-Talk, Ruether faz objeções às maneiras pelas quais as metáforas cristãs sobre a masculinidade de Deus são interpretadas literalmente. Para ela, a proibição de idolatria do Decálogo “deve ser estendida a imagens verbais. Quando a palavra ‘Pai’ é interpretada literalmente como significando que Deus é homem e não mulher, representado por homens e não mulheres, então essa palavra se torna idólatra”. Ela reconhece que a doutrina cristã afirma que toda linguagem sobre Deus é análoga. No entanto, o uso de termos masculinos para a Realidade Suprema e a ênfase caracteristicamente cristã na pessoalidade de Deus têm resultado regularmente neste tipo de idolatria. Sua solução é incentivar o uso de uma linguagem inclusiva, de modo que Deus seja referido de vez em quando como a “Deusa” ou como “Ela”. Ruether até se opõe à ideia de Deus como pai, sugerindo, sem dúvida logicamente, que isso encoraja o que ela chama de uma virtude do infantilismo espiritual que torna “a autonomia e a afirmação do livre-arbítrio um pecado”.
Apesar de sua confiança prometeica em sua capacidade de revisar a tradição, Ruether foi notoriamente ultrapassada por Mary Daly, uma ex-teóloga católica que agora, como várias feministas influentes, se descreve como uma “bruxa”. Seu livro Beyond God the Father rejeita até mesmo as possibilidades metafóricas da linguagem tradicional. Chamar Deus de Pai, ela insiste, é chamar os pais de Deus. A Trindade é, portanto, revelada como “uma eterna orgia homossexual masculina”. Como a matriz geradora do mundo, Deus é, de fato, paradigmaticamente feminino. E o próprio mundo, como espelho do céu, “dá frutos” e, portanto, também é feminino. O princípio masculino é a força estranha, o nexo de ruptura, agressão e pecado. Daly parece se aproximar da noção quase dualística de que Deus é mulher, enquanto o diabo com “chifres” é homem. Este Maniqueísmo de gênero pode parecer uma inversão bizarra do androcentrismo de Agostinho, mas seus livros são extremamente influentes, vendendo centenas de milhares de cópias.
Nem toda representação do divino é androcêntrica, é claro. Luce Irigaray observa que é no Ocidente que “o gênero de Deus, o guardião de todo sujeito e discurso, é sempre paterno e masculino”. Mesmo a Ortodoxia é mais aporética em sua generalização metafórica do sagrado. As pinturas de El Greco, na medida em que refletem sua trajetória desde a pintura-ícone atemporal de sua Creta natal, passando por seus estudos em Veneza com Tintoretto até a Toledo da Contra-Reforma, revelam um processo de crescente concretização, com crescente atenção a perspectiva, expressão e nitidez de forma. Seu Cristo, em suas pinturas “católicas” tardias, é mais humano do que divino e, portanto, mais humano e autenticamente masculino.
Nesse aspecto, talvez mais do que em qualquer outro, a nossa tradição não é ocidental.
A teologia islâmica nos confronta com a espetacular ausência de uma divindade de gênero. Uma teologia que revela o divino por meio da encarnação em um corpo também o localiza em um gênero e, inescapavelmente, julga o outro sexo. Uma teologia que o localiza em um livro não faz julgamentos sobre gênero; já que os livros não são sexuados. O divino permanece divino, isto é, sem gênero, mesmo quando expresso de uma forma totalmente salvadora na terra.
A fonte deste ensino não é problemática para os crentes. Os historiadores seculares podem ver isso de forma diferente, como uma confirmação de que o Islam primitivo não foi definido por aliança. Visões andromórficas do divino eram necessárias para o Judaísmo, que era constituído comunitariamente em oposição ao culto da deusa vizinha, de onde a imagem de Israel como “noiva de Deus”. Isso continuou na igreja cristã, a “Noiva Israel”, a “noiva de Cristo”, à medida que os Padres da Igreja travavam guerra contra os cultos das deusas da antiguidade tardia e também, cada vez mais, contra a própria “mulher” como o paradigma da responsabilidade para a queda. Mas a comunidade de crentes do Islam nunca se viu como uma entidade feminina, apesar das ressonâncias matronais interessantes do termo “umma”. A compreensão islâmica da história da salvação não exigia que Allah fosse construído como um homem.
Do ponto de vista de um teólogo, pode-se dizer que o Islam evita a dificuldade identificada por Ruether por meio de sua ênfase na transcendência divina (tanzih). A mesma diferença abstrata “desértica” do Deus muçulmano que atrai a reprovação dos comentaristas cristãos também permite uma imagem neutra do divino em termos de gênero. Allah não é neutro ou andrógino, simplesmente está acima do gênero. Até o judaísmo, que geralmente tem menos problemas nessa área do que o cristianismo, não vai tão longe. Nas Dezoito Bênçãos ditas por judeus piedosos todas as manhãs e noites, encontramos as palavras: “Faze-nos retornar, ó nosso Pai, à tua Lei”, enquanto em Deuteronômio 8.6, lemos: “Como um homem disciplina seu filho, o Senhor, seu Deus, O disciplina”.
Essas referências a Deus como Pai são menos comuns no Antigo Testamento do que no Novo, mas ainda são abundantes e são um espinho no caminho dos teólogos liberais sensíveis ao gênero.
Quando nos voltamos para o Alcorão, encontramos uma imagem da Divindade apofaticamente despojada de metáfora. Deus é simplesmente Allah, o Deus, nunca pai. O divino é referido pelo pronome masculino: Allah é Ele (huwa), mas os gramáticos e exegetas concordam que isso nem mesmo é alegórico: o árabe não tem neutro e o uso do masculino é normal em árabe para substantivos sem gênero. Nenhuma preponderância masculina está implícita, assim como a feminilidade não está implícita no gênero gramaticalmente feminino dos plurais neutros.
O moderno teólogo jordaniano Hasan al-Saqqaf enfatiza o ponto que a teologia muçulmana tem apresentado consistentemente ao longo dos tempos: Deus não tem gênero, real ou metaforicamente. O Alcorão continua as suposições bíblicas em muitos níveis, mas aqui há uma descontinuidade impressionante. A imagem de Deus foi transferida para um registro novo e bipolar, o dos Noventa e Nove Nomes.
As mulheres muçulmanas que refletiram sobre a questão de gênero se agarraram, acho que com boas razões, a esse ponto surpreendente. Por exemplo, uma escritora muçulmana, Sartaz Aziz, escreve:
“Sou profundamente grata que minhas primeiras ideias sobre Deus foram formadas pelo Islam porque fui capaz de pensar no Mais Alto Poder como alguém completamente sem sexo ou raça e, portanto, completamente antipatriarcal…”
Começamos com a ideia de uma divindade que está completamente acima da identidade sexual e, portanto, completamente fora do sistema de valores criado pelo patriarcado.
Esta passagem é citada pela escritora católica moderna, Maura O’Neill, que escreve sobre questões femininas em diálogo e que corretamente conclui: “Os muçulmanos não usam um Deus masculino como uma ferramenta consciente ou inconsciente na construção de papéis de gênero”.
Isso não significa que o gênero esteja ausente da metafísica muçulmana. Os estudiosos do kalam, como bons transcendentalistas, baniram-no do mundo não físico. Mas os místicos, como imanentistas, leem isso em quase tudo. Podemos dizer que, enquanto no Cristianismo a relacionalidade está na Trindade Divina e é explicitamente masculina, no Islam, a relacionalidade está ausente na Divindade, mas existe exuberantemente nos Nomes. Para usar os termos de Kant, o Deus numenal é neutro, enquanto o Deus fenomenal se manifesta não em um, mas em dois gêneros. Os dois principais estudiosos modernos desta tradição no pensamento islâmico são Izutsu e Murata, que observaram os paralelos entre a cosmologia dinâmica do Sufismo e a visão de mundo taoísta: cada um vê a existência como uma interação dinâmica de opostos, que em última análise se resolvem com o Um.
Os metafísicos sufis estavam recorrendo a uma distinção de longa data entre os Nomes Divinos que eram chamados de Nomes da Majestade (jalal) e os Nomes da Beleza (jamal). Os Nomes de Majestade incluíam Allah como Poderoso (al-Qawi), Irresistível (al-Jabbar), Juiz (al-Hakam); e estes eram vistos como preeminentemente masculinos. Os nomes da Beleza incluíam o Todo-Compassivo (al-Rahman), o Moderado (al-Halim), o Amoroso (al-Wadud) e assim por diante, visto como arquetipicamente femininos. O ponto crucial é que nenhum dos conjuntos poderia ser visto como preeminente, pois todos eram igualmente nomes de Deus. Na verdade, de longe, o mais notável dos Nomes Divinos no Alcorão é al-Rahman, o Todo-Compassivo. E as ressonâncias explicitamente femininas deste nome foram observadas pelo próprio Profeta, que ensinou que “rahma”, “compaixão amorosa”, é um atributo derivado da palavra “rahim”, que significa “útero”. (Bukhari, Adab, 13) A matriz cósmica da qual o ser diferenciado é formado é, portanto, como em todos os sistemas primordiais, explicitamente feminina, embora Allah “an sich” [númeno] permaneça fora da qualificação por gênero ou por qualquer outra propriedade.
Uma confirmação adicional para isso é fornecida em um famoso hadith, preservado para nós por al-Bukhari, que descreve como, durante a conquista muçulmana de Meca, uma mulher corria sob o sol quente em busca de seu filho. Ela o encontrou e apertou-o contra o peito, dizendo: “Meu filho, meu filho!”. Os Companheiros do Profeta viram isso e choraram. O Profeta ficou encantado ao ver o rahma deles e disse: “Você se indaga sobre o rahma desta mulher para seu filho? Por Aquele em Cuja mão está minha alma, no Dia do Juízo, Deus mostrará mais rahma para Seu servo crente do que esta mulher mostrou a seu filho” (Bukhari, Adab, 18).
E novamente: “No dia em que Ele criou os céus e a terra, Deus criou cem rahmas, cada um dos quais é tão grande quanto o espaço que fica entre o céu e a terra. E Ele enviou um rahma para a Terra, pelo qual uma mãe tem rahma para seu filho” (Muslim, Tawba, 21).
Com base nesta identificação explícita de rahma com o aspecto “maternal” do divino fenomenal, a tradição desenvolvida do Sufismo habitualmente identifica todo o aspecto criativo de Deus como “feminino” e como misericordioso. A própria criação é o nafas al Rahman, a Respiração do Todo-Compassivo. Aqui, o ocasionalismo Asharita, que insiste em preservar a onipotência divina, negando a causação secundária, é deslocado para um registro místico e matronal, onde o mundo da emanação é generalizado pelo simples fato de sua geração. “Criamos tudo aos pares”, diz o Alcorão.
Este aspecto “feminino” de Deus permitiu que a maioria dos grandes poetas místicos se referissem a Deus como Layla – o amado celestial – o nome árabe Layla, na verdade, significa “noite”. Layla é o Deus velado e obscuramente desconhecido que traz vida e cuja beleza, uma vez revelada, deslumbra o amante. Em um ramo dessa tradição, os poetas usam uma linguagem francamente erótica para transmitir o êxtase do caminhante espiritual enquanto ele levanta o véu – uma metáfora para distração e pecado – para ser aniquilado em sua Amada.
Pensa-se aqui no misticismo nupcial cristão mas, ao contrário, Santa Teresa de Ávila parece usar imagens sensuais para transmitir sua união com Cristo. Mas, novamente, Cristo, como Deus Filho, é homem. No misticismo islâmico, a amada divina é “mulher”.
O kalam, portanto, abole o gênero; a espiritualidade a implanta exuberantemente como metáfora, exibindo assim um aspecto da distinção entre ‘iman’ e ‘ihsan’. O terceiro componente do ternário estabelecido pelo Hadith de Gabriel, ‘islam’, que compreende as formas externas da religião, também reconhece e afirma o gênero como uma qualidade fundamental da existência, e isso encontra expressão em muitas disposições da lei islâmica e das normas da vida Muçulmana.
O padrão de vida decretado pelo Islam, que é a recuperação da Grande Aliança (mithaq), é primordial e, portanto, biofílico e afirmativo das dimensões hormonais e genéticas da humanidade. Corpo, mente e espírito são aspectos do mesmo fenômeno criado e são todos classificados em gênero por meio de sua inter-relação. À medida em que a criatura humana vive em totalidade, sua essência espiritual é dotada de gênero, daí a magnífica celebração do gênio de cada sexo que é tão característico do Islam. O próprio Profeta só pode ser totalmente compreendido sob esta luz: sua virilidade indica sua integridade e, portanto, sua santidade. Sua celebração arquetípica da feminilidade, suas múltiplas esposas, lembra a virilidade de Salomão ou de outros patriarcas hebreus, ou mesmo de Krishna. Vivendo a vida ao máximo, ele abraçou e sacralizou totalmente o rito de procriação divinamente designado. Seus khasais, as regras que o Legislador criou apenas para ele e que são listadas por Suyuti em seu al Khasais al Kubra, geralmente impunham a ele rigores dos quais seus seguidores estavam isentos. A oração tahajjud era obrigatória para ele, mas apenas opcional para outros muçulmanos. Ele tinha a obrigação de jejuar por vinte e quatro horas ou por períodos muito mais longos (o chamado Jejum Contínuo – sawm al wisal), embora os crentes comuns fossem obrigados a jejuar apenas do amanhecer ao anoitecer. Seus khasais são, em sua maioria, austeridades, e ainda entre eles encontramos a inclusão de uma poligamia expansiva. Muitas de suas esposas eram de idade, é verdade (Sawda, Umm Habiba, Maymuna), e seus casamentos podem ter sido uma questão direta de compaixão e sabedoria política, mas outras esposas eram jovens. Por sua poligamia triunfante, o Abençoado Profeta estava indicando o fim da guerra cristã contra o corpo e retoricamente reafirmou o valor sacramental da sexualidade que os profetas hebreus haviam proclamado.
Inseparável disso era seu valor no campo de batalha. Seu estilo de abnegação espiritual ligado ao heroísmo não tem nenhum equivalente europeu; não era o dos Templários celibatários ou dos Cavaleiros de Calatrava, mas ressoa com a santidade guerreira de Krishna ou com o bushido do Japão medieval. A ética samurai combina quietude meditativa, excelência militar e amor pelas mulheres em igual medida; é uma expressão espetacular de masculinidade que ilumina esta, para muitos europeus, a dimensão mais remota e incompreensível da Sunna.
E isso nos leva a outra questão. Feministas apontam que o celibato cristão primitivo era impulsionado pelo horror da carne, de modo que as mulheres eram, nas palavras de Tertuliano, “a porta do diabo”. Isso não poderia ter uma influência profunda na cultura islâmica, com o hadith insistindo que “O casamento é minha sunna, e quem se afasta de minha sunna não está comigo”, uma valorização do casamento que, implicitamente, valorizava a feminilidade funcional de uma forma que os Padres da Igreja, com sua preferência pela perfeição virginal, acharam problemático. É verdade que a defesa do celibato também se desenvolveu entre alguns ascetas muçulmanos de segunda e terceira geração com Abu Sulayman al Darani declarando: “Quem quer que se case, se inclina para o mundo”. No entanto, esse tipo de sentimento tendia a ser expresso nos primeiros ambientes ascéticos, onde o impulso para o celibato, como Tor Andrae mostrou, era o resultado da influência monástica cristã e mais tarde foi varrido pela maré do sufismo normativo. No alto Islam medieval, a conjunção de santidade e celibato era inimaginável e poucos que aspiravam a Deus eram solteiros: Ibn Taymiya era a mais rara das exceções.
Esta evolução de valores novamente é paralela à situação no início do Cristianismo. Um argumento acadêmico duramente combatido debate se a aparição dos primeiros cristãos melhorou ou degradou o status das mulheres, com Peter Brown e muitas feministas defendendo a última visão. Ben Witherington observa que é o material posterior do Novo Testamento (Lucas, Atos) que defende um papel melhorado para as mulheres e um afastamento das normas rabínicas (e, portanto, pós-proféticas) que moldaram as atitudes dos primeiros cristãos. No entanto, como Jesus foi um profeta judeu leal à revelação e, em particular, à sua interpretação dentro de um modelo compassivo, é razoável supor que existiram possibilidades genuinamente pró-femininas na comunidade primitiva de Jesus que viraram sob o peso da pré-misoginia helênica existente que alguns autores das epístolas Paulinas importaram das religiões de mistério, como Foucault mostrou no segundo volume de seu “History of Sexuality”.
Pode-se dizer que uma corrosão análoga se abateu sobre a história social islâmica. De maneira crítica, no entanto, isso aconteceu em grau muito menor, por um conjunto de razões que exigem atenção cuidadosa.
Em primeiro lugar, a recusa acima mencionada das escrituras em atribuir o gênero masculino à Divindade privou a tradição de um fundamento ginofóbico indiscutível. A doutrina dos Nomes como arquétipos para todas as bipolaridades na criação descartou qualquer ideia possivelmente consequente de que a recuperação do teomorfismo pela humanidade deve acarretar uma redução do gênero em favor da androginia. Ao contrário, a recuperação do teomorfismo é a recuperação do gênero, totalmente compreendido.
Em segundo lugar, a própria palavra “mulher” tinha sido, para muitos Padres da Igreja, uma metonímia para concupiscência, e a preferência consistente do cristianismo patrístico pelo celibato como uma vocação superior ao casamento acarretou uma atitude particular em relação às mulheres. O modelo era, obviamente, o próprio Cristo, como mais tarde figurado e interpretado pela imaginação da Igreja. O Islam, em contraste absoluto, manteve uma versão do modelo primordial e também salomônico, polígamo e heroico da profecia semita. Como Geoffrey Parrinder mostrou, as religiões sexualmente positivas também tendem a conceder um status mais elevado ao princípio feminino e o Islam, desde o início, enfatizou que a presença dos corpos e espíritos das mulheres não era, de forma alguma, prejudicial à vida espiritual. O Profeta adorou em seu minúsculo quarto durante grande parte da noite e, quando ele estava abaixando para a prostração, colocava para o lado as pernas de sua jovem esposa Aisha para abrir espaço. Muito longe das devoções do monge sírio, sozinho em sua cela no deserto.
Também embutida nos padrões arquetípicos do Islam está uma alteração característica às leis de pureza existentes. As feministas muitas vezes identificaram isso como um sinal importante e fortalecedor da misoginia. Elas existem em ramos do Cristianismo, como mostram as hesitações dos Ortodoxos Russos sobre a recepção da Eucaristia por mulheres menstruadas. No judaísmo, são muito elaboradas, de modo que a mulher menstruada só está sexualmente disponível na metade de cada mês. Banhos especiais são necessários para sua purificação.
Isso reflete e responde a um tabu muito antigo e amplamente observado. Em algumas sociedades primitivas, as mulheres são banidas da casa de seus maridos durante este tempo. As tribos Galla da Etiópia alocam cabanas especiais para mulheres menstruadas. Ainda hoje, a interrupção significativa dos padrões de comportamento das mulheres é reconhecida em algumas legislações: a lei francesa moderna, por exemplo, até classifica a tensão pré-menstrual extrema como uma forma de insanidade temporária.
O Islam preservou a memória dessa hesitação antiga e também semita, mas de uma forma curiosamente atenuada e sem julgamento. Portanto, na surata 2, versículo 220, lemos:
“Interrogar-te-ão sobre a menstruação. Responde: ‘É uma mácula. Afastai-vos das mulheres durante a menstruação, e não volteis a elas até que sejam purificadas.’”
O que isso significa é esclarecido na sunna. Um hadith relata que:
Aisha estava dormindo sob uma colcha com o Mensageiro de Deus, quando de repente ela deu um pulo e saiu do lado dele. O Mensageiro disse a ela: “Qual é o problema? Você está perdendo sangue” Ela disse: “Sim”. Ele disse: “Enrole bem o seu envoltório na cintura e volte para o seu lugar de dormir”.
Há ecos aqui desse mal-estar humano primordial, mas são muito reduzidos. O naturalismo do Islam insiste constantemente que a santidade não emerge da supressão dos instintos humanos, mas de sua afirmação por meio de regulamentação, de modo que os ritmos naturais do corpo e o temor com que os consideramos não devem ser ignorados, mas precisam ser comemorados em ritual religioso. Consequentemente, é concedida à mulher a suspensão da oração formal e do jejum por vários dias em cada mês. Algumas feministas veem isso como uma diminuição da espiritualidade feminina; as teólogas muçulmanas consideram isso um reconhecimento reverente; outras, como Ruqaiyyah Maqsood, interpretam isso como um alívio dos deveres religiosos em um momento difícil. A dispensa é facilmente desconstruída por hermenêutica suspeita ou benigna e resiste à interpretação total.
O que os muçulmanos enfatizam é que o Islam valoriza as mulheres ao tornar os deveres básicos da fé igualmente incumbentes a ambos os sexos: a suspensão por alguns dias a cada mês é vista como uma dispensa pragmática e generosa que não invalida este princípio básico. Os Cinco Pilares são, portanto, neutros em termos de gênero. Da mesma forma, o Islam não estabelece espaços sagrados inacessíveis às mulheres. As mulheres podem entrar e entram na Sagrada Caaba. O pátio interno do templo em Jerusalém, antes de sua demolição pelos romanos, estava proibido para as mulheres, que enfrentariam a pena de morte se penetrassem nele. Sob os auspícios muçulmanos, foi aberto para ambos os sexos. Portanto, o Domo da Rocha, a estrutura dourada que ainda simboliza a Cidade Celestial e que marca o ponto terrestre do Miraj, é alocado às sextas-feiras exclusivamente para mulheres, para que os homens rezem no salão da mesquita de al-Aqsa. Aqui, como em outros lugares, os sexos são segregados durante as orações congregacionais, e a razão dada para isso é novamente a pragmática e irrespondível que uma mistura de homens e mulheres durante uma forma de adoração que envolve uma boa dose de contato físico levaria prontamente à distração.
As mulheres podem penetrar no sacro; mas o que dizer do privilégio ambivalente de liderança? Quem é o corretor da palavra salvadora de Deus? Se no Judaísmo as mulheres não podiam se aproximar da Torá, enquanto no Cristianismo elas se encontravam excluídas da administração da Eucaristia, a nova dispensação do Islam as restringe analogamente?
Aqui, o Islam estende sua feminização de espaços sagrados à sua própria epifania da Palavra que ressoa dentro deles. Para a Sharia, a palavra feita Livro está aberta ao toque e à cantilena feminina. Simbolicamente, a custódia do primeiro texto do Alcorão foi confiada à esposa do Profeta, Hafsa, e não a um homem.
Em relação à celebração coletiva da palavra divina, é claro que não pode haver equivalente islâmico ao debate sobre a ordenação de mulheres, pela razão direta de que o Islam não ordena ninguém, seja homem ou mulher. Nossa lembrança do Alast primordial e nossa afirmação da Grande Aliança já conferiram ordens sagradas a todos nós que são válidas na medida de nossa lembrança.
O Imam não medeia, mas o diretor espiritual pode fazer isso, orando pelo discípulo e oferecendo técnicas de dhikr. É uma manifestação da dureza inescapavelmente antifeminina do ativismo pseudo-salafista moderno que o shaykh sufi seja, para esses ativistas, uma figura que não deve ser reverenciada, mas abolida. O sufismo, e várias outras formas de espiritualidade iniciática islâmica, frequentemente acomodam as mulheres de maneiras que as formas puramente exotéricas da religião não têm: o shaykh Sufi, que exerce tal influência na formação e orientação do discípulo, e muitas vezes é uma presença mais significativa para o indivíduo e para a sociedade do que a pessoa do imam da mesquita, pode ser de ambos os sexos. A moderna santa libanesa Fatima al-Yashrutiyya é um exemplo notável e profundamente comovente, mas existem muitos outros. Frequentemente, nas sociedades muçulmanas em que a mesquita se tornou um espaço predominantemente masculino, o túmulo de um profeta ou de um santo fornece um lugar sagrado para as mulheres, respondendo à sua espiritualidade afetiva que floresce, como diria Irigaray, no abraço de círculos fechados, em vez de em linhas retas. A importância de alguns dos túmulos dos Profetas para as mulheres palestinas tem sido frequentemente observada a esse respeito. O pseudo-salafismo, com seu nervosismo sobre qualquer visibilidade pública para as mulheres, busca suprimir tais contextos, com exceção apenas do túmulo de Medina, que ele interpreta não como paradigma, mas como exceção.
No entanto, a questão de uma possível mulher imam foi levantada em várias comunidades nos últimos anos, embora as evidências sugiram que muito poucas mulheres aspiram a essa posição ambivalente. O imam de uma mesquita não pode reivindicar nenhuma autoridade mediadora de um padre: ele não permanece in loco divinis, mas está presente principalmente para marcar o tempo, para garantir que os movimentos dos adoradores sejam coordenados e para representar a unidade da comunidade. Embora, em algumas culturas, ele possa ter a função adicional de conselheiro pastoral, este não é um requisito canônico. Todos as quatro madhhabs do Islam sunita afirmam que o imam deve ser homem se houver homens na congregação. Se houver apenas mulheres, muitos estudiosos clássicos permitem a imagem feminina, e isso é geralmente aceito hoje em dia. Mas as mulheres não podem liderar os homens em oração. Na verdade, não há textos do Alcorão ou Hadith que estabeleçam isso explicitamente: é um produto do consenso medieval. Embora aqueles que rejeitam as Quatro Escolas e tentam derivar a sharia diretamente da revelação às vezes repudiem esse consenso, apenas alguns, como Farid Esack, o propuseram seriamente. Na prática, as mulheres ativistas no mundo muçulmano parecem ter pouca preocupação com isso, mais uma vez, por causa da ausência de prestígio e autoridade inerentes ao imamato. Alguém pode ser um líder religioso sem ser o imam de uma mesquita, como o exemplo de teólogas proeminentes como Bint al Shati no Egito moderno e uma série de antecessoras medievais como Umm Hani, Aisha al Bauniyya e Karima al Marwaziyya, fornecem provas suficientes disso.
A discussão, até agora, desceu pelos distritos da metafísica para tocar nas questões da sharia. Teologicamente, como vimos, o Islam tende a afirmar a igualdade dos princípios masculino e feminino, enquanto em suas estruturas sociais práticas estabelece uma distinção. Compreender este paradoxo é compreender a essência da filosofia islâmica de gênero, que constrói papéis de baixo, não de cima.
As funções das mulheres variam amplamente no mundo muçulmano e na história muçulmana. Nas comunidades camponesas, as mulheres trabalham ao ar livre; no deserto e entre as elites urbanas, a feminilidade é mais frequentemente celebrada em casa. Repetidamente, no entanto, o espaço público é rigorosamente desssexualizado e isso é representado pelo traje quase monástico de homens e mulheres, onde frequentemente a cor branca é a cor do homem, enquanto o preto, significativamente o signo da interioridade, da Caaba e, portanto, a celestial Layla, denota feminilidade. No espaço privado da casa, esses sinais são deixados de lado e a casa torna-se tão colorida quanto o espaço público é austero e polarizado. A modernidade, recusando-se a reconhecer o gênero como um signo sagrado e se deliciando com a sinalização erótica aleatória, torna o espaço público “doméstico” ao colori-lo e faz guerra a todos os resquícios da separação de gênero, grosseiramente interpretados como preconceituosos.
Para os muçulmanos, um desenvolvimento significativo no novo feminismo é o desejo renovado de separação. Contemplando a crise dos contratos sociais igualitários, onde o peso do divórcio invariavelmente recai sobre as mulheres, Daly e muitos outros defendem uma recusa quase insurrecional de contato com o homem e a criação de “espaços femininos” como cidadelas para o cultivo de uma verdadeira irmandade. Isso não pode ser imediatamente útil para os muçulmanos. A hermenêutica da suspeita dirigida contra ambos os sexos é irreligiosa da perspectiva do Alcorão. Deus, como um sinal, “criou esposos para vocês, de sua própria espécie, para que você possa encontrar paz neles, e Ele colocou entre vocês o amor e a misericórdia”. (30:21) No entanto, a exigência feminista de separação não deve ser deixada de lado, pode até convergir significativamente com a provisão do Islam a respeito.
Em sua Ethics of Sexual Difference, Irigaray denuncia o local de trabalho tecnológico criado pelos homens, que “provoca um nivelamento sexual em um determinado nível, [e] neutraliza as diferenças sexuais”. Para competir, as mulheres devem assumir a “visão de túnel” do homem voltado para a realização e, portanto, renunciar a aspectos de sua essência codificada por hormônios em prol de um espaço mercantil público que seja biocida, lucrativo, antifeminino e agora anti-gênero. Ela também observa que “as liberações sexuais dos últimos tempos não estabeleceram uma nova ética da sexualidade” e que as mulheres têm sido as principais vítimas. Mas uma resposta feminista insurrecional “muitas vezes destrói a possibilidade de constituir um abrigo ou território próprio. Como vamos construir esse abrigo feminino, esse território diferente?” A questão é compartilhada com o Islam; mas sua resposta é decepcionante e certamente fútil. Como Levinas, ela exige uma revolução no amor, uma “fertilidade na diferença social e cultural” enraizada na reconciliação, uma nova linguagem de gestos e a valorização da natureza separada da feminilidade dos homens.
Dado seu pessimismo sobre a mutabilidade do temperamento masculino, aparentemente reforçado por novos estudos de genética molecular sobre diferença de gênero, isso parece um pensamento positivo e não pode fornecer mais do que parte da agenda para uma mutualidade autêntica e afirmativa. No entanto, em seu diagnóstico, podemos localizar a pista para a solução mais moral e espiritual pela qual ela claramente anseia. “Nossas sociedades”, ela observa, “são construídas sobre homens entre si (l’entre-hommes). De acordo com esta ordem, as mulheres permanecem átomos dispersos e exilados”. Mas há uma economia cultural rival que clama para ser considerada.
Tradicionalmente, o espaço público islâmico é construído e subjetivado principalmente por “l’entre-hommes”, os homens de branco. As mulheres de preto sinalizam uma espécie de ausência mesmo quando estão presentes, assumindo um status de convidada respeitada. Mas a sociedade islâmica, enraizada em padrões de parentesco primordial e especificamente baseada na Sharia, recusa-se enfaticamente a reduzi-las ao status de “átomos dispersos e exilados”. Há um espaço paralelo de entre-femmes, um reino de significado alternativo e realização, onde os homens são os convidados, que se cruza de forma formal com os entre-hommes, mas que cria uma sociabilidade entre as mulheres, um espaço para a apreciação dos nos semblables, que faltam em grande parte nas condições da modernidade ou da pós-modernidade, e que é mais profundamente humana e feminina do que a utopia acadêmica com que sonha Irigaray.
Irigaray elogia a nova instituição de “affidamento”, corrente entre algumas feministas italianas que busca uma retirada do espaço público irredutivelmente masculino e abrasivo para núcleos de fraternidade feminina relaxada. Para ela, este é “o símbolo de outra cultura que preserva para nós um futuro possível e habitável, uma cultura cuja face histórica ainda nos é desconhecida”. Ela reconhece que as lutas pelo poder e a experiência geralmente negativa de grupos de mulheres sugere que as células de “affidamento” podem não ser capazes de se fundir para criar uma solidariedade feminina maior e estável separada dos homens. Mas a intrusão aleatória de mulheres no espaço público, e os padrões consequentes de conflito, marginalização, negligência dos filhos e divórcio em espiral, sugerem que alguma forma de irmandade informal localizada pode fornecer às mulheres a matriz de identidade que uma modernidade fragmentada as nega.
O entre-femmes islâmico foi explorado por vários antropólogos. Chantal Lobato, em seus estudos sobre mulheres refugiadas afegãs, rejeita furiosamente os estereótipos ocidentais, elogiando o calor e a riqueza fraternal da vida dessas mulheres. Conforme ela registra, esses espaços femininos, com sistemas de significado, tradição e narrativa construídos em grande parte pelas próprias mulheres, se cruzam com a narrativa masculina por meio de instituições como o casamento. Gostaríamos de acrescentar que a intersecção, criticamente, não é determinada por nenhum dos sexos. Irigaray sustenta que todos os discursos têm gênero, mas o Islam diria que isso não é verdade; existem, de fato, três discursos: masculino, feminino e divino. Tawhid, como vimos, recusa-se a definir o gênero de Deus ou da palavra de Deus, e o texto do Alcorão é, portanto, um documento neutro. É lido por homens e mulheres e, portanto, importado e internalizado de maneiras específicas de gênero. Como tal, fornece um barzakh entre os dois mundos de significado, igualmente possuídos por cada um. É o elo que faltava no modelo teórico de Irigaray que permite uma socialidade intersexual autêntica e estável.
O que essa teologia e a antropologia que está surgindo para apoiá-la propõem é que a sociedade islâmica normativa é simultaneamente patriarcal e matriarcal. O espaço público é principalmente o dos homens, que podem valorizá-lo sobre o privado; mas este último espaço é valorizado pelas mulheres, que podem considerar o espaço público como moral e espiritualmente questionável. Consequentemente, uma característica dos costumes populares muçulmanos é um tipo de diversão reflexiva. Os homens frequentemente constroem um discurso banalizante sobre as mulheres; mas as mulheres, como qualquer bisbilhoteiro de uma conversa muçulmana sabe, descartam os homens e suas preocupações com uma indiferença ainda mais divertida. Elas estão certas em dizer: “Homens, o que eles sabem?”. E a rejeição patriarcal masculina não é, do ponto de vista masculino, menos correta. Aspectos do discurso do hadith que parecem diminuir as mulheres podem ser afirmados, e também relativizados, ao se adotar essa perspectiva.
Um aspecto final do patriarcado e matriarcado concorrentes das culturas muçulmanas diz respeito ao status da mãe. Uma fraqueza do trabalho de Irigaray é sua preocupante indiferença para com os idosos; como muitas feministas, ela parece estar preocupada apenas com seus semelhantes. Embora aceite o telos reprodutivo e nutridor do corpo feminino, ela deixa de considerar sua outra trajetória natural, que é a senescência.
A veneração de mães idosas é um aspecto recorrente da visão profética, na qual a bondade e lealdade para com a mãe, um rahma para retribuir o rahma que elas mesmas dispensaram, é vista como um ato quase sacramental. Ibn Umar narra que “um homem veio ao Mensageiro de Deus e disse: “Eu cometi um grande pecado. Há algo que eu possa fazer para me arrepender?” Ele perguntou: “Você tem mãe?” O homem disse que não, e perguntou novamente: “Então você tem uma tia materna?” O homem respondeu que sim, e o Profeta disse-lhe: “Então seja gentil e devotado a ela”. (Tirmidhi) Outros hadiths são numerosos: “Quem beijar sua mãe entre os olhos recebe proteção contra o fogo” (Bayhaqi); “Na verdade, Deus proibiu a desobediência à sua mãe” (Bukhari e Muslim).
Antropólogos que trabalham em culturas islâmicas, portanto, relatam consistentemente uma hierarquia dual que exige que as esposas sejam obedientes aos maridos, enquanto os maridos devem obedecer às mães. A modernidade afrouxa esses dois laços, o primeiro veementemente, e o último distraidamente; e a consequência tem sido uma nova hierarquia desequilibrada e francamente etária que prioriza a juventude em detrimento da idade e impõe formas implacáveis de discriminação contra aqueles que antes eram considerados o orgulho da comunidade e o repositório de sua memória. À medida em que os avanços médicos prolongam a longevidade média sem corroer substancialmente o diferencial que separa a mortalidade masculina e feminina, as sociedades modernas relegam um número crescente de mulheres ao hermeticismo involuntário em conventos regimentados, mas sem oração. Em 1998, o Chicago Tribuner registrou que 60% dos habitantes de lares de idosos americanos nunca recebem um visitante. Dada a normalidade da proporção de gênero nesses estabelecimentos, o percentual entre as mulheres deve ser ainda maior. Daí a ironia de que as mulheres jovens e de meia-idade no Ocidente têm horizontes mais amplos do que até agora (excluindo, por enquanto, o horizonte religioso), mas devem todas temer uma década de confinamento solitário no final, olhando para as telas de televisão, reciclando memórias e dedilhar cartões de felicitações de parentes que raramente aparecem. Mesmo na mais ocidentalizada das sociedades muçulmanas, o confinamento dos velhos em campos de concentração realmente confortáveis é encarado com o nojo que merece.
Outros aspectos do discurso da Sharia também exigem elucidação. Não pode ser nossa tarefa aqui revisar as disposições detalhadas da lei islâmica e explicar, em cada instância individual, o caso islâmico de que a igualdade de gênero, mesmo quando o conceito é significativo, pode ser prejudicada em vez de estabelecida pela paridade de papéis forçada e direitos. Tal projeto exigiria um volume separado do tipo tentado recentemente por Haifa Jawad e devemos nos contentar em examinar algumas questões representativas.
Talvez a característica mais notável das comunidades muçulmanas seja o código de vestimenta tradicional para mulheres. Muitas vezes, é esquecido que a Sharia e o senso muçulmano de dignidade humana exigem um código de vestimenta para os homens também: em sociedades muçulmanas totalmente tradicionais, os homens sempre cobrem os cabelos em público e usam roupas longas e esvoaçantes, expondo apenas as mãos e os pés. Na lei muçulmana, entretanto, seu awra é definido de maneira mais vaga: os homens precisam se cobrir do umbigo até os joelhos, no mínimo. Mas as mulheres, com base em um hadith, devem cobrir tudo, exceto o rosto, mãos e pés.
Novamente, o código de vestimenta feminino, conhecido como hijab, forma um texto amplamente passivo disponível para uma variedade de leituras. Para algumas missionárias feministas ocidentais em terras muçulmanas, é um símbolo do patriarcado e da submissão recatada da mulher. Para as mulheres muçulmanas, ele proclama sua identidade: muitas mulheres muito seculares que se manifestaram contra o Xá na década de 1970 o usaram por esse motivo, como uma bandeira de desafio quase agressiva. Franz Fanon refletiu sobre um fenômeno semelhante entre as mulheres argelinas que protestavam contra o domínio francês nos anos 1950. Para ainda outras mulheres, no entanto, como a pensadora egípcia Safinaz Kazim, o hijab deve ser reconstruído como uma declaração quase feminista. Uma mulher que expõe seus encantos em público é vulnerável ao que pode ser descrito como “roubo visual”, de modo que homens que ela não conhece podem apreciá-la visualmente sem seu consentimento. Ao se cobrir, ela recupera sua capacidade de se apresentar como um ser físico apenas para sua família e irmandade. Essa visão do hijab, como uma espécie de capa de chuva moral particularmente útil sob o clima inclemente da modernidade, permite uma visão da mulher islâmica como libertada, não da tradição e do significado, mas da ostentação e da sujeição ao estupro visual aleatório pelos homens. A objeção feminista ao adorno patriarcal ou ao desnudamento das mulheres, ou seja, que as reduz à condição de objetos vulneráveis e passivos do olhar masculino, não avança contra o hijab, compreendido responsavelmente.
Uma outra controvérsia no cultivo dos papéis de gênero pela Sharia gira em torno da instituição do casamento plural. Esta é claramente uma instituição primordial cujo fundamento biológico é irrespondível: como Dawkins e outros observaram, é do interesse genético dos machos ter um número máximo de fêmeas; enquanto o inverso nunca é o caso. Stephen Pinker observa de forma um tanto óbvia em seu livro How the Mind Works: “O sucesso reprodutivo dos machos depende de quantas fêmeas eles acasalam, mas o sucesso reprodutivo das fêmeas não depende de quantos machos elas acasalam”.
O naturalismo do Islam, sua insistência na fitra e nossa autêntica pertença à ordem natural, garantiu a conservação desta norma de criação dentro do contexto moral da Sharia. A poligamia, no caso islâmico, aparece como uma instituição reconhecidamente semita, remontando a uma sociedade tribal do Antigo Testamento frequentemente em guerra e não equipada com um sistema de seguridade social que pudesse proteger e assimilar as viúvas na sociedade. No entanto, é mais universal: o hinduísmo clássico permite a um homem quatro esposas, e há muitas vozes cristãs, não apenas mórmons, que hoje clamam pela restauração da poligamia como parte de um estilo de vida autenticamente bíblico. (Veja, por exemplo, http://www.familyman.u-net.com/polygamy.html)
Diante do fracasso dos códigos normativos de casamento e relacionamento ocidentais, um número crescente de pensadores contemporâneos está se voltando para essa instituição primordial em busca de uma possível orientação. Phillip Kilbride, professor de antropologia em Bryn Mawr, despertou muito interesse com seu recente livro “Plural Marriage for Our Times: A Reinvented Option”. Audrey Chapman escreveu um estudo mais popular intitulado “Man-Sharing: Dilemma or Choice”, enquanto em 1996, a ativista dos direitos das mulheres Adriana Blake publicou seu “Women Can Win the Marriage Lottery: Share Your Man with Another Wife”.
Esses estudos, de suas diferentes perspectivas, apresentam três grandes argumentos éticos para a poligamia. Em primeiro lugar, a instituição pode, como sugerem suas origens, permitir a reintegração em uma sociedade do pós-guerra de mulheres enlutadas, das quais um número tragicamente grande existe agora em todo o mundo. Em segundo lugar, pode trazer vantagens para as mulheres: é criada uma família alargada que permite a uma mulher trabalhar, enquanto a outra cuida dos filhos. O malabarismo entre trabalho e filhos, que é um perigo persistente nas relações modernas, é assim perfeitamente evitado: mostrando a poligamia como uma opção francamente libertadora para as mulheres. Suas vantagens para as crianças também foram amplamente documentadas pela pesquisa recente de Carmon Hardy, que mostra o forte grau de vínculo familiar e a incidência muito menor de crimes entre os filhos de polígamos mórmons na virada do século atual. Em terceiro lugar, a poligamia é realista e, da perspectiva muçulmana, identificaríamos isso como o principal argumento, dado o realismo geral da Sharia. Os muçulmanos apontam que as sociedades ocidentais modernas são, na prática, muito mais polígamas do que as muçulmanas, a diferença é que no Ocidente a segunda relação existe fora de qualquer estrutura legal. O atual herdeiro do trono britânico, por exemplo, foi polígamo, e para os muçulmanos tradicionais nada parecia mais absurdo do que Diana precisar se divorciar e uma crise constitucional provocada.
O verdadeiro monoteísmo, como sempre, acarreta realismo. Os homens são biologicamente projetados para desejar uma pluralidade de mulheres e, a menos que possamos realizar algum trabalho radical de engenharia genética, eles sempre o farão. E quando um homem tem duas mulheres simultaneamente, a lei pode privar uma das duas mulheres de direitos legais e status social, como no Ocidente moderno. Ou pode reconhecer as duas como cônjuges legítimos, como na Sharia. Os muçulmanos consideram um absurdo o atual arranjo no Ocidente, onde relacionamentos consensuais de todos os tipos são permitidos e até mesmo defendidos militantemente: homossexuais, lésbicas e assim por diante; ao passo que um ménage a trois consensual ainda é considerado imoral. A última ressaca da moral vitoriana? Na verdade, a menage a trois é perfeitamente aceitável na lei ocidental moderna, desde que as partes vivam “em pecado” e não tentem se casar. O absurdo dessa posição não requer comentários.
Existem outros aspectos da Sharia que merecem ser mencionados como ilustrações de nosso tema, não menos aqueles que foram amplamente esquecidos pelas sociedades muçulmanas. As interseções entre os dois universos de gênero são ora concebidas pelo Legislador como direitos das mulheres, ora como direitos dos homens, e a primeira categoria é omitida com mais frequência nas comunidades muçulmanas atualizadas. Frequentemente, a exegese dos textos pelos juristas é plurívoca. As tarefas domésticas, por exemplo, aparecem como um aspecto da sociabilidade interior, mas isso não é identificado com o espaço puramente feminino, uma vez que são consideradas por algumas madhhabs, incluindo a Shafi, como responsabilidade do homem e não da esposa. Aisha foi questionada, após a morte do Abençoado Profeta, o que ele costumava fazer em casa quando não estava orando, e ela respondeu: “Ele servia à família: ele varria o chão e costurava roupas.” (Bukhari, Adhan, 44). Com base nisso, os juristas Shafi defendem o direito da mulher de não realizar tarefas domésticas. Por exemplo, o jurista sírio do século XIV, Ibn al-Naqib, insiste: “Uma mulher não é obrigada a servir a seu marido assando, moendo farinha, cozinhando, lavando ou qualquer outro tipo de serviço, porque o contrato de casamento implica, por sua parte, apenas que ela o deixou desfrutar dela sexualmente, e ela não é obrigada a fazer nada além disso”.
Na madhhab Hanafi, em contraste, esses atos são considerados obrigações da esposa. Outro lembrete suficiente da dificuldade de generalizar sobre a lei islâmica, que continua sendo um corpo diversificado de regras e abordagens. (Outra área importante, que não pode ser detalhada aqui, é a lei da custódia dos filhos: os Hanafis preferem que os meninos deixem a mãe divorciada aos 7 anos para morar com o pai; as meninas ficam com ela até a menarca. Para os Malikis, o menino fica com a mãe até a maturidade sexual (ihtilam), e a menina até que seu casamento seja consumado.)
A teologia de gênero do Islam, portanto, luta com um labirinto, uma rede de conexões que exige familiaridade com um código jurídico diverso, heterogeneidade regional e com o metafísico não menos do que com o físico. Essa complexidade deve nos alertar contra o oferecimento de generalizações fáceis sobre a atitude do Islam em relação às mulheres. Jornalistas, feministas e pessoas cultas em geral no Ocidente abrigaram veredictos profundamente negativos aqui. Frequentemente, esses veredictos são alcançados por meio da observação das sociedades muçulmanas reais e seria fútil e imoral sugerir que o mundo islâmico moderno deve ser sempre admirado por seu tratamento com as mulheres. Mulheres em países como a Arábia Saudita, onde nem sequer têm permissão para dirigir carros, são objetivamente vítimas de uma opressão que não é o produto da proteção divinamente voluntária de um sexo, mas do ego, do nafs do homem. Desta forma, os tipos de “islamização” lançados hoje em vários países por indivíduos movidos pelo ressentimento e comprometidos com um Deus antropomorfizado e, portanto, andromórfico, parecem não ter relação com o discurso fiqh tradicional ou com a insistência reveladora na justiça. Esse desequilíbrio continuará, a menos que a religião atualizada aprenda a reincorporar a dimensão de ihsan, que valoriza o princípio feminino, e também obstrui e, em última instância, aniquila o ego que sustenta o chauvinismo de gênero. Precisamos distinguir, como muitas mulheres pensadoras muçulmanas estão fazendo, entre as expectativas do ethos da religião (conforme legível nas escrituras, exegese clássica e espiritualidade) e as estruturas assimétricas reais das sociedades muçulmanas pós-clássicas, que, como as cristãs, as culturas judaica, hindu e chinesa contêm muitas coisas que realmente precisam de reforma.
A essa altura, já deveria ter ficado claro que não estamos proclamando a revelação como um chauvinismo “machista” ou como uma prefiguração milagrosa do feminismo do final do século XX. O feminismo, em todo caso, não tem ortodoxia, como nos lembra Fiorenza; e algumas de suas formas são repelentes para nós e são claramente prejudiciais às mulheres e à sociedade, enquanto outras podem demonstrar convergências marcantes com a Sharia e nossas cosmologias de gênero. Defendemos uma compreensão diferenciada que tenta contornar a dialética sexismo-versus-feminismo, propondo uma teologia na qual o Divino é verdadeiramente neutro em relação ao gênero, mas presenteia a humanidade com um código legal e normas familiares que estão enraizadas no entendimento de que, como Irigaray insiste, os sexos “não são iguais, mas diferentes”, e naturalmente gravitarão em torno de papéis divergentes que afirmam, em vez de suprimir, seus respectivos gênios.
A biologia deve ser um destino, mas um destino que permite múltiplas possibilidades. O discurso das mulheres valoriza o lar; mas as mulheres muçulmanas, por longos períodos da história do Islam, deixaram suas casas para se tornarem acadêmicas. Cem anos atrás, o orientalista Ignaz Goldziher mostrou que talvez quinze por cento dos estudiosos de hadith medievais eram mulheres, ensinando nas mesquitas e universalmente admiradas por sua integridade. Faculdades como a Saqlatuniya Madrasa, no Cairo, eram financiadas e administradas inteiramente por mulheres. O estudo mais recente sobre acadêmicas muçulmanas, por Ruth Roded, traça um dilema extraordinário para a pesquisadora:
Se os historiadores americanos e europeus sentem a necessidade de reconstruir a história das mulheres porque elas são invisíveis nas fontes tradicionais, os estudiosos islâmicos se deparam com uma infinidade de fontes de material que apenas começaram a ser estudadas. […] Ao ler as biografias de milhares de mulheres acadêmicas muçulmanas, ficamos surpresos com as evidências que contradizem a visão das mulheres muçulmanas como marginais, isoladas e restritas.
Os estereótipos sofrem uma tensão quase intolerável quando Roded documenta o fato de que a proporção de professoras em muitas faculdades islâmicas clássicas era maior do que nas universidades ocidentais modernas. Aisha, Mãe dos Crentes, que ensinou hadith na urmasjid do Islam, é como sempre o paradigma indispensável: viva, inteligente, devota e humilhante [de tornar humilde, não no sentido pejorativo] para toda a memória subsequente.
Mas até que os ideais do passado sejam reivindicados, é provável uma polarização nas sociedades muçulmanas. As classes ocidentalizadas rejeitarão as expressões tradicionais simplesmente porque esses estilos não são ocidentais e não satisfazem a autoimagem da elite. Os literalistas pseudo-salafi continuarão a rejeitar a alta consideração do Sufismo pelas mulheres e sua demanda pela destruição do ego. O mesmo constituinte desafiará apelos legítimos para uma transformação baseada em ijtihad devida de aspectos da lei islâmica, não por causa de qualquer compreensão moral profunda dessa lei, mas por causa de uma exegese desajeitada de usul e porque esses apelos estão associados à influência e exigências ocidentais. Se o meio-termo consciencioso, inspirado pelo gênio da tradição, pode tomar a iniciativa e permitir que uma definição muçulmana generosa e livre de ego para moldar a agenda em nossas sociedades em rápida polarização, resta saber. Sem dúvida, a percepção sufista de que não há justiça ou compaixão na terra sem um esvaziamento do eu será o critério final entre os sábios. Mas é claro que a tradição islâmica oferece a possibilidade de uma solução verdadeiramente radical, oferecendo não só a si mesma, mas ao Ocidente a transcendência de um debate que continua a confundir muitas mentes responsáveis, contemplando uma sociedade emergente onde a ausência de papéis preside uma ausência cada vez mais prejudicial de regras.
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