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A História da Sharia – Estaria a Lei Islâmica abandonada?

Como surgiu a lei divina do Islam e como ela se desenvolveu e se propagou – e como alcançou um momento de crise

O que é a shari‘a? A palavra costuma ser traduzida como “Lei Islâmica”, como se representasse a lei em sua totalidade. Também costumam achar que ela é um conjunto fixo de práticas e punições, transmitido diretamente dos primórdios do Islam, que deve ser aplicado de uma só maneira inflexível. Mas não é exatamente isso.

Shari‘a, no Islam, significa especificamente Lei Divina – praticamente sinônimo de revelação. Os muçulmanos creem que ela foi revelada para o Profeta Muhammad ﷺ e transmitida principalmente por meio do Alcorão e dos ensinamentos dele próprio. Mas não é, ao pé da letra, a lei que os primeiros muçulmanos seguiam. A adesão aos mandamentos da revelação requer interpretação humana mais profunda e este empenho de usar a shari‘a para estabelecer normas para a vida moral tem uma denominação diferente: fiqh (que significa literalmente “compreensão”).

Muhammad ﷺ faleceu em 632, e a shari‘a e o fiqh se desenvolverem nos anos seguintes, enquanto sua comunidade precisava descobrir como agir sem a presença da autoridade pessoal dele – principalmente depois da rápida expansão da nação islâmica além da Península Arábica pelos sucessores do Profeta ﷺ, os Califas. Eles consolidaram o controle sobre o Oriente Próximo expulsando o Império Bizantino do norte da África e do Levante e destruíram completamente o Império Sassânida na Mesopotâmia, no Irã e na Ásia Central. Então, o Islam se propagou pela região.

As tradições locais se desenvolveram, com os membros das comunidades debatendo suas interpretações e memórias compartilhadas – e divergentes – acerca da missão do Profeta ﷺ. Os códigos jurídicos foram se desenvolvendo continuamente por meio de debates e justificações. Já no segundo século islâmico, quatro escolas de interpretação jurídica haviam predominado na região e passado a articular seus códigos legais de maneira mais formal, com doutrinas que todo muçulmano podia entender. Essas interpretações da shari‘a tentavam fazer uma distinção entre a conduta correta e a conduta perversa do ser humano em termos jurídicos. Seus códigos operavam em combinação com diversos tipos de leis civis e estatais. O fiqh era diferente entre as escolas, mas todas elas tinham a visão de uma ética humana dividida em patamares, classificando as ações humanas em cinco categorias: as obrigatórias (wajib), as recomendáveis (mandub), as meramente lícitas (mubah), as detestáveis (makruh) e as proibidas (haram). O critério era assumir em princípio que as ações humanas eram moralmente lícitas. Evidências claras eram necessárias para que se declarasse uma ação em particular proibida ou obrigatória.

Depois de mais cinco séculos de desenvolvimento, as escolas chegaram naquilo que é, mais ou menos, sua forma final. Cada uma produziu um texto que definia a base da sua doutrina jurídica – as normas jurídicas tradicionais que não são sujeitas a contestações – que cobria quatro categorias abrangentes e distintas. As escolas dispuseram essas áreas de foco de maneira diferente, mas compartilhavam os mesmos conceitos a respeito dos domínios da conduta humana que poderiam ser sujeitos ao regulamento jurídico: o ritual; o dos contratos; o do casamento, do divórcio e dos assuntos relacionados; e o dos delitos, a área de crimes e castigos.

Essa última categoria, de delitos, é alvo de tanta atenção hoje em dia que leigos não têm culpa se acreditam que ela seja o foco principal da Lei Islâmica. Mas isso também não é exato e há muitos enganos sobre como a shari‘a e o fiqh lidavam com os crimes nos tempos pré-modernos.

O Alcorão e os ensinamentos de Muhammad ﷺ prescrevem certos castigos físicos obrigatórios e até mesmo de morte para certos tipos específicos de crime. Esses são: o roubo (a amputação da mão); a fornicação (cem chibatadas) e o adultério (o apedrejamento); a calúnia (oitenta chibatadas); o salteamento e o assalto em estradas (dependendo dos atos cometidos durante o crime, o castigo poderia variar de aprisionamento, amputação do pé ou da mão, até a morte); rebeldia (o rebelde podia ser morto no campo de batalha sem consequências jurídicas); e a apostasia (condenação à morte na ausência de arrependimento). Mas os juristas – cujas interpretações legais representavam a maneira com a qual a shari‘a era aplicada na prática – também impunham consideráveis obstáculos no que diz respeito às evidências, com a intenção de impedir a aplicação destes castigos, no geral exigindo o depoimento de testemunhas presenciais sobre a conduta criminosa em questão. Dessa forma, era inconveniente condenar os réus desses crimes sem que eles confessassem. Mesmo se houvesse a confissão, os juristas permitiam que os réus retirassem suas confissões a qualquer momento antes da sentença ser executada. Por isso, a grande maioria dos casos criminais, inclusive aqueles que eram cobertos nominalmente pela Lei revelada, eram entregues às jurisdições dos municípios que, por sua vez, mudavam com o decorrer do tempo, à medida em que as dinastias e os impérios ascendiam e decaíam.

Hoje, no entanto, alguns grupos islamistas resumem a Lei Islâmica nesses castigos da revelação, e consideram qualquer nação islâmica que não os aplica como ilegítima. Em casos extremos, algumas organizações, como o ISIS, defendem que essa falta de aplicação dos castigos das escrituras significa que os governos muçulmanos seriam culpados de apostasia e que as populações deles, enquanto apoiam tais regimes (mesmo que apenas tacitamente), também seriam apóstatas. O ISIS então parte para justificar que sua violência em massa contra as sociedades islâmicas se dá por causa dessa apostasia que julgam presente nelas. 

Mas é difícil levar a sério esses argumentos, a menos que se creia que a única lei legítima para os muçulmanos seja o fiqh dos juristas islâmicos, ou que o muçulmano deve seguir a palavra divina exatamente da maneira que foi recebida por Muhammad ﷺ. No decorrer da história pluralista e variada da lei islâmica, esse nunca foi o caso. A história dos governos islâmicos – desde os dias do Profeta Muhammad ﷺ até a queda do último império islâmico – indicam algo diferente.

Durante o tempo da Jahiliyya, como se chama a Era da Ignorância que veio antes do Islam, a vida política dos árabes pagãos era tribal. Eles se recusavam a se submeter a uma autoridade central e costumavam se vangloriar da sua independência quando comparados aos povos sedentários do Crescente Fértil. No entanto, eles não eram uniformemente nômades: algumas tribos eram urbanas e comerciantes, como os Quraysh de Meca – que era a tribo do Profeta Muhammad ﷺ – enquanto outras praticavam a agricultura sedentária. A época pré-islâmica era caracterizada por picos episódicos de violência tribal, que eram contidos somente por causa da ameaça de retaliação.

A peregrinação anual a Meca que as tribos faziam também ajudava neste ponto: ela era precedida por quatro meses de trégua sagrada, durante os quais a violência era um tabu. A peregrinação era até a Caaba, uma construção em forma de cubo, que era o centro da religião árabe pré-islâmica. Os Quraysh controlavam o acesso à Caaba e supervisionavam essa peregrinação, que chamavam de Hajj. Meca era um santuário inviolável, e essa paz e segurança locais permitiam que os Quraysh assumissem uma certa autoridade política sobre os árabes pré-islâmicos.

Segundo as tradições árabes, Abraão e seu filho Ismael (Ibrahim e Ismail em árabe), foram responsáveis pela construção da Caaba e, apesar dela ter se tornado centro do paganismo árabe na época antes do nascimento de Muhammad ﷺ em 570, ela ainda era usada primariamente para a adoração de Allah, o Deus de Abraão.

Quando Muhammad ﷺ fez seu chamado religioso, ele afirmou a exclusividade da divindade de Allah e rejeitou decisivamente os deuses pagãos. Essa mensagem foi recebida pelos pagãos locais como uma grande ameaça e não foi surpreendente que eles perseguiram Muhammad e seus seguidores. Em 622, após 13 anos de ser uma comunidade marginalizada sob cerco, o pequeno grupo de Muhammad ﷺ fugiu de Meca, um evento conhecido como a Hijra (a migração ou hégira), viajando para Yathrib, um pequeno povoado num oásis ao oeste da Arábia, onde a vida deles mudaram radicalmente. Nos anos anteriores, Yathrib sofreu uma guerra civil debilitante entre seus clãs principais, e os representantes da cidade foram encontrar Muhammad ﷺ durante a peregrinação anual. Alguns se converteram ao Islam e o convidaram a ir até Yathrib para viver sob a proteção deles e assumir a liderança. Muhammad ﷺ concordou. Agora, diferente dos seus anos anteriores em Meca, o Profetaﷺ  e seus seguidores podiam pregar o Islam abertamente e viver os seus ideais na prática.

A associação da cidade com Muhammad ﷺ e com o Islam logo se tornou tão distinta que ela perdeu seu nome original e passou a ser conhecida simplesmente com al-madina, a cidade – ou, para refletir melhor sua importância política, a pólis. Essa nova comunidade política tinha até mesmo seu documento de fundação, que os historiadores muçulmanos viriam a chamar de Carta de Medina. Ela reconhecia os diferentes clãs e tribos como independentes, enquanto os obrigava a agir coletivamente em certos assuntos: para se defenderem contra agressões externas e para defender os princípios básicos da justiça interna. A parte mais importante foi que ela classificou num só grupo político os pagãos árabes não-muçulmanos de Yathrib (que, no momento, ainda eram o maior grupo da cidade) e os clãs judaicos locais, que recebiam explicitamente o direito de manter suas religiões, mas tinham de reconhecer a autoridade política de Muhammad.

Agora, profundamente arraigada em Medina, a comunidade islâmica foi capaz de se defender dos ataques de Meca e, lá, retornar vitoriosa. Muitos dos que antes eram perseguidores, se reconciliaram com o Islam e reconheceram a liderança de Muhammad ﷺ. Nos últimos anos de sua vida, Muhammad ﷺ aumentou seu domínio, cobrindo o resto da Península Arábica, mas tanto ele quanto muitos de seus principais seguidores continuaram vivendo em Medina. Então, dez anos após a hégira, Muhammad ﷺ faleceu, deixando o Alcorão e seus ensinamentos como orientação.

Essa era ao menos a visão da maioria dos seguidores do Profeta ﷺ, que viriam a ser conhecidos como sunnis, ou sunitas. Outro grupo distinto de muçulmanos, que mais tarde viriam a ser conhecidos como xiitas ou shia, acreditavam que o Profeta ﷺ havia nomeado seu primo e genro, ‘Ali b. Abi Talib, como seu sucessor. De maneira diferente da maioria da comunidade muçulmana, os xiitas vieram a crer que o Profeta Muhammad ﷺ, além do Alcorão e dos seus ensinamentos, havia deixado líderes infalíveis entre seus descendentes, conhecidos como imams. Mas mesmo com visões teológicas muito diferentes, praticamente, os sunitas e os xiitas tinham consenso sobre a maioria dos assuntos da lei. (Por este motivo, principalmente no século XX, houve uma tentativa de transcender a divisão entre os sunitas e xiitas com o reconhecimento de muitos dos pensamentos xiitas como outra escola de jurisprudência Islâmica.)

Apesar de todas essas diferenças teológicas e políticas, os Muçulmanos desenvolveram uma lei geral que cobria tanto o governante quanto os governados e que era definida por meio de debates e discussões. O governante não tinha, por exemplo, autoridade especial para interpretar o conteúdo da lei ou do significado da sua regra, ao menos segundo a maioria dos sunitas. Então, enquanto o novo império muçulmano não foi nem de longe o primeiro a fundir a religião com a política, sua maneira era, de certa forma, única: diferente do Sagrado Imperador Romano, por exemplo, o Califa Muçulmano não liderava rituais públicos, como sumo sacerdote, mas compartilhava da obrigação com cada um dos outros membros da comunidade – se fosse necessário, qualquer um deles poderia realizar o ritual.

A rápida expansão da jovem nação islâmica trouxe à tona novos problemas. Em 661, os Omaídas formaram a primeira dinastia da história do Islam, fazendo de Damasco sua capital. Mas, à medida em que foram expandindo as fronteiras até o centro da Ásia, mais e mais indivíduos das populações conquistadas aceitavam o Islam, e gerou-se uma crise política. Os Omaídas concebiam o Islam somente como religião árabe e, conforme aumentava o número de conversões, um ramo da tribo Quraysh, que era de descendentes do tio al-‘Abbas de Muhammad ﷺ, se aliou com membros insatisfeitos da população não árabe para derrubar os Omaídas do poder e estabelecer a dinastia Abássida no ano 750.

O domínio Abássida, que durou cinco séculos, até 1258, abriu um momento transformativo para a cultura jurista islâmica. A dinastia teve sua capital construída em Bagdá, no Iraque, e colocou convertidos não árabes em cargos proeminentes na administração – que vinham principalmente das populações do Irã e do da Ásia Central, que falavam o idioma persa – até mesmo abrindo espaço para as contribuições de muitos grupos populacionais não muçulmanos. De dentro desta nova estrutura política cosmopolita, surgiram interpretações variadas da lei islâmica: as quatro escolas que se tornaram amplamente aplicadas, praticadas e reconhecidas.

Cada uma dessas escolas jurídicas sunitas permaneceram em vigência em regiões específicas do império. A escola dominante no norte da África, na Espanha muçulmana, no Alto Egito e na África subsaariana era a escola Maliki, que deriva seu nome de Malik b. Anas, sábio do século VIII que nasceu, viveu e morreu em Medina; o Muwatta’ dele é o tratado sistemático sobre a lei islâmica mais antigo que ainda é preservado. Nas regiões da Pérsia, da Turquia e do subcontinente indiano, era a escola Hanafi, que deriva seu nome de Abu Hanifa, jurista iraquiano. No Cairo e no Baixo Egito, no Iêmen (e, mais tarde, na costa leste Africana, na costa sul da Índia e nas ilhas das especiarias) era a escola Shafi‘i, que deriva seu nome de Muhammad b. Idris al-Shafi‘i, um viajante, originário de Hejaz, que estudou as tradições de Medina e do Iraque da Lei Islâmica e redigiu o primeiro tratado de jurisprudência teórica da história do Islam. E, nos centros urbanos do Oriente Médio, principalmente entre as classes mais baixas, estava a escola Hanbali, que deriva seu nome de Ahmad b. Hanbal, convicto tradicionalista que rejeitava o raciocínio especulativo.

Uma consequência de ter quatro escolas diferentes em circulação era a frustração cada vez maior dos administradores civis. Juízes de uma determinada cidade, por exemplo, poderiam considerar suficientes um conjunto de fatos para provar um assassinato intencional, mas o juiz de outra cidade vizinha poderia se recusar a condenar com base nos mesmos fatos. Parece que essa situação foi frustrante o bastante para que, durante a peregrinação à Meca e Medina, o segundo califa Abássida, al-Mansur (ou, segundo outros relatos, o quinto califa Abássida, Harun al-Rashid), conheceu Malik b. Anas e propôs que fizessem do Muwatta’ a lei universal do império. A história islâmica diz que Malik tentou dissuadir o califa deste plano, defendendo que as diversas tradições locais eram todas válidas, avisando que toda tentativa de modificar práticas locais enraizadas com outras novas e não familiares – mesmo que Malik acreditasse que a sua envolvesse interpretações mais autênticas da shari‘a – só resultaria em problemas. O califa aceitou o conselho de Malik e abandonou seu plano de impor uma lei uniforme no império islâmico.

Como resultado, o pluralismo jurídico se tornou fator normativo da Lei Islâmica aplicada, com várias regiões do mundo islâmico continuando com a aplicação de diferentes versões da Lei, todas as quais eram consideradas igualmente islâmicas, apesar das diferenças nas diversas doutrinas secundárias. Na altura do final do quarto século islâmico, a Lei Islâmica estava completamente descentralizada e o controle sobre a produção, a instrução e a transmissão jurídicas estava nas mãos dos sábios e não do estado.

As práticas rituais diárias ajudavam a espalhar o conhecimento de variadas interpretações jurídicas. Principalmente nas áreas urbanas, a disponibilidade dos sábios em instituições locais de adoração dava aos que não eram especialistas grandes oportunidades de participarem da instrução jurídica e de fazerem perguntas aos especialistas. As opiniões dos juristas – chamadas de fatwas – desempenhavam mais o serviço de tornar o conhecimento acessível a qualquer um que estivesse disposto a abordar especialistas jurídicos, pedindo a sua opinião.

Sobre o que, exatamente, tratavam essas fatwas? Como sistema de orientação ética, a shari‘a é, em princípio, abrangente – nenhum ato ou omissão humanos fogem de sua jurisdição. Nenhum muçulmano moralmente responsável deve se envolver em determinada ação sem antes considerar o que a shari‘a possa ter a dizer sobre a permissibilidade dela.

Mas, na prática, apenas a presença de uma Lei Divina específica obrigando, proibindo ou recomendando ou não um ato é o suficiente para que a adesão seja necessária. Portanto, os juristas não tentavam regular cada ação humana concebível, mas se especializavam efetivamente nos ensinamentos da Lei Divina que, direta ou indiretamente, se ligavam à vida pública, como com as normas para a observação de rituais públicos (por exemplo, as orações diárias, o jejum do Ramadan e a peregrinação anual a Meca). Na prática, eles ignoravam os outros aspectos da lei ritual, deixando de legislar sobre o cultivo das virtudes interiores, psicológicas, como a reverência, a piedade e o contentamento.

Com o foco quase exclusivo na garantia da ordem na observância da lei, os juristas deixavam os juízos éticos mais complexos para os outros. Seus próprios juízos, da maneira que estão nos livros, eram de uma jurídica menos abrangente do ponto de vista ocidental. A linguagem deles se limita principalmente ao que é válido, inválido, nulo, anulável, vinculante e revogável, no que diz respeito às regras que podem ser mantidas pelo sistema jurídico. Se pode-se dizer que os mandamentos éticos da shari‘a regulam a vida ética diretamente, pode-se dizer também que as normas dos juristas regulam a vida ética indiretamente – auxiliando os muçulmanos a respeitarem os limites das relações bem ordenadas com Deus e com seus semelhantes.

No decorrer do tempo, à medida que as sociedades do Oriente Próximo foram se tornando mais complexas, as nações islâmicas adotaram legislações para suplementar a lei dos juristas e, às vezes, até mesmo para substituí-la. A sociedade civil era separada da lei religiosa e instituições foram desenvolvidas para fazer o elo entre as duas, com a participação de juízes de lei islâmica chamados qadis. Além da incumbência de punir os criminosos, os fóruns e administrações do estado também tinham outras funções, como a solução de disputas civis, a ouvidoria de queixas administrativas e a regulação do mercado. Apesar dos juristas reverem as leis locais para definirem se eram ou não eram detestáveis em relação à Lei Divina – verificando se a lei obrigava condutas condenáveis e pecaminosas – no geral, eles não se opunham a elas. A vida civil e a vida religiosa eram relacionadas, mas não a mesma coisa.

A natureza descentralizada deste equilíbrio e deste arranjo apoiava a estabilidade da lei; mesmo quando os Abássidas perderam o controle efetivo sobre as suas províncias no século XIII, o colapso estatal não decretou o final deste sistema. As instituições civis e religiosas eram robustas o bastante para que os líderes locais as imitassem em seus próprios territórios por anos e anos.

Mais perto do final do século XIII, surgiu um novo império islâmico, que colocaria um fim neste sistema. O Império Otomano teve origem na Anatólia e se espalhou por muito do que é hoje o sudeste da Europa, a África do Norte, o Levante e a Mesopotâmia. Durante muito tempo da história do império, os principais agentes da justiça otomana foram os juristas islâmicos – eles privilegiavam sistematicamente a escola Hanafi de jurisprudência. Enquanto eles não impunham as doutrinas Hanafis em todo lugar, essa escola veio a se tornar a lei oficial do império, e os principais Hanafis foram integrados muito próximos da infraestrutura legisladora do estado.

Já no começo do século XIX, os governantes otomanos passaram a reconhecer o poderio em ascensão da Europa como uma ameaça à própria existência. Como reação, os governantes do centro do império e de algumas das províncias adotaram reformas jurídicas em larga escala – em muitos casos, copiando os códigos legais da Europa moderna. Para os reformistas otomanos, a grande vantagem que os estados europeus tinham em relação a eles era a centralização do poder nas mãos dos governantes. Por isso, acreditavam que, com a implementação de legislações mais próximas das da Europa, o estado otomano seria capaz de implementar suas políticas com mais eficácia e de realizar as reformas sociais e econômicas necessárias para colocar o império num patamar de igualdade com a Europa, que se industrializava rapidamente. Como parte dessas reformas, o estado tentou aplicar um código universal de lei islâmica pela primeira vez na história do Islam. Baseados principalmente na escola Hanafi, os otomanos produziram o primeiro código civil islâmico universal, chamado de Majallah.

A empreitada de defesa não adiantou; o império caiu no final da Primeira Guerra Mundial. E o efeito mais duradouro das reformas otomanas viria a ser a sentença à morte do sistema sunita das quatro escolas descentralizadas. As reformas do estado geraram um código universal com base num raciocínio jurídico que era, do ponto de vista tradicional, ad hoc, fragmentado e, em muitos casos, algo simplesmente extraído de doutrinas jurídicas diferentes, que seriam incompatíveis em outros contextos. Juristas treinados tradicionalmente perderam o monopólio que tinham sobre a interpretação da shari‘a. A competição não vinha mais somente de outros ramos do estado, mas também de uma grande variedade de movimentos religiosos da sociedade civil – alguns desafiavam o ritmo das reformas, afirmando que eram muito lentos e outros as rejeitavam, as considerando ilegítimas.

Um dos movimentos religiosos mais proeminentes, influentes e duradouros entre esses foi a Irmandade Muçulmana, que foi fundada por Hasan al-Banna, professor egípcio, após a queda dos otomanos. Os Irmãos Muçulmanos reivindicavam uma fusão da renovação religiosa pessoal e comunitária com reformas políticas e uma renascença – uma combinação característica dos movimentos políticos islamistas, que surgiu no século XX. Este tipo de movimento islamista desafia os papéis dos sábios islâmicos tradicionais – que proporcionavam suas interpretações da shari‘a com uma noção de uma legalidade vinculante, do ponto de vista religioso da virtude pessoal – em vez de verem a religião como utensílio de reforma política e social.

Os Irmãos encorajavam os muçulmanos a retornarem diretamente às fontes reveladas do Islam, acusando a classe clerical dos juristas tradicionais de ter dividido os muçulmanos em ramos partidários com base em doutrinas antigas que eram, acreditavam, irrelevantes para os muçulmanos modernos e ininteligíveis para todos, exceto os iniciados. O que era necessário era o despertar moral, espiritual e político dos indivíduos muçulmanos por meio da reintrodução dos valores fundamentais islâmicos. Esta visão evidentemente se opunha à visão dos eruditos tradicionais que, geralmente, adotavam uma visão paternalista tanto sobre a religião quanto sobre a política, com a pressuposição de que as massas acatariam e recorreriam à autoridade deles. Os Irmãos resumiram suas reivindicações no slogan retórico “Islam é a solução”, por meio do qual eles indicavam que apenas se a Lei Islâmica fosse reintroduzida em seu ponto central na vida dos egípcios que eles poderiam esperar uma renovação nacional.

A ascensão da Irmandade Muçulmana ofereceu uma única resposta ao mundo pós-otomano onde as doutrinas jurídicas tradicionais foram formalmente substituídas por meio de reformas dos governantes muçulmanos e dos colonizadores. Houve muitas outras abordagens e reações, tanto islamistas quanto nacionalistas. Mas nenhuma delas levou ao equilíbrio teopolítico no mundo islâmico – nem sob o colonialismo, nem durante do período logo após ao período colonial e nem na era moderna.

Mesmo com esta ausência de um governo islâmico estável desde a queda dos otomanos, no entanto, ações políticas de restauração da shari‘a – ou temores acerca da imposição forçada dela – parecem estranhos, pois eles pressupõem que em algum momento a shari‘a desapareceu da vida islâmica pública e privada. Isso simplesmente não é o caso e nunca foi. Ela sempre foi constante como sistema religioso de orientação ética. Mas, quando a tradição das quatro escolas perdeu sua autoridade, surgiu um problema que ainda há de ser solucionado, um problema que fica cada vez mais complexo: de como a interpretação jurídica da shari‘a pode ser encaixada numa sociedade política maior, na ausência das estruturas tradicionais que eram providenciadas pelas escolas antigas de jurisprudência. É um problema que tem menos relação com o que é a shari‘a ou com o que ela já foi, e mais relação com as maneiras com as quais os grupos e movimentos – tanto em boa quanto em má fé, nas sociedades pluralistas e nas autoritárias – podem se esforçar na tentativa de interpretá-la em serviço dos próprios objetivos políticos.

Fonte: https://www.laphamsquarterly.org/roundtable/history-sharia

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