Introdução
Em Nome de Allah, o Infinitamente Bom, o Misericordioso
A vida moderna envolve uma correria diária cheia de barulho, distração e de excesso de informações. Os nossos sentidos sofrem estímulo constante de todas as direções, ao ponto em que um mero momento de repouso em silêncio parece algo impossível para algumas pessoas. Essa agitação contínua nos impede de tirarmos o máximo de cada momento e prejudica a qualidade das nossas orações e a nossa capacidade de recordar de Allah.
Todos sabemos que precisamos de mais presença nas orações, de mais controle sobre as nossas mentes e desejos divagantes. Mas como exatamente podemos alcançar isso? Como podemos nos tornar mais presentes em todos os aspectos da nossa vida, espiritual e temporal? É aí que a prática do exercício da consciência plena (ou da consciência presente) pode nos ajudar a treinar as nossas mentes para serem mais disciplinadas e, dessa forma, podemos aprimorar as nossas adorações regulares e atividades diárias.
Este artigo examina as virtudes da consciência plena e do silêncio na tradição islâmica. Aqui conceituamos de maneira apropriada a meditação no islam e apresentamos um exercício prático para a consciência plena diária que pode nos ajudar a cultivar a vigilância (muraqabah)com Allah e o nosso eu interior.
A Virtude da Consciência Plena e Presente
Em inglês, a palavra mindfulness é definida linguisticamente como “a característica ou estado de perceber ou ser consciente de algo” e, mais especificamente, “um estado mental que se alcança focando a consciência no momento presente, ao mesmo tempo em que se reconhece e aceita os sentimentos, pensamentos e sensações corporais. Aplicado como técnica terapêutica.” No contexto da psicologia moderna, a consciência plena é “uma ferramenta que podemos utilizar para examinar estruturas conceituais.” Observando atentamente como pensamos e sentimos, obtemos a capacidade de alterar as nossas estruturas conceituais ou padrões de pensamento para o nosso benefício. Quando estamos num estado de distração, reagimos aos pensamentos e emoções com simples reflexos e deixamos que eles nos levem para onde quiserem. Em comparação, cultivar um estado pleno de consciência nos dá a capacidade de seguir ou não seguir os nossos pensamentos, como quisermos.
Em outros termos, a consciência plena é uma espécie de metacognição (“consciência da consciência”), uma autoconsciência, consciência daquilo que está realmente acontecendo na nossa mente e no nosso coração. É um fenômeno que atrai a atenção de psicólogos e de outros especialistas da medicina, gerando centenas de publicações científicas, estudos e livros sobre o assunto todo ano. Cultivar a consciência plena, mesmo num contexto não religioso ou neutro, comprovadamente oferece benefícios palpáveis à saúde e ao bem-estar. De acordo com a Associação Americana de Psicologia, muitos estudos avaliados por especialistas demonstram que as práticas da consciência plena (como o relaxamento ou a meditação) ajudam a diminuir o estresse, aprimorar a memória, melhorar o foco e a concentração, diminuir os reflexos emocionais e melhorar as reações pessoais. Essas práticas também promovem a empatia e a compaixão e são usadas com eficácia na terapia cognitiva. O campo fértil da consciência plena na ciência e na prática espiritual é um progresso animador que pede uma investigação crítica.
No contexto islâmico, a consciência presente é a virtude da muraqabah, uma palavra derivada da raiz que significa “vigiar, observar, considerar atenciosamente”. Já podemos ver a proximidade de significado entre “consciência plena”, ou “consciência presente” e muraqabah. Como termo técnico espiritual, muraqabah significa “o conhecimento constante do servo e convicção na supervisão do que é Verdadeiro, glorificado seja, sobre os estados externos e internos.” Isto é, um muçulmano em estado de muraqabah tem o conhecimento pleno e contínuo de que Allah o vê, por dentro e por fora. É um estado completo de autoconsciência vigilante na relação com Allah no coração, na mente e no corpo. A fundação da muraqabah é o nosso conhecimento de que Allah está sempre nos observando em todos os momentos e, como consequência, desenvolvemos maior atenção e cuidado nas nossas próprias ações, pensamentos, sentimentos e estados interiores de existência. Pelas palavras de Allah: “E sabei que Allah sabe o que há em vossas almas: então, precatai-vos d’Ele.”
Ibn al-Qayyim e Al-Ghazali ambos têm capítulos em seus livros sobre os méritos e a as realidades da muraqabah. E não é um simples traço recomendável de caráter, mas a realização do traço de caráter supremo, da excelência espiritual (al-ihsan). Como o Profeta ﷺ definiu no famoso hadith de Gabriel, a excelência espiritual “é adorar Allah como se O visse pois, se não O vê, Ele certamente o vê.” Em outras palavras, a excelência espiritual é ser completamente consciente e atento a Allah em todos os momentos – o ápice da fé. De acordo com Sheikh Al-Tuwayjiri:
A excelência espiritual é a essência da fé, seu espírito, e a perfeição dela vem do aperfeiçoamento da presença (al-hudur) com Allah, o Poderosíssimo, e da consciência plena d’Ele (muraqabatihi), do vasto temor a Ele, do amor por Ele, do conhecimento d’Ele, de se voltar a Ele (tawba) e da sinceridade a Ele.
O fruto da muraqabah, sem contar a recompensa eterna do Paraíso na próxima vida, é um estado de calma e tranquilidade que leva ao contentamento nesta vida – “Os meios que levam ao repouso (al-saikinah) são produzidos pela obtenção do servo da muraqabah pelo seu Senhor, glorioso e exaltado Ele é, ao ponto em que é como se pudesse vê-Lo.” Todos os estados mentais e espirituais positivos são derivados dela, “pois a muraqabah é a fundação de todas as obras do coração.”
Muraqabah é o cumprimento da adoração a Allah de acordo com o entendimento apropriado dos belos nomes que transmitem o conhecimento perfeito d’Ele. Ibn Al-Qayyim conclui seu capítulo sobre a muraqabah com:
Muraqabah significa ser devoto aos nomes do Vigilante (Al-Raqib), o Guardião (Al-Hafizh), o Onisciente (al-‘Alim), o Oniouvinte (Al-Sami‘), o Onividente (Al-Basir). Portanto, quem quer que compreenda esses nomes e seja devoto a cumpri-los, obterá a muraqabah.
A muraqabah necessariamente inclui a consciência plena das intenções, dos pensamentos, das emoções e dos outros estados interiores de si mesmo. Al-Murta‘ish disse: “Muraqabah é a observação do nosso ser mais profundo (al-sirr), é estar ciente do oculto a todo momento e a cada palavra.” A cada palavra que falamos e cada pensamento que decidimos entreter, devemos estar cientes dos nossos padrões de pensamento e estados emocionas para reagirmos à nossa experiência interna da melhor maneira. Como disse Ibn Al-Qayyim, a manutenção da muraqabah interior se dá “na vigilância dos pensamentos, das intenções e dos movimentos interiores… Essa é a realidade do coração puro (al-qalb al-salim), e ninguém se salva exceto se for a Allah com um coração assim. Isso em si é a realidade do refinamento interior (tajrid) dos virtuosos, dos devotos e dos que têm consciência de Deus. Todo refinamento interior que não seja esse, é deficiente.”
Para resumir, segundo Sheikh ‘Abd al-Qadir al-Jilani, a muraqabah se realiza em quatro aspectos:
É esse terceiro aspecto – a consciência do coração e da mente – que o exercício da consciência plena na estrutura islâmica pode nos auxiliar a obter: “Conhecer o que caracteriza (o ego), o que ele quer, ao que ele convoca e o que ele comanda.” Este tipo de exercício é um método de se treinar a mente a identificar a maneira com que os pensamentos e os sentimentos funcionam dentro de nós, com o objetivo de exercer mais controle sobre eles e, dessa forma, enriquecer o nosso bem-estar mental e espiritual.
Práticas não religiosas ou neutras de consciência plena, promovidas por psicólogos terapeutas, focam nesse terceiro aspecto, sem baseá-lo numa visão teológica, para que tenham mais apelo à população diversificada dos seus pacientes e à sociedade plural como um todo. Algumas dessas práticas têm origem nas tradições budistas e hindus, mas tiveram seus princípios ontológicos religiosos removidos. Essa abordagem não religiosa, por si, ainda gera benefícios à saúde e ao bem-estar nas nossas vidas. Ela afia a mente, sem dúvida, mas a mente é uma ferramenta que pode ser usada para o bem e para o mal. A prática neutra da consciência plena pode ser usada por pessoas malignas, que não se baseiam num ponto de vista ético. A clareza mental obtida com essa prática pode ser usada por um vilão que pretende enganar ou prejudicar as outras pessoas. Certamente, fazer isso seria abusar da consciência – mais motivos para abordarmos o assunto de maneira crítica, segundo a orientação islâmica.
Para os muçulmanos, a consciência plena é apenas um aspecto – contudo, um aspecto central e muitas vezes ignorado – dentro da composição da muraqabah. Em seu todo, a consciência islâmica envolve uma consciência abrangente do básico da teologia, da jurisprudência, da ética e da nossa própria constituição psicológica sutil.
Para começar a colocar essas inspirações em prática, ainda é necessário que saibamos por que é tão importante aprender a gostar de simplesmente estar presente em silêncio, sem distração ou ruído do mundo, das nossas palavras ou dos nossos monólogos internos.
As Virtudes do Silêncio e do Retiro
O famoso ditado diz: “O silêncio é de ouro.” Nossos antepassados virtuosos entendiam que o silêncio (al-samt) era o estado padrão apropriado da existência, segundo o Profeta ﷺ, “Quem acredita em Allah e no Último Dia, que fale o bem ou permaneça em silêncio.” As palavras que saem da nossa boca devem ser verdadeiras e benéficas – se não, devemos ficar quietos. Se não tivermos nada de bom a falar, não devemos falar nada. De certo, há momentos em que devemos abrir a boca para falar – para apoiar boas causas ou fazer oposição a algo ruim, por exemplo. O Profeta ﷺ, disse: “Que Allah tenha misericórdia de quem falou corretamente e foi recompensado ou de quem ficou em silêncio e permaneceu em segurança.” A fala neutra, que não beneficia e nem prejudica é permitida, mas por motivos espirituais e morais, é melhor que nos acostumemos ao silêncio.
O silêncio tem um efeito importante no nosso coração e no nosso caráter e o hábito de falar coisas ruins ou frívolas resulta num coração impuro. O Profeta ﷺ disse: “A fé do servo não será correta enquanto seu coração não for correto, e seu coração não será correto até que sua língua seja correta.” O coração e a língua são ligados de forma inextricável. Portanto, o ato de vigiar a fala também é o de vigiar o coração. Com essa finalidade, aprender a não somente tolerar, mas gostar do silêncio é um aspecto do desenvolvimento do bom caráter. O Profeta ﷺ disse a Abu Dharr (ra), “Você deve ter um bom caráter e observar longos períodos de silêncio (tuli al-samt). Por Aquele em cuja mão está a alma de Muhammad, ninguém carrega obras mais amadas a Allah do que essas duas.” O silêncio também nos ajuda a derrotar o diabo e os seus sussurros satânicos que vêm na forma de pensamentos malignos. O Profeta ﷺ disse: “Observem longos períodos de silêncio, pois isso afasta o Satanás e os ajudará na sua religião.” E Abu Sa‘id Al-Khudri (ra) disse: “Fiquem em silêncio exceto quando verazes, pois assim derrotarão o Satanás.”
Além disso, a reflexão silenciosa é o que indica que a pessoa é sábia, com o Profeta ﷺ como exemplo primário. Simak disse a Jabir Ibn Samrah (ra): “Já se sentou na companhia do Mensageiro de Allah ﷺ?” Jabir respondeu: “Sim, ele ficava em silêncio por longos períodos e ria pouco.”Abu al-Darda’ (ra) disse: “O silêncio é uma forma da sabedoria e ainda assim poucas pessoas o praticam.” Wahb ibn Munabbih disse: “Os médicos concordam que a cabeça da medicina é a dieta e os sábios concordam que a cabeça da sabedoria é o silêncio.” Silêncio dessa natureza é uma habilidade que deve ser aprendida, como disse Abu al-Dhayyal: “Aprenda a manter o silêncio.” Desenvolver o talento do silêncio e o amor por ele é parte integral do processo de aprimorar as nossas orações e atos de adoração. Sufyan al-Thawry disse: “Dizem que observar longos períodos de silêncio é a chave para a adoração.” A nossa prática da consciência presente silenciosa necessariamente levará ao aperfeiçoamento das nossas orações e dos nossos outros atos de adoração.
Em relação à muraqabah, o silêncio em reclusão em períodos regulares de tempo cultiva a presença, a consciência silenciosa da mente do aqui e agora. Perguntaram a Abu Bakr al-Farisi sobre o silêncio do espírito (samt al-sirr) e ele disse: “É o abandono da preocupação com o passado e com o futuro.” Quando refletimos em silêncio ou exercitamos a consciência plena, temos tempo para simplesmente estarmos presentes no momento sem nos preocupar com o que seja passado ou futuro ou em qualquer outro lugar da criação. É uma oportunidade para cultivar a presença perante Allah (al-hudur), o mesmo tipo de presença que devemos ter durante as orações rituais. Certamente há momentos apropriados para pensarmos no passado e no futuro – para aprendermos com os nossos erros, planejar nossas ações, viver a vida do dia a dia e refletir sobre o nosso destino. O objetivo de se aprender a ser presente em silêncio é que pensemos sobre passado e futuro somente até o ponto em que isso seja necessário e benéfico.
O retiro para a adoração é o companheiro íntimo do silêncio – eles andam lado a lado. Os que têm o hábito regular de adorar e recordar de Allah silenciosamente estão entre os mais recompensados na vida eterna. O Profeta ﷺ disse: “Os que estão em retiro (al-mufarridun) se adiantaram.” Eles perguntaram: “Ó Mensageiro de Deus, quais são os que estão em retiro?” E o Profeta disse: “São os homens e as mulheres que se recordam de Allah frequentemente.” Al-Munawi explica esse hadith: “Os que estão em retiro são aqueles que buscam a solidão e se reservam das pessoas para ficarem sozinhos e livres para adorar, como quem se recolhe para a devoção a Allah.” O isolamento, praticado da maneira correta, é uma cura para as sensações ruins do coração, com disse Ibn al-Qayyim: “No coração, há distúrbios que só podem ser remediados respondendo para Allah. Nele, há um sentimento de desolação que só se remove por meio da intimidade com Ele, em retiro (khalwah).”
Imagine agora como a situação da nossa vida seria melhor se pudéssemos ficar sozinhos em nossos quartos, contentes com simplesmente estar diante de Allah. Sem a necessidade de smartphones, jogos, televisão, eletrônicos, vícios ou distrações. Não seríamos mais calmos, mais felizes e mais satisfeitos? O teólogo e cientista francês, Blaise Pascal, nota:
Descobri que toda a infelicidade do homem se origina por um simples fato: de que ele não é capaz de ficar silêncio nos seus próprios aposentos. Um homem que tenha o suficiente para viver, se soubesse o que fazer para ficar contente em casa, não sairia para o mar ou nem sitiaria cidades.
De fato, se se cada um de nós fosse disciplinado o suficiente para se contentar com a vida interior sem desejos incessantes por estímulos externos, o mundo seria um lugar melhor para todos.
Dessa forma, como podemos aprender a nos contentar com o silêncio e, assim, melhorar a nossa consciência de Allah e os nossos estados interiores de existência? O islam tem uma tradição de meditação profunda e talvez esquecida, projetada para nos auxiliar com isso.
A Meditação no Islam
Podemos definir meditação como “uma concentração contínua ou longa, reflexão… contemplação e devoção religiosa ou introspecção espiritual.” A palavra vem do latim meditatio (pensar, meditar). Como termo geral, meditação se refere a qualquer atividade mental deliberada e focada. Em práticas terapêuticas ou espirituais, é comprovado cientificamente que diferentes tipos de meditação resultam na consciência plena ou presente e no bem-estar na vida diária que é associado a ela. Segundo a Enciclopédia da Psicologia Positiva(Encyclopedia of Positive Psychology): “A meditação, independentemente da forma em particular, é aplicada para se alcançar o estado de consciência plena na pós-meditação.” A meditação pode ser feita de muitos jeitos e para muitos fins. Para alguns, ela é apenas uma maneira de relaxar e de aliviar o estresse, um jeito de desacelerar o pensamento. Outros meditam contemplando intensamente alguma ideia ou focando sua atenção em Deus ou alguma outra coisa.
É compreensível que muitos muçulmanos hesitem ou sejam céticos quanto a palavra “meditação”, pois há muitos tipos de meditação e alguns deles são especificamente associados com crenças e práticas religiosas que vão contra o islam. No entanto, o fato é que os nossos antepassados praticavam muitas formas diferentes de meditação, no sentido puramente linguístico da palavra, e por meio dessas meditações eles alcançavam estados espirituais avançados e aprimoravam seus atos de adoração, suas orações e a recordação. A chave para revivificar as práticas deles é examinar de perto como eles conceitualizavam a meditação e imitar a maneira com que praticavam dentro da estrutura da crença, da adoração, da ética e da etiqueta islâmicas. Podemos até mesmo incorporar percepções modernas da psicologia e de praticantes de consciência presente, contanto que permaneçamos baseados na tradição islâmica, como o Profeta ﷺ disse: “A sabedoria é a posse perdida do crente. Então, onde quer que ele a encontre, ele tem direito sobre ela.”
A oração ritual (salah) nos tempos modernos é aprimorada e auxiliada com equipamentos de som. No período clássico, utilizavam a ciência da arquitetura para aprimorar a acústica das recitações do Alcorão. Nada disso pode ser considerado como inovação religiosa detestável (bid‘ah), pois não alteram nem a crença, nem a adoração e nem a ética islâmicas. De maneira semelhante, as descobertas modernas sobre a consciência e, em particular, dos exercícios modernos de consciência, podem ser instrumentos que auxiliam no aperfeiçoamento da oração e da espiritualidade.
Ibn Al-Qayyim fez uma das melhores e mais concisas explicações dos diversos significados de “meditação” no islam. Ele diz que as seguintes práticas são parte importantíssima da nossa preparação para a próxima vida: “A reflexão (tafakkur), a recordação, a avaliação (nathr), a meditação (ta‘amul), a contemplação (i‘tibar), a deliberação (tadabbur) e a ponderação (istibsar).” Cada uma dessas palavras representa diferentes tons de atividades mentais que podem ser consideradas formas de meditação. Os significados delas todas se mesclam em muitas partes, mas também há diferenças sutis entre eles. Ibn Al-Qayyim prossegue:
Chama-se “reflexão” porque nela utilizamos o pensamento e há a aquisição dele. É chamada “recordação” pois é o ato de se ir buscar o conhecimento importante após termos nos distraído ou nos ausentado dele… Se chama “meditação” pois é a análise repetida, vez após vez, até que fique evidente e descoberto no coração. Se chama “contemplação” – tirar lições – pois a pessoa extrai lições e as aplica em outros lugares… Se chama “deliberação” pois trata de examinar as conclusões dos assuntos, seus finais e consequências, e ponderar sobre eles.
Todos esses tipos de meditação islâmicos envolvem alguma forma de recordação ou consciência de Allah, com o propósito de purificar o coração dos sentimentos sórdidos e a mente dos maus pensamentos. Cada alma humana é como um espelho que é polido com a consciência presente ou manchado com a falta dela. Al-Ghazali diz:
O coração está na mesma situação que um espelho cercado de assuntos influentes, e essas características alcançam o coração. Quanto às características louváveis que mencionamos, elas lustram o espelho do coração e aumentam o seu brilho, sua luz e sua resplandescência até que a clareza da verdade seja refletida nele, e a realidade daquilo que buscamos na religião seja desvelada.
Com o cultivo da recordação e da muraqabah de Allah por meio de diversos exercícios e atividades mentais, efetivamente “polimos” o nosso coração e desvelamos a natureza virtuosa da alma (al-nafs al-rabbaniyyah), que é o estado espiritual puro que Allah nos criou para habitarmos. Abu al-Darda (ra) disse: “Em verdade, tudo possui um estado de polimento, e o polimento do coração é a recordação de Allah, o Poderosíssimo.” E Ibn al-Qayyim diz:
O coração se mancha com duas coisas: a distração (al-ghaflah) e o pecado. E é polido com duas coisas: pela busca do perdão e pela recordação de Allah.
Por exemplo, refletir sobre as bênçãos de Allah é um excelente ato de adoração e é uma atividade mental (meditação) que produz gratidão no coração e expulsa dele a ingratidão. ‘Umar ibn ‘Abdul ‘Aziz disse: “Falar recordando de Allah, o Poderosíssimo é bom, e pensar sobre as bênçãos de Allah é o melhor ato de adoração.” Recordar de Allah com palavras exteriores é uma virtude, sem dúvida, mas pensar sobre as bênçãos que Ele nos concede é ainda melhor, porque ocorre necessariamente no interior; nem sempre estamos completamente conscientes das palavras audíveis que falamos, mesmo quando são boas.
Além disso, pensar sobre a vida eterna de maneira equilibrada e informada deve levar a resultados psicológicos positivos, ao contentamento com o nosso lugar no mundo e à rejeição do materialismo. Abu Sulayman disse:
Pensar sobre o mundo é um véu sobre a vida eterna e um castigo para as pessoas. O pensamento sobre a vida eterna gera sabedoria e vida no coração. Quem vê o mundo como protetor, virá a aceitar as suas ilusões.
Por outro lado, pensar sobre o mundo e as suas dificuldades mais do que o necessário leva à infelicidade a torna o coração impuro.
Não podemos pensar sobre Allah e sobre o mundo ao mesmo tempo; ou um ou outro. Muito pensamento desnecessário sobre o mundo enfraquece a nossa consciência no geral, principalmente diminuindo a esperança em Allah que nos encoraja a realizar boas obras e o temor de Allah que nos faz evitar pecados. Al-Nasrabadhi disse: “A esperança nos motiva a agir com obediência e o temor nos distancia da desobediência. A muraqabah nos leva às trilhas da verdade.” Assim, devemos abrir um tempo para o silêncio todo dia, para refletirmos sobre Allah e a vida eterna, a fim de que aumentemos a nossa consciência da presença d’Ele, a nossa gratidão pelos Seus inúmeros favores e para nos prepararmos para a próxima vida.
A leitura do Alcorão, que foi chamado de “a Recordação” (al-Dhikr), é uma das formas de meditação mais poderosas e que mais carrega recompensas, como Allah disse: “Este é um Livro bendito, que fizemos descer, para ti, a fim de que eles ponderem seus versículos e a fim de que os dotados de discernimento meditem.”
Al-Ghazali recomenda que estabeleçamos quatro práticas espirituais diárias distintas (al-watha‘if al-arba‘ah): a súplica (dua‘), a recordação (dhikr), a recitação do Alcorão (qira‘at) e a contemplação (fikr). Essa variedade de práticas nos impede de ficarmos muito entediados com alguma delas, enquanto também fortalece o coração e a mente de maneiras diferentes e complementares. Da mesma forma que uma dieta equilibrada aplica diferentes grupos de alimentos para a nutrição, a vida espiritual equilibrada depende de diferentes atos de adoração e meditações para que tenha um sustento íntegro.
Uma das práticas espirituais descritas por Al-Ghazali é muito semelhante com práticas modernas de consciência plena, mas com uma perspectiva teológica islâmica. Para ele, simplesmente outra forma de dhikr. O adorador se senta em isolamento, esvazia o coração de todas as preocupações e “não esparrama seus pensamentos na recitação do Alcorão, nem ponderando sobre a interpretação, nem com livros de hadith, nem com nada. Em vez disso, ele busca não deixar que nenhum pensamento entre em sua mente além de Allah, o Altíssimo.” O adorador faz isso para implantar a “presença do coração” até que “seu coração se torne diligente na recordação.” A partir daí, Al-Ghazali prossegue:
Se as intenções dele forem verdadeiras, seus assuntos estiverem em ordem e a sua diligência melhorar, ele não será atraído pelos seus desejos baixos e não se preocupará com pensamentos divagantes sobre o mundo. A realidade da Verdade brilhará em seu coração.
Cada uma das formas de meditação islâmica tem seu lugar e função, e muitas vezes elas coincidem em parte e se misturam. Com o propósito de alcançar a autoconsciência sensata, como discutimos, estamos interessados no ato de ta‘amul interior, o ato de examinar e observar continuamente a nossa vida interior em retiro silencioso até que as realidades do nosso estado mental e emocional (“estruturas conceituais”) fiquem claras para nós. Essa é uma técnica específica para cultivar a consciência dos nossos estados interiores, para percebermos os nossos pensamentos na sua origem em vez de nos deixarmos levar por eles antes mesmo de sabermos o que aconteceu.
Para que tenhamos mais consciência do que acontece dentro de nós, temos de compreender como os nossos pensamentos vão passando de estágio em estágio até se tornarem ações. Segundo Al-Suyuti, o primeiro estágio dos pensamentos é um al-hajis, um pensamento súbito e passageiro que vem e vai antes que possamos considerá-lo. Podemos até nem sequer perceber que ele estava ali. O segundo estágio é al-khatir, um pensamento ao qual damos atenção e consideramos. Aqui temos a escolha entre dar continuidade a esta linha de pensamento ou ignorá-la. O terceiro é hadith al-nafs, o nosso diálogo interno ou “a fala do ego”, enquanto damos atenção ao pensamento e consideramos agir com base nele. Os estágios finais são al-ham e al-‘azm, a decisão e a determinação de colocar o pensamento em prática. Obviamente, quando os pensamentos são bons, podemos e devemos dar atenção a eles. O problema vem com os pensamentos ruins. Como aprendemos a ignorá-los, principalmente nas vezes que eles parecem ser poderosos e esmagadores?
O exercício da consciência presente neste contexto não é impedir os pensamentos, mas simplesmente tomar ciência deles e aprender a deixá-los para trás. À medida que nos tornamos mais conscientes dos nossos pensamentos, começamos a perceber uma distância entre nós e eles. Nos dissociamos deles e passamos a não nos identificar com eles; nossos pensamentos involuntários são apenas “acontecimentos” (hadath) e não necessariamente refletem o que nós somos. Os pensamentos iniciais (al-hajis) podem surgir involuntariamente do ego, nas palavras de Allah: “Nós criamos o homem – sabemos o que sua alma sussurra a ele.” Os pensamentos também têm origem externas, os sussurros (al-waswasah) de demônios ou anjos. O profeta ﷺ disse:
Em verdade, o Satanás tem influência com o filho de Adão e o anjo tem influência. Quanto a influência do Satanás, ele promete o mal e nega a verdade. Quanto a influência do anjo, ele promete o bem e afirma a verdade. Quem encontrar esse bem, que saiba que vem de Allah e louve a Allah. Quem encontrar outra coisa, que busque o refúgio em Allah do Satanás maldito.
Então o Profeta ﷺ recitou o versículo: “Satã promete-vos a pobreza e ordena-vos a obscenidade, e Allah promete-vos perdão d’Ele e favor.” Independentemente de onde se originarem esses pensamentos, involuntariamente no ego subconsciente ou externamente por sugestões satânicas ou angélicas, o estudo da consciência plena nos ensina a percebermos melhor o espaço entre nós e os nossos pensamentos à medida em que eles acontecem, antes que virem pensamentos voluntários e conscientes.
Não somos pessoas más por termos pensamentos maus; todos temos pensamentos ruins, independentemente do quão virtuosos sejamos. É prejudicial e improdutivo nos carregar de culpa por termos pensamentos ruins. O Profeta ﷺ disse: “Em verdade, Allah perdoou a minha nação pelos seus maus pensamentos dentro deles enquanto eles não falarem ou agirem baseados nesses pensamentos. Só prestaremos conta dos nossos pensamentos se conscientemente decidirmos agir por causa deles. Quando treinarmos para sermos mais conscientes dos pensamentos, acabamos por obter algum espaço entre nós e eles, adquirindo tempo para reagir apropriadamente, ignorando o que for ruim e realizando o que for bom.
Considere os pensamentos ruins que vêm do Satanás ou do ego como se fossem um cachorro que está, no fim das contas, sob o controle de Allah. Ibn Taymiyyah disse: “Se o cão do pastor lhe incomodar, não se ocupe brigando com o cachorro e se defendendo dele. Você deve pedir para que o pastor afaste o cachorro de você.” Não tente combater pensamentos maus se envolvendo com eles ou tentando suprimi-los. Em vez disso, volte sua atenção à consciência e à recordação, segundo as palavras de Allah: “E quando alguma tentação de Satanás te assediar, ampara-te em Deus”. É por isso que se esforçar demais para suprimir um pensamento ruim – dando a ele, dessa forma, mais atenção do que ele merece – muitas vezes é um tiro que sai pela culatra e acaba piorando a situação. Acabamos conversando com nós mesmos sobre o pensamento ruim (“Sou tão ruim por pensar isso!” “Não devo pensar assim!”), o que alimenta o pensamento, o dando energia para se manter vivo.
Sob outro ponto de vista, veja sua mente como se fosse uma lagoa parada e os seus pensamentos como pequenas ondas e agitações na superfície. Cultivamos a consciência constatando as ondas e aprendendo a ou nos envolver com elas intencionalmente ou ignorá-las. Pensamento ruins são como ondas numa lagoa. Se as tocarmos ou nos envolvermos com elas, apenas fortaleceremos as ondas. Não podemos rebatê-las com um bastão; precisamos aprender a deixá-las irem por si mesmas. Com o exercício silencioso da consciência, deixamos as ondas e as perturbações da superfície simplesmente dissiparem. As perceba, as reconheça e deixe-as passarem sozinhas, enquanto se volta à muraqabah com Allah. Em resumo, assim é o exercício da consciência plena.
Quando exercitamos essa consciência, não buscamos o êxtase espiritual – mesmo que, às vezes, a prática resulte em sensações agradáveis. Muitas pessoas começam a meditar ou se envolvem com práticas de consciência somente porque desejam o enlevo espiritual, mas a sensação não é o que deve motivar esse exercício. Trata de prática – treinamento (riyadah) – da mesma forma que exercitamos o nosso corpo; às vezes o exercício é agradável, o que sem dúvida é bom, mas o propósito é melhorar a saúde e a força. De maneira semelhante, a consciência plena é um meio para aprimorarmos a força mental e, numa metodologia islâmica, a força espiritual.
Também não fazemos isso para substituir os nossos atos regulares de adoração. Entre outros benefícios, o exercício funciona como um tipo de preparação para a adoração principal, como quando alguns muçulmanos se preparam para o Ramadan comendo menos nos dias em que não jejuam. Imagine esse exercício como treinar para o basquete e a oração ritual (salah) como a partida em si; reforçamos a nossa muraqabah através de exercício e de prática para quando formos aplicar a muraqabah, no salah, estejamos na melhor forma mental e espiritual. O salah é a apresentação, o exercício da consciência é o ensaio.
Na parte seguinte, apresentamos uma maneira fácil de praticar a consciência plena diariamente num contexto islâmico. Certamente, não há método prescrito de consciência presente no islam da mesma maneira que há no caso das orações rituais diárias. Esse exercício é uma atividade voluntária que complementa os atos obrigatórios de adoração, embora incorpore outros atos de adoração como a recordação (dhikr) e súplicas (dua‘). Quem praticar regularmente verá que é possível incrementar a prática, adaptá-la e personalizá-la de acordo com as preferências pessoais, da mesma maneira que é possível se basear nos princípios comuns dos exercícios físicos para desenvolver a nossa própria rotina pessoal na academia. Cada alma humana é diferente e cada situação também – não há uma mesma maneira universal para nos envolvermos com o exercício da consciência. Portanto, cada um deve descobrir o que funciona melhor para si mesmo.
O Exercício da Consciência Plena no Islam
Para começar, escolha uma hora do dia em que possa ficar sozinho num lugar silencioso. Alguns muçulmanos preferem o horário antes da oração da alvorada (fajr) ou de outra oração, antes ou após o trabalho, no horário de almoço ou mesmo antes de dormir. Praticar brevemente antes das orações é particularmente benéfico como preparação mental para a oração. É bom escolher uma hora regular para o exercício diário, mas podemos praticá-lo a qualquer hora do dia para que entre em concordância com a nossa agenda. Os iniciantes que desejam dar continuidade à prática devem alocar ao menos cinco minutos por dia para que o hábito se solidifique no longo prazo e, aos poucos, aumentar esse tempo como acharem melhor. Na medida em que você ver os efeitos positivos da prática e aprender a desfrutar do silêncio e do repouso simplesmente estando presente, pode ser que deseje fazer o exercício por mais tempo.
Em seguida, escolha uma postura que ache confortável. Você pode sentar numa cadeira, numa almofada confortável ou mesmo deitar-se de lado na cama, pois Allah louva aqueles “que se recordam de Deus em pé, sentados e deitados.” O objetivo é encontrar uma postura que seja relaxante e confortável, mas não ao ponto que o faça dormir. Vale notar que a recordação meditativa de Allah em outra situação – quando deitamos para o sono – pode nos auxiliar a dormir. Ibn al-Qayyim diz: “O Profeta ﷺ ia dormir quando era apropriado, sobre o seu lado direito e se recordando de Allah até que o sono tomasse conta dos seus olhos.”
Agora, comece se focando na sua respiração natural. Gradualmente, relaxe a tensão muscular que há no seu corpo: seus braços, suas pernas, seu centro, sua mandíbula. Pode fechar seus olhos ou apenas baixá-los. Quando começar a respirar relaxado, procure constatar o estado do seu coração e da sua mente nesse momento. O que está sentindo? O que está pensando? A sua mente está correndo ou está calma? Tente repousar a sua mente se focando na sua respiração natural e relaxada, somente sentindo a energia e a vida que Allah deu a você no seu corpo. Sinta uma gratidão profunda por Allah pela sua respiração, pela sua vida e por estar neste momento.
Na medida em que entra em estado de repouso no seu espaço interior, comece a perceber o sentimento de muraqabah com Allah. Saiba e sinta que Ele lhe observa: “Ele está convosco, onde quer que esteja.” Ele sabe tudo o que está acontecendo dentro de você neste momento e em todos os outros. Se concentre no sentimento de muraqabah neste estado de silêncio interior (samt al-sirr). Tente parar de falar consigo mesmo (hadith al-nafs) e de se envolver com linhas de pensamento. Aquiete o seu diálogo interno o máximo que conseguir e apenas se concentre em estar presente com Allah no momento.
Quando a sua mente começar a divagar – e ela certamente vai – busque trazer a sua atenção de volta ao centro do seu ser e à sua presença neste momento com Allah, silenciosamente recitando recordações de Allah. O Profeta ﷺ usava súplicas para voltar para o estado de muraqabah quando se distraia. O profeta ﷺ disse: “Em verdade, às vezes há névoa sobre meu coração. Então busco o perdão de Allah cem vezes no dia.” Al-Nawawi explica este hadith: “Dizem que ele significa que havia períodos em que ele ficava desatento da recordação de Allah, o que era o seu estado normal. Quando ele tinha um momento de desatenção, ele considerava isso um pecado e pedia perdão.” Mesmo o Profeta ﷺ às vezes tinha curtos períodos de esquecimento e buscava o perdão de Allah (ele dizia “astaghfirullah”) para voltar ao estado de muraqabah. Se assim era a condição dele, então quanto mais podemos esperar que as nossas mentes não se distraiam?
Neste exercício, a súplica ou recordação age como uma “âncora” para sua a muraqabah. “Âncora” é algo que dizemos internamente quando nossa mente se distrai, que nos ajuda a trazê-la de volta ao centro do ser e à atenção. Não é necessariamente em que focamos concentração intensa e que repetimos e repetimos. Em vez disso, é uma oração que acalma e que a mente passará a relacionar com o estado de muraqabah, tanto durante quanto fora do exercício. É melhor escolhermos uma âncora entre as variadas súplicas autênticas da Sunnah: “Duas palavras são amadas pelo Misericordioso, leves para a língua mas pesadas na balança: Glorificado e louvado seja Allah (subhan Allahi wa bi hamdih) e glorificado seja Allah, Todo Poderoso (subhan Allahi al-‘Azhim).” E novamente: “A melhor recordação é declarar que não há deus senão Allah (la ilaha illa Allah), e a melhor súplica é declarar que todo o louvor é para Allah (al-hamdulillah).” Buscar o perdão de Allah (al-istighfar) era uma das âncoras do Profeta ﷺ, então nada poderia ser melhor. A sua âncora pode ser também um dos belos nomes de Allah que evocam a recordação e a atenção no seu coração. Podemos também usar uma combinação de tudo isso que foi dito.
Enquanto estiver presente neste momento perante Allah, a mente voltará a vagar muitas vezes para a desatenção e distração por causa dos pensamentos que surgem. Tudo bem. Não há nada de errado com isso. Na verdade, é completamente normal. Mas toda vez que usar a sua âncora (recordação e súplica) para voltar para o estado de muraqabah, é como fazer uma flexão ou abdominal mental. Por meio da prática contínua, fortalecemos os nossos músculos mentais e espirituais. Não se culpe ou se repreenda quando sua mente se distrair, simplesmente traga ela de volta suavemente para a atenção silenciosa com a sua âncora. Isso que é o ato de ta‘amul – constantemente levarmos nós mesmos de volta ao estado de muraqabah, com Allah e com o nosso eu interior, até que esse estado vire um hábito natural e confortável.
Pode ser que as nossas mentes não parem durante o exercício, se perdendo o tempo todo até acharmos que não obtivemos nada no exercício. Isso é uma noção errada. O melhor exercício de muraqabah é aquele que completamos, ponto final. Independentemente do quanto a mente passar desatenta, cada vez que você a trouxer de volta para a muraqabah ela se fortalece. E cada vez que você menciona o nome de Allah dentro de si mesmo ou alimenta silenciosamente a gratidão por Ele lhe ter dado energia e respiração, os anjos acrescentam uma boa obra no seu registro, e são polidas algumas das manchas de ferrugem do seu coração.
Os Frutos do Exercício Consciente
Se fizer dessa prática simples um hábito regular, verá resultados positivos que se acumulam no decorrer do tempo. Você verá que ficar presente na oração se tornará mais fácil e mais natural do que antes. Você será capaz de aliviar o estresse e alcançar o estado de relaxamento mais facilmente. Também será capaz de focar a sua atenção com mais facilidade quando for necessário, terá mais facilidade para lidar com os momentos difíceis da vida e mais compaixão com os outros. A sua âncora (recordação ou súplica) no exercício poderá ser usada a qualquer momento para lhe trazer de volta para o estado de muraqabah, onde quer que esteja e independentemente do que estiver fazendo. É claro, por mais que a prática da consciência presente venha a se tornar algo agradável, não devemos nos dedicar a ela ao ponto de deixarmos de lado outros atos excelentes de adoração, como as orações voluntárias, o jejum ou a recitação do Alcorão.
Um dos resultados mais importantes da prática é no sentido da medida de controle que obtemos sobre os nossos pensamentos e sobre as nossas emoções. Como nos exercitamos para perceber os pensamentos em sua origem, em outros momentos teremos mais facilidade para percebermos os pensamentos ruins na origem deles. Isso nos dá um espaço de tempo para reagirmos a eles antes que comecemos a seguir alguma linha de pensamentos ruins, antes de que tomemos alguma ação inspirados nela sem mesmo percebermos. Agora podemos olhar para os pensamentos ruins como ondulações numa lagoa, fadados a se dissiparem enquanto estivermos conscientes deles quando forem gerados pela mente subconsciente (ou pelo Satanás) e deixá-los passar sem nos envolvermos com eles ou dialogar com nós mesmos sobre eles. Quando tivermos algum pensamento bom, o perceberemos mais rapidamente e assim poderemos alimentá-lo como quisermos. O objetivo não é nos dissociarmos dos pensamentos por completo, como ensinam alguns praticantes da consciência plena ou presente, mas somente direcioná-los com mais eficácia para onde quisermos.
Um mecanismo parecido também pode ser aplicado com sentimentos e sensações. Na medida em que nos acostumamos a perceber mudanças interiores sutis, reconhecemos também a distância entre os sentimentos e a nossa reação a eles. Por exemplo, o Profeta ﷺ disse: “Não se enraiveça.” Mas todos nós, inevitavelmente, sentimos raiva e temos pensamentos raivosos em certas situações. Como Ibn Hajar explica, os sábios dizem que o significado do hadith é “evitar o que causa a raiva e não nos expor ao que incita a ela… nem fazer aquilo que a raiva nos comanda a fazer.” Na medida em que tomamos mais ciência dos nossos sentimentos, tomamos mais ciência daquilo que nos inspira negativamente e, assim, podemos evitar essas coisas. Abrir um espaço entre nós e os nossos sentimentos nos dá tempo para reagir da maneira correta, nos lembrar de buscar refúgio em Allah quando ficarmos com raiva em vez de, por reflexo, gritar com os outros ou fazer algo sem pensar, pelo que nos arrependeríamos depois.
Além disso, inevitavelmente sentiremos desejos e impulsos para cometer pecados. Isso faz parte das provações da vida. Quando cultivamos a muraqabah, somos capazes de reconhecer esses desejos quando começam a germinar. Podemos reconhecê-los sem culpa; eles são naturais e inevitáveis. Ter desejos ruins não nos torna pessoas ruins. Mas à medida em que ficamos mais conscientes dos nossos estados internos, ficamos mais eficazes em nos dissociar dos desejos baixos e em agir sobre os desejos virtuosos e elevados. O hábito de voltar sempre à nossa âncora (recordação ou súplica) nos dá a folga de tempo o suficiente para que, com confiança, digamos “não” às sugestões malignas do ego ou do diabo.
Conclusão
A consciência plena no islam (al-muraqabah) é um estado consciente de atenção compreensiva a Allah e aos nossos estados em relação a Ele. Na sua forma completa, é o mais elevado estado espiritual que se pode alcançar – a realização perfeita da excelência na fé (al-ihsan). A ciência moderna demonstra a eficácia dos exercícios de consciência plena na obtenção de variados benefícios de saúde e bem-estar, mesmo num contexto não religioso. Essas descobertas podem ser combinadas de maneira criteriosa com os conceitos tradicionais de meditação do islam para produzir técnicas práticas e contemporâneas que cultivam a consciência presente islâmica, aprimoram a adoração e enriquecem a nossa qualidade de vida.
O sucesso vem de Allah. E Allah sabe mais.
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