O vídeo de Bill Warner em que ele tenta fazer uma comparação entre as cruzadas e o “jihad“, é aparentemente muito popular entre militantes e apologéticos cristãos (e por vezes ateus) na atual campanha para demonizar todos os aspectos do Islã. Em seu vídeo, Warner em essência justapõe uma visualização grandiosamente hipérbole das conquistas árabes contra um retrato reducionista das Cruzadas (apenas manipulando pontinhos vermelhos). Bill Warner, ex-professor de física, afirma ser um especialista sobre o ‘’islamismo político’’ e, pelo que podemos ver é que como especialista o mesmo tem proposto diversos disparates absurdos sobre o Islã como religião e sua história.
Enquanto seus motivos para tão ferrenha difamação e distorção do Islã não se mostram claros, é interessante notar como pessoas possuidoras de uma pré-aversão ao Islã são facilmente convencidas por narrativas históricas pobres como a que ele apresentou em seu vídeo. E isto funciona em ambos os lados, pois alguns militantes muçulmanos gostam de retratar as Cruzadas como uma guerra não provocada de agressão que emergiu num vácuo histórico. Esta narrativa não é melhor que a narrativa de Bill Warner, que retrata as cruzadas como uma série de guerras que foram iniciadas para defender a Europa de um avanço militar iminente de hordas islâmicas. Não seria nada surpreendente descobrir que Bill Warner e outros como ele assistiram um pouco demais ‘’O Senhor dos Anéis’’ (substitua a palavra muçulmano por ‘’orc’’ e Europa por ‘’Terra Média’’ no vídeo de Warner, e não será muito diferente da narrativa de Tolkien. Pare estas pessoas, muçulmanos são inerentemente “maus” e cristãos estão sempre “se protegendo”).
Agora, vamos nos aprofundar no que foi dito por Warner. Em primeiro lugar, ele diz que 548 batalhas foram travadas, e não mostra a partir de onde ele obteve essa estatística, apenas uma vaga referência a um “banco de dados”, e a estranha alegação de que eles sabem dessas batalhas por evidencias arqueológicas. É uma afirmação estranha, dado que não há muitas evidências arqueológicas para batalhas durante este período. Na verdade, a maior parte do que sabemos das batalhas e conquistas árabe/islâmicas vem de fontes escritas; cronicas medievais de ambos os lados, algumas escritas tempos depois, e só.
Além disso, ele não consegue estabelecer que mesmo se essas 548 batalhas tivessem ocorrido, elas faziam parte da jihad. Ele não oferece nenhuma informação circunstancial sobre essas batalhas (o que seria fundamental para estabelecer a alegação dele de que foram todas “invasões islâmicas”). Isto é particularmente enganoso quando olhamos, por exemplo, para a Península Ibérica. Muitas das guerras travadas lá não tiveram nada a ver com a jihad, e foram na verdade apenas confrontos entre estados muçulmanos e cristãos, em que às vezes cristãos lutavam do lado de muçulmanos versus outros cristãos e muçulmanos. Na verdade, o famoso El Cid ( Rodrigo Díaz de Vivar ), uma figura histórica popular entre os defensores das cruzadas, era um cavaleiro cristão que uma vez lutou pelo emir muçulmano de Saragoça contra o rei cristão de Aragão.
Até a própria chegada dos muçulmanos na Península Ibérica não pode (ao meu ver) ser chamada puramente de ‘’invasão’’. Tendo em vista que Julian, conde de Sabta (atual Ceuta) pediu ajuda a Musa ibn Nusair (governador omíada do norte da Africa) para por fim ao conflito dinástico que imperava entre os visigodos da Ibéria. O que levou Tariq Ibn Zyad e seus 1.700 homens a entrarem na península, obtendo grande sucesso militar diga-se de passagem, em uma parte da Europa em plena guerra civil e fracasso politico. Algo que teria sido impossível sem ajuda de outros nobres insatisfeitos com o regime despótico do usurpador visigodo Rodrigo, sem falar no auxilio de muitos judeus que já estavam fartos das perseguições religiosas e terríveis sanções pelas quais passavam em mãos cristãs, os quais viram nos muçulmanos um certo alivio.
Warner também afirma que a civilização clássica foi destruída durante a conquista islâmica/ árabe, o que flagrantemente não é verdade. Esta mesma tese foi defendida em 1937 por Henri Pirenne, mas foi descartada por historiadores modernos da antiguidade tardia, por que a metodologia de Pirenne era falha (curiosa a maneira que de tempos em tempos essas teorias históricas já refutadas são ressuscitadas e requentadas por propagandistas militantes como se fossem algo completamente novo e absoluto).
Em vez disso, sabemos agora que a civilização clássica não foi destruída, mas na verdade revivida após as conquistas árabe/islâmicas. O Levante e a Síria depois das conquistas continuaram dominados pela sociedade bizantina – com a mesma organização administrativa, arte, iconografia todas intactas sob o governo muçulmano. Os governantes omíadas denominavam-se ainda como imperadores bizantinos, como por exemplo, em moedas que descrevem Abd al-Malik ibn Marwan, ou mesmo na fortaleza e palácio de Qasr Amra na qual Walid II encheu as paredes com afrescos bizantinos. Diga-me, como é que uma sociedade que detinha a cultura bizantina em tão alta conta, e de fato manteve-a, ser ao mesmo tempo os destruidores da referida cultura? O mundo Islâmico chegou até mesmo a produzir uma escola de pensamento religioso baseada na filosofia clássica grega, a famosa escola muatazilah dos califas abássidas de Bagdá, que não foi só difundida como também forçada sobre diversos eruditos da época. Neste ponto, deve ficar claro que Bill Warner não é um historiador. Eu termino a minha análise da narrativa das conquistas árabe/islâmicas de Warner aqui, movendo-me agora para uma analise do que foi dito sobre as Cruzadas.
A desonestidade intelectual de Bill Warner brilha quando se torna evidente que ele omite partes da história das cruzadas. Aparentemente para Warner a Quarta Cruzada (que foi travada contra outros cristãos em Constantinopla) nunca aconteceu, foi deixada de lado também as Cruzadas do Norte no Mar Báltico (para exterminar pagãos), a cruzada contra Smyrna (1343-1351), a cruzada contra Alexandria (1365), a cruzada a Nicópolis (1396), e a cruzada contra Varna (1444). Por que Warner deixou-as de fora? A comparação é mal interpretada a proporções enormes. Warner conta cada batalha em que os muçulmanos estavam envolvidos (mesmo que elas não fizessem parte da jihad) como parte da Jihad, mas apenas considerando as cruzadas do Levante como válidas para a sua comparação. No entanto, se ele fosse um homem honesto, ele iria colocar todas as batalhas envolvendo muçulmanos contra cada batalha envolvendo cristãos, o que significa que o seu cronograma cruzado deveria começar na Batalha da Ponte Mílvia (312). E invasão por invasão, Warner também não incluiu as portuguesas aos reinos muçulmanos do sudeste asiático, e nem o fato de que TODOS os países muçulmanos do mundo praticamente foram em anos ressentes historicamente falando, invadidos e colonizados por potencias europeias.
O tópico mais importante que eu vou tentar focar aqui não é se as cruzadas foram uma guerra de defesa ou não. A tese de que as cruzadas foram uma resposta puramente defensiva a “imersão islâmica na Europa”, com “hordas muçulmanas em pé às portas da cristandade”, é uma narrativa apologética em defesa das cruzadas que aparenta uma discussão de crianças pequenas no parquinho: “Eles começaram! Eles destruíram o meu castelo de areia! Por isso eu estou certo em bater neles!” (no caso das cruzadas matar, estuprar, incendiar, devastar, escravizar etc.. ou até comer cadáveres dos muçulmanos como os cruzados fizeram após o Cerco de Maara na Síria)
Existem três grandes razões que podem (ao meu ver) explicar as cruzadas:
A Igreja do Santo Sepulcro foi reconstruída após 1042. Em 1077, Jerusalém foi conquistada dos fatímidas pelos seljúcidas (note que ambas as facções eram muçulmanos, embora a partir de diferentes denominações). A súbita mudança na forma como os cristãos foram tratados, chocou a Europa cristã e foi um dos motivadores para os cruzados lançarem suas peregrinações armadas. Assim, dadas estas três causas, não parece muito provável que as cruzadas fossem guerras defensivas.
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