A taqiyah é um termo em árabe que significa “prudência”, ”temor” ou ”cobertura” e que ficou bastante conhecido nos dias atuais, especialmente em teorias conspiratórias anti-Islam, que denunciam esta palavra como se os muçulmanos tivessem permissão de mentir indiscriminadamente sobre sua religião a fim de alcançar os seus objetivos pessoais de disseminar a fé, converter pessoas e destruir inimigos.
A prática de fato existe no Islam, no entanto, só é justificável à luz da revelação do Alcorão. A taqiyah é enfatizada no xiismo, mas também está presente no sunismo, sendo utilizada principalmente em casos onde a vida de muçulmanos está em perigo.
Outro termo parecido usado no Islam é “kitman”, que pode significar “dissimulação”, e que também se refere ao ato de ocultar suas convicções pelo silêncio ou omissão.
Durante o início da Revelação em Meca, os muçulmanos foram perseguidos por causa de sua fé. Muitos foram assassinados, outros foram obrigados a renunciar ao Islam. Por causa disso, Allah aliviou o fardo dos Seus fiéis permitindo que eles pudessem omitir sua religião e suas convicções quando houvesse perigo de vida.
”Que os fiéis não tomem por confidentes os incrédulos, em detrimento de outros fiéis. Aqueles que assim procedem, de maneira alguma terão o auxílio de Deus, salvo se for para vos precaverdes e vos resguardardes.” (Alcorão 3:28)
Durante este período, um companheiro do Profeta chamado Ammar ibn Yasir foi coagido a abandonar a sua fé e torturado, chegando ao ponto de ver os seus pais serem martirizados por rejeitarem os ídolos dos pagãos de Meca. Nesta ocasião, Allah revelou o seguinte versículo:
Aquele que renegar Allah, depois de ter acreditado – salvo quem houver sido obrigado a isso e cujo coração se mantiver firme na fé – e aquele que abre o seu coração à incredulidade, esses serão abominados por Allah e sofrerão um severo castigo. (Alcorão 16:106)
Esses versículos são parte da base teológica que justifica a omissão de convicções religiosas. A partir dela, os eruditos da religião entendem que, em alguns momentos, mentir para salvar vidas é permitido, no entanto, há regras para seguir e, dependendo da situação, podem existir alternativas melhores.
O uso da taqiyah está ligado à forma como cada segmento do Islam se desenvolveu. No caso, os xiitas sempre foram um ramo minoritário e, logo no período do Califado Abássida, durante o período medieval, eles começaram a ser perseguidos. Isso os levou a esconder sua fé e seus ensinamentos diante de situações em que havia vidas em perigo a fim de protegerem a si próprios e até a existência de sua doutrina.
A dissimulação acabou se tornando algo importante para os xiitas, sendo permitida em qualquer interação e podendo ser usada até mesmo com outros muçulmanos, tanto para evitar a opressão de possíveis inimigos sunitas quanto para não difundir ensinamentos místicos entre aqueles que ainda não eram iniciados. A prática, no entanto, é proibida quando há risco de perda de vidas inocentes.
Na vertente dos duodecimanos, a principal do xiismo, é dito que o conceito de taqiyah nasce no período de vida do sexto imam Jafar al-Saddiq e é desenvolvida ao longo da tradição dos 12 imames, sendo transformada em um aspecto fundamental para a doutrina:
“Aquele que não tem taqiyah não tem fé.” (Al-Ayyashi)
“Aquele que abandona a taqiyah é como aquele que abandona a oração.” (Ibn Shubba)
“Aquele que não adere à taqiyah e não nos protege das pessoas comuns e ignóbeis não é parte de nós.” (Tusi)
Não fica claro se esses comentários se referem à taqiyah no sentido de proteção ou preservação da sabedoria mística. No entanto, muitos xiitas atuais negam que a prática tenha alguma ligação especial com a fé.
Ao contrário do xiismo, no Islam sunita a taqiyah não pode ser aplicada com um muçulmano e só pode ser feita sob alguma coação (que, em árabe, significa “idtirar”). Em situações como essas, é permitido ao fiel não somente ocultar a sua fé, mas também renunciar a alguns princípios, como por exemplo: comer carne de porco quando há risco de morrer de fome.
Embora negar a fé sob alguma coação seja permitido no sunismo, não é algo necessariamente obrigatório. O martírio também é visto como uma opção nobre para o fiel. No entanto, em muitos casos, a melhor opção pode ser migrar para outro lugar onde ele tenha a possibilidade de praticar sua fé abertamente.
“É aceitável (para um muçulmano) comer a carne de um animal morto em um momento de grande fome (a ponto de o estômago ficar sem qualquer alimento); e para soltar um pedaço de comida (por medo de engasgar até a morte) com álcool; e proferir palavras de incredulidade; e se alguém está vivendo em um ambiente onde o mal e a corrupção são a norma generalizada, e as coisas permissíveis (Halal) são a exceção e uma raridade, então pode-se utilizar tudo o que estiver disponível para atender às suas necessidades.” (Al-Suyuti)
“Proteger a vida de um muçulmano é uma obrigação que deve ser observada; e que mentir é permitido quando o derramamento de sangue de um muçulmano está em jogo.” (Al-Ghazali)
Em movimentos extremistas que aderem à teologia wahabita ou salafista, é comum que as pessoas escondam suas doutrinas radicais em um primeiro momento a fim de não chocar os leigos e não despertar a atenção de autoridades. Ou seja, é uma estratégia para angariar adeptos e evitar perseguições. Nesses casos, o discurso violento só viria à tona entre aqueles que já estão familiarizados com a abordagem do grupo.
Embora este mecanismo seja o que mais se aproxima da teoria da conspiração de grupos anti-muçulmanos, ainda está distante dos princípios de defesa da vida humana presentes na revelação islâmica e está limitado a um grupo minoritário de seguidores que possuem um sistema teológico próprio e heterodoxo, destacado do restante do sunismo tradicional.
Na história, há alguns exemplos da prática de taqiyah que já foram dados e mostram com maior clareza como é executada segundo os princípios da ortodoxia sunita. Um dos primeiros foi no ano de 813, durante o Califado Abássida, quando Mamun assumiu o poder e ordenou que os teólogos aderissem à teologia mutazilita.
Os mutazilitas pregavam uma interpretação racionalista do Islam, aderindo a princípios que são heréticos na perspectiva do sunismo tradicional. O principal deles era a doutrina que afirma que o Alcorão seria algo criado, isto é, que a palavra de Deus não seria eterna junto ao Criador.
Mamun ordenou que os teólogos que não aderissem ao mutazilismo fossem ameaçados, presos e até mesmo mortos. Neste período, muitos estudiosos sunitas ocultaram suas verdadeiras convicções para preservar o ensinamento da doutrina e poupar suas próprias vidas.
A taqiyah foi amplamente praticada a partir de 1492, quando os reis católicos reconquistaram a península ibérica, que até então era o território islâmico de Al-Andalus. Para escapar da inquisição, muitos muçulmanos omitiram sua fé e continuaram praticando-a em segredo.
Em 1504, o mufti sunita Ubayd Allah al-Wahrani, da escola Maliki em Oran, emitiu uma fatwa permitindo que os muçulmanos fizessem o uso extensivo da taqiyah para manterem sua fé. A lei islâmica proíbe a conversão, exceto em casos de perigo mortal, e mesmo assim exige retratação o mais rápido possível. O posicionamento de al-Wahrani foi um caso excepcional e divergiu da maioria dos eruditos anteriores de sua jurisprudência.
Fonte: História Islâmica
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