A partir do ano de 1500 até o ano 1800, as nações europeias estavam envolvidas em uma prática trágica e bárbara conhecida como o tráfico de escravos. Durante esse período, mais de 12 milhões de africanos foram embarcados em navios e levados para a América do Norte e Sul para trabalharem como escravos. O legado desse tratamento desumano vive ainda hoje sob a forma de racismo e de desvantagem econômica para os negros nas Américas e de desunião e guerra na África. Um dos aspectos da escravidão que tem sido negligenciado nos estudos históricos é o impacto das revoltas dos escravos. É desnecessário dizer que os escravos africanos não iam voluntariamente para suas novas vidas. Em muitos casos, eles lutaram contra seus senhores, recusando-se a aceitarem a vida que tinham sido forçados a viver.
Uma das mais notáveis e bem sucedidas destas rebeliões foi a Revolta da Bahia, que aconteceu em 1835, no Brasil. Esta revolta, ao contrário de algumas outras, foi planejada e conduzida inteiramente por muçulmanos. A história de como eles foram capazes de planejar uma revolta em condições tão horríveis e ter um impacto tão grande é notável. O fator mais interessante e definitivo da revolta foi o seu caráter islâmico.
O Brasil foi uma colônia Portuguesa até 1822, quando conquistou sua independência. Independentemente da mudança na forma de governo, no entanto, o comércio de escravos ocorreu desde os primeiros assentamentos portugueses até o final dos anos 1800. No estado oriental da Bahia, os escravos representavam cerca de um terço da força de trabalho. Compreender a origem desses escravos é muito importante para a entender como a revolta foi tão bem sucedida. A maioria dos escravos vieram de Senegâmbia (na costa oeste da África) ou a partir do Golfo do Benim (atual território de Benin, Togo e Nigéria). Os escravos dessas áreas eram quase todos muçulmanos. Os povos Wolof e Mandinga, da Senegâmbia, eram inteiramente muçulmanos por volta de 1400 e foram muito eruditos em assuntos islâmicos, com muitos estudiosos entre eles. Os povos Yoruba, Nupe e Hausa, de Benin, também eram todos muçulmanos desde, pelo menos, o ano de 1500.
Quando esses escravos muçulmanos chegaram ao Brasil, levaram consigo suas crenças religiosas, e a maioria deles se recusou a se converter ao catolicismo, como seus senhores portugueses e brasileiros. Mesmo como escravos, eles conseguiram criar uma comunidade islâmica com imames (eruditos), mesquitas, escolas e oração comunitária. Na capital da Bahia, Salvador, onde a revolta ocorreu, mais de 20 mesquitas diferentes existiram, que foram construídas por ambos os escravos muçulmanos e libertos (ex-escravos que ganharam a liberdade).
Em 1814 e em 1816, os muçulmanos da Bahia tentaram organizar uma revolta contra os portugueses. Eles queriam derrubar a aplicação da lei local, livrar todos os escravos e comandar navios de volta à África. Porém, infelizmente, alguns escravos estavam servindo como informantes para a polícia local e a revolta foi esmagada antes mesmo de começar, com os seus líderes sendo mortos. Ao longo dos próximos 20 anos, revoltas menores intermitentes feitas por muçulmanos e não-muçulmanos não tiveram sucesso em seu objetivo de levar a liberdade aos escravos da Bahia.
Antes de discutir a revolta de 1835, temos que entender o fator unificador que o Islam desempenhou na organização dos escravos. A África é um continente diverso de pessoas diferentes, culturas e nações, e os povos Wolof, Mandinga, Hausa, Nupe e Yoruba falavam línguas diferentes. Esses escravos muçulmanos na Bahia eram tão diversos quanto um grupo de falantes de francês, alemão, russo e grego. Apesar de suas diferenças étnicas, o fator unificador entre todas elas foi o Islam, que forneceu-lhes uma linguagem comum para falar (em árabe), os costumes comuns, hábitos alimentares e comportamentos. Os muçulmanos da Bahia seriam muito mais ligados a outros muçulmanos de uma etnia diferente do que aos não-muçulmanos que falavam a mesma língua que eles. Ao longo da história islâmica, a unidade foi o que levou à grande força e solidariedade na comunidade.
As revoltas fracassadas de 1814 e 1816 forçou os muçulmanos da Bahia a se esconderem. Expressões exteriores do Islam foram reprimidas pelas autoridades. Apesar disso, ao longo dos anos 1820 e 1830, os líderes muçulmanos e acadêmicos focaram na conversão de outros africanos (católicos ou animistas) ao Islam. As autoridades brasileiras notaram um aumento no número de pessoas que praticavam o islamismo, mas não deram muita atenção à situação.
As pessoas que organizaram a revolta eram estudiosos exclusivamente muçulmanos. Devido à força da comunidade muçulmana, eles eram respeitados pelo povo e mantidos em uma posição de honra e estima. Dentre esses líderes, estavam homens como:
Esses estudiosos muçulmanos, assim como muitos outros, usaram as mesquitas como base de operações. Lá eles discutiram planos para a revolta, armazenaram armas e educaram os africanos locais. Foi através dessas mesquitas que Malam Bubakar distribuiu seu chamado à jihad (guerra santa, ou resistência militar). Ele escreveu um documento em árabe em que pediu aos muçulmanos para se unificarem em preparação para a vinda da revolta contra seus senhores brasileiros.
As autoridades receberam algumas informações de que uma rebelião estava se formando. Por isso, tomaram medidas preventivas e exilaram Malam Bubakar seis meses antes de a revolta ser agendada. Apesar disso, os planos para a revolta já haviam sidos finalizados e distribuídos para os muçulmanos em toda a Bahia.
A revolta deveria acontecer após a oração do Fajr (amanhecer) no dia 25 de janeiro de 1835, que era o dia 27 de Ramadan do ano 1250 no calendário muçulmano. Alguns muçulmanos consideram o dia 27 como a data mais provável para Laylat al Qadr, a Noite do Decreto, quando o Alcorão foi revelado ao Profeta Muhammad. Os muçulmanos da Bahia escolheram esta data na esperança de que o estado espiritual elevado da comunidade oferecesse maiores chances de sucesso.
Devido ao enorme tamanho da revolta planejada, era muito provável que a informação sobre a revolta chegasse até os policiais da Bahia. Na noite anterior à data programada para a revolta, eles invadiram uma das mesquitas locais e encontraram muçulmanos armados com espadas e outras armas. A luta que se seguiu levou à morte de um policial. Assim, a revolta teve que começar mais cedo do que o planejado.
Sendo assim, algumas horas mais cedo, os revolucionários muçulmanos desta mesquita marcharam para fora da mesquita, prontos para começarem a revolta durante a noite. Eles estavam vestidos com thobes longos e túnicas brancas e kufis (chapéus islâmicos) que claramente os identificavam como muçulmanos. Já que a revolta estava marcada para começar ao amanhecer, nem todas as mesquitas saíram em revolta ao mesmo tempo. Mas, independentemente disso, aqueles que começaram a revolta em torno da meia-noite marcharam pelas ruas de Salvador, reunindo outros escravos (tanto muçulmanos e não-muçulmanos) para se juntarem a eles em sua revolta. Antes de o resto das mesquitas se unirem, havia cerca de 300 homens, escravos e libertos, marchando pela cidade.
O governador da Bahia conseguiu mobilizar as forças armadas locais para enfrentarem os rebeldes. As poucas centenas de africanos agora confrontavam mais de 1000 soldados profissionais com armamento avançado nas ruas de Salvador. A batalha durou cerca de uma hora e provocou a morte de mais de 100 africanos e 14 soldados brasileiros. As autoridades brasileiras venceram a batalha. A revolta nunca conseguiu derrubar o governo local, nem embarcar navios que iriam de volta à África. Parecia ser um fracasso.
Os estudiosos muçulmanos, líderes da revolta, foram levados a julgamento e mortos. Os numerosos escravos que participaram da revolta receberam punições que variaram desde a prisão até chibatadas. Embora, superficialmente, a revolta parecesse uma falha, a história ainda não havia terminado.
Após a revolta, um medo geral dos africanos, especialmente dos muçulmanos, assombrou o povo do Brasil. O governo brasileiro aprovou leis que levaram a uma deportação em massa de africanos à África. Um dos objetivos originais da Revolta da Bahia era voltar à África, de modo que isto pode ser visto como uma vitória parcial para a rebelião.
No entanto, o resultado mais importante foi que a Revolta da Bahia estimulou o movimento anti-escravidão em todo o Brasil. Embora a escravidão tenha continuado a existir no Brasil até 1888, a Revolta iniciou a discussão pública sobre o papel dos escravos e do benefício ou prejuízo que forneceram para a sociedade brasileira. Ela é vista como um dos eventos mais importantes que conduziram para a liberdade dos escravos brasileiros.
É importante notar que o único fator determinante para a Revolta da Bahia era seu caráter islâmico. Foi organizada e liderada por estudiosos muçulmanos, planejadas em mesquitas muçulmanas e apoiada por uma população Africana de maioria muçulmana. Sem o Islam como um fator unificador, tal revolta nunca teria sido possível, nem o efeito que teve teria sido tão grande.
Além disso, o Islam continuou como uma grande força no Brasil por décadas. A reação brasileira violenta para oprimir o Islam no rescaldo da revolta não fez nada para acabar com a religião. Estima-se que em 1910, ainda havia mais de 100.000 muçulmanos em todo o Brasil. Esta é uma prova da força da comunidade muçulmana do Brasil e de sua dedicação ao Islam.
Qualquer discussão sobre a história do Islam no Hemisfério Ocidental deve incluir as ações heróicas desses muçulmanos. O Islam não é uma religião nova no Norte e Sul da América, trazida por imigrantes recentes do Oriente Médio e sul da Ásia, como muitos tendem a acreditar. Pelo contrário, é uma religião que influenciou muito o curso da história da América do Norte e Sul no passado, e continuará a fazê-lo no futuro.
Shareef, Muhammad. The Islamic Slave Revolts of Bahia, Brazil. Pittsburg: Sankore Institute, 1998. Print.
Fonte: Lost Islamic History
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