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O Judeu que se Tornou Muçulmano e Marcou o Século 20

 

  • Muhammad Assad foi um muçulmano notável que contribuiu bastante para divulgação do Islam no ocidente e para o debate entre as duas civilizações.
  • Ele nasceu em uma família judia da Áustria com o nome de Leopold Weiss.
  • Sua vida como um autêntico homem europeu de classe abastada lhe trouxe um vazio enorme que o motivou pela busca do Islam.
  • Ele foi uma figura muito importante para a formação do Paquistão depois que o país conseguiu sua independência.

Da Arábia Saudita ao Paquistão e aos Estados Unidos, Asad deixou um impacto duradouro ajudando milhares de pessoas a encontrar sua fé.

Um dia, em setembro de 1926, um jovem jornalista judeu embarcou em um trem em Berlim. Seu nome era Leopold Weiss. Ao seu redor, ele viu rostos infelizes e vazios. A alta cultura da Europa, o avanço das ciências e o progresso material não foram suficientes para fazer seu povo feliz. No momento em que Weiss pisou na plataforma novamente, ele estava convencido de que a salvação estava em outro lugar. Ele queria ser muçulmano – ou assim diz a história.

Nascido em 1900 de pais judeus cujos antepassados ​​eram clérigos rabínicos, ele se converteu formalmente ao Islam alguns dias depois daquela viagem a Berlim. Quando ele morreu quase um século depois, em 1992, ele era um intelectual aclamado conhecido em todo o mundo muçulmano como Muhammad Asad. 

"O Caminho para Meca", seu famoso livro de memórias, ajudou a apresentar o Islam a inúmeras pessoas. 

“Talvez nenhum outro livro, exceto o próprio Alcorão, tenha levado a um número maior de conversões ao Islam”, escreveu Murad Hofmann, um diplomata alemão e ele próprio convertido. 

O primeiro-ministro do Paquistão, Imran Khan, que viveu uma vida glamorosa como jogador de críquete, cita Asad como uma motivação que o colocou no caminho religioso. Sayyid Qutb, uma figura de destaque na Irmandade Muçulmana pan-islâmica, baseou-se no trabalho de Asad para moldar suas próprias opiniões sobre o Islam político. Margaret Marcus, uma jovem judia, deixou para trás uma vida em Nova York para morar em Lahore depois de ler O Caminho Para Meca. Ela adotou o nome de Maryam Jamilah e se tornou uma conhecida estudiosa islâmica.

A tradução inglesa de Asad do Alcorão é classificada ao lado da de Marmuduke Pickthall e Abdullah Yusuf Ali

Embora sua experiência de trem tenha sido frequentemente comentada, sua conversão foi tudo menos o resultado de uma revelação repentina. Foi em parte relacionado à turbulência que o jovem Asad testemunhou na Europa após a devastadora Primeira Guerra Mundial.

Ruínas da Primeira Guerra Mundial na Europa.

Procurando por luz no caos 

Asad cresceu em Lwow, cidade que no início do século 20 fazia parte da Áustria, na família abastada de seu pai, um advogado. 

Sua infância foi passada de férias nos Alpes e em uma fazenda da família, onde Asad desfrutava da companhia de camponesas rutenas. 

Embora seus pais não fossem particularmente religiosos, tutores particulares o treinaram nas escrituras judaicas e com o tempo ele pôde discutir com confiança a exegese bíblica - o complexo conjunto de comentários religiosos. Após sua conversão ao Islam, isso ajudaria particularmente sua compreensão do Alcorão. 

“Assim, aos treze anos, eu não só podia ler hebraico com grande fluência, mas também falava livremente e tinha, além disso, um bom conhecimento do aramaíco”, escreveu ele. 

A religião era a última coisa em sua mente quando entrou na Universidade de Viena em 1920 para estudar história da arte. Passavam-se dias estudando filosofia, noites nos clubes. 

Rapidamente se entrincheirou em vários círculos literários, que se reuniam nos cafés de Viena para discutir as descobertas de Sigmund Freud no campo da psicanálise. Como outros jovens, Asad buscava respostas após a sangrenta Primeira Guerra Mundial, que devastou a Europa entre 1914 e 1918. 

“A Europa estava em crise moral. A civilização ocidental quase se destruiu no decorrer da guerra. Toda uma geração de jovens foi exterminada. Mas foi também um período dinâmico. As pessoas não eram limitadas por velhos dogmas e procuravam novas fontes espirituais”, diz Martin Kramer, historiador israelense que escreveu sobre Asad. 

“Essa é uma maneira de entender Asad. Ele não emerge de uma ordem política e cultural auto-satisfeita. Ele emerge de uma ordem, que acabou de passar por um colapso total.” 

Disciplina europeia, normas vitorianas - tudo tinha ido para o lixo durante a guerra, enquanto os europeus bombardeavam as cidades e vilas uns dos outros até que elas fossem abandonadas.

Em seu rescaldo veio o sofrimento e a busca da alma. Tendo perdido a guerra, a economia da Alemanha estava sofrendo o peso das reparações. A inflação era tão alta que as pessoas de classe média vendiam relíquias de família e móveis para sobreviver. 

Inquieto e incapaz de se concentrar, Asad abandonou a universidade para seguir a carreira de escritor. Seu pai estava totalmente contra tal decisão e cortou sua bolsa como punição.  

Por conta própria, Asad viajou para Berlim, onde flertou com a cena artística por um tempo, escrevendo um roteiro de filme e gastando o que ganhava em farras noturnas envolvendo bebidas e mulheres. Na maioria das vezes, ele permanecia sem dinheiro. 

Ele trabalhou brevemente para uma agência de notícias e conseguiu um furo quando entrevistou Madame Gorky, a esposa do famoso escritor russo Maxim Gorky.

Mas Asad nunca se estabeleceu de verdade. A Europa não seria sua casa por muito tempo. Algo mais o estava chamando - era um chamado para o Islam, e seu caminho serpentearia por Jerusalém. 

Um caso de amor árabe 

“Asad se apaixonou pelos árabes antes de se apaixonar pelo islamismo”, diz Shalom Goldman, professor de religião na Duke University, que está escrevendo um livro sobre judeus promissores que se converteram ao islamismo. 

“O Islam era uma maneira de ser árabe. Por isso, em vez de ir para uma escola religiosa, foi viver seis anos com os beduínos na Arábia Saudita. Para ele, essa era a verdadeira cultura autêntica; não a Universidade Al-Azhar do Egito ou estudando no Paquistão (na época a colônia britânica da Índia)”. 

Asad conheceu o mundo muçulmano pela primeira vez em 1922, quando viajou para a Palestina a convite de seu tio, Dorian, um psiquiatra e um dos discípulos de Freud. 

Essa foi uma época de agitação política e conflitos na Palestina. Os sionistas estavam fazendo lobby por uma nação judaica – às vezes violentamente. Dezenas de milhares de judeus estavam migrando para a Palestina da Rússia e de outros lugares, alterando a demografia. 

Mas para Asad parecia aqueles beduínos árabes muçulmanos locais, com sua honestidade, simplicidade e seus camelos e acampamentos, estava mais próximo dos caracteres hebraicos que estudara quando menino no Antigo Testamento do que de um judeu europeu moderno. 

Em várias ocasiões, Asad confrontou líderes sionistas como o Dr. Chaim Weizmann, pressionando-os a explicar como os judeus podem reivindicar ter mais direitos do que os árabes palestinos que viveram na região por dois mil anos. 

O sionista Chaim Weizmann ao lado do Rei Faisal I da Grande Síria.

“O anti-sionismo de Asad estava profundamente enraizado. Não foi algo que ele adotou para se tornar mais aceitável para os muçulmanos”, diz Kramer. 

Um dos amigos mais próximos de Asad na Palestina, Jacob de Haan, um jornalista judeu holandês, foi morto por extremistas sionistas por causa de sua persistente oposição à forma como os árabes estavam sendo tratados.

Anos depois, quando os israelenses tentaram reivindicar toda Jerusalém, Asad continuaria a defender os direitos dos palestinos. 

Os sionistas querem manter Jerusalém como capital de Israel para sempre, escreveu ele em um artigo A Visão de Jerusalém publicado em 1982. Mas “a eternidade é um atributo somente de Deus”. 

Ele falou e escreveu sobre como o Islam vê Jerusalém como uma “Cidade Santa” para todas as religiões e não imóveis dados em patrimônio apenas ao povo judeu. 

“Asad foi provavelmente a primeira pessoa a articular a ideia do colonialismo sionista antes que os pensadores marxistas a tornassem em voga nas décadas de 1960 e 1970”, diz Goldman. 

Foi durante sua estada na Palestina e subsequentes viagens à Jordânia, Egito e outras regiões muçulmanas nos anos seguintes que Asad desenvolveu uma paixão pelos árabes e seu modo de vida. 

Suas matérias publicadas no Frankfurter Zeitung, um dos jornais mais respeitados da Alemanha, falavam dos árabes como pessoas “abençoadas” que vivem “uma vida maravilhosamente simples que em linha direta leva do nascimento à morte”. Seus artigos foram compilados mais tarde como seu primeiro livro, "The Unromantic Orient''. 

Anos depois, quando ele foi convidado a falar sobre sua tradução do Alcorão, Asad dedicou grande parte de seu discurso sobre por que ele achava que Deus escolheu enviar Seu último mensageiro às terras árabes. Uma vida dura no deserto fez um beduíno perceber sua própria insignificância. Um beduíno apreciou que além das muitas divindades das tribos árabes deve haver um Ser Supremo sustentando a vida, disse ele. 

Depois de sua experiência na Palestina, ele viajou mais profundamente na península Arábica - no que é hoje a Arábia Saudita - mergulhando na vida do deserto e se tornou um árabe virtual, como evidenciado por seu domínio sobre a língua árabe. 

Por seis anos, ele viveu entre tribos beduínas na Arábia Saudita, montando camelos, vestindo suas roupas e aprendendo seu dialeto.

Mas como foi que um europeu branco foi capaz de viajar tão livremente e viver em um país que era então repleto de intrigas políticas, interferência estrangeira e onde um homem branco era visto com suspeita? 

Amigos e inimigos  

A Arábia Saudita estava em meio a uma revolta quando Asad, recém-convertido ao Islam, chegou lá em 1927 para realizar o Hajj, a peregrinação a Meca que todo muçulmano é obrigado a realizar pelo menos uma vez na vida. 

Ibn Saud, o fundador da Arábia Saudita moderna, lutava para exercer controle sobre tribos rebeldes espalhadas pelo deserto. 

Muhammad Assad era próximo do rei saudita Ibn Saud.

Ao mesmo tempo, Saud desconfiava dos britânicos que usavam seu poderio militar como influência sobre os líderes árabes. 

“É claro que o trabalho jornalístico de Asad e suas conexões com a imprensa internacional formaram um componente importante de seu relacionamento com o rei”, diz Günther Windhager, antropólogo austríaco, que está escrevendo um livro sobre o tempo de Asad na Arábia Saudita. 

Asad continuou a escrever para jornais europeus. Algumas de suas histórias foram traduzidas e reimpressas em holandês na Indonésia, que era então as Índias Orientais Holandesas. Isso deu ao jornalista considerável influência na corte do rei. 

“Equipado com conhecimento interno em primeira mão e uma caneta crítica do imperialismo, ele expôs a política britânica no Oriente Médio – ao preço de estar sob vigilância a cada passo”, diz Windhager. 

Com a bênção do rei, Asad fez longas viagens às terras árabes numa época em que a maioria dos não-muçulmanos era impedida de se aventurar além da cidade portuária de Jeddah. 

Como Asad conseguiu ter acesso à corte de Ibn Saud tão rapidamente após sua chegada tem sido um ponto de debate considerável. Mas a Arábia Saudita ainda estava a uma década de atingir seu primeiro poço de petróleo, que trouxe bilhões de petrodólares nos anos seguintes. Os altos muros e protocolos não foram erguidos ao redor dos palácios. 

De sua parte, Asad escreve que foi uma questão de sorte e desespero. Antes de vir realizar seu primeiro Hajj, ele havia se casado com Elsa, uma pintora 15 anos mais velha que ele e a quem ele amava muito. Eles viajaram juntos para Meca

Ela foi infligida por alguma doença tropical e morreu nove dias depois da peregrinação. Essa experiência deixou Asad devastado. De alguma forma, o rei ficou sabendo disso e o convidou para uma reunião. A partir de então, os dois ficaram muito próximos, escreve Asad. 

Ele acabou se tornando uma espécie de conselheiro do rei - uma vez até mesmo fazendo uma perigosa jornada pelo deserto com o Kuwait para descobrir quem estava fornecendo armas e munição para os rebeldes que lutavam contra o governo de Saud.  

Embora Asad já tivesse lido o Alcorão e se convertido ao Islam, foi nessa época que ele começou a explorar os aspectos complexos da religião - como a jurisprudência islâmica e seu papel na política. 

Geralmente, os estudantes muçulmanos passam anos estudando textos islâmicos sob a tutela de estudiosos experientes em alguma escola religiosa. No caso de Asad, ainda não está claro quem ele consultou para obter orientação. Seus detratores muitas vezes usaram isso contra ele. 

“Nós realmente não sabemos nada sobre suas conexões nos círculos religiosos durante sua estada lá”, diz o Dr. Muzaffar Iqbal, fundador do Centro de Ciências Islâmicas no Canadá. 

De qualquer forma, Asad começou a se encontrar com intelectuais muçulmanos que visitavam as cidades islâmicas mais sagradas da Índia e da Indonésia. 

O filho de Asad, Talal Asad, um distinto estudioso islâmico por direito próprio, também desconhece os estudiosos com os quais seu pai mantinha contato naqueles anos. 

“Ele estudou hadith (ditos do Profeta) brevemente com um estudioso em Medina que, então ele me disse quando eu era muito jovem, era um sábio ('alim) de Timbukutu (sic)”, Talal disse ao TRT World em uma resposta por e-mail. 

Talal, agora com 88 anos, é o único filho de Asad. Ele nasceu na Arábia Saudita do terceiro casamento de Asad com Munira, uma menina da poderosa tribo Shammar. Um ano após a morte de Elsa, Asad casou-se brevemente com outra mulher de Riad, e de quem se divorciou. 

"... o casamento no Islam não é um sacramento, mas um contrato civil - o recurso ao divórcio está sempre aberto a qualquer um dos cônjuges...", escreve Asad em suas memórias. 

O estigma associado ao divórcio está ausente em uma sociedade muçulmana, com exceção dos muçulmanos no Paquistão e na Índia que foram influenciados pela religião hindu, disse ele. 

Depois de seis anos na Arábia Saudita, Asad queria se estabelecer lá - ele também estava em contato com algumas editoras para um livro que queria escrever sobre tribos árabes. 

Mas a longa duração de seu procedimento oficial de mudança de nome foi um obstáculo para seu processo de integração, pois o nome Leopold Weiss repetidamente causava mal-entendidos e dava a impressão de que ele não era muçulmano, diz Windhager. 

Outro obstáculo era Harry John Philby, um mascate de influência britânico que se converteu ao islamismo em 1930, e tinha ambições de realizar suas próprias expedições dentro da Arábia, assim como Asad. 

“Foi precisamente nessa época que o relacionamento de Asad com Ibn Saud foi enfraquecido por intrigas, por trás das quais o próprio Asad suspeitava de Philby entre outros”, diz Windhager. 

Embora as relações de Asad com Ibn Saud tenham esfriado um pouco, ele continuou próximo à família real. Ahmad Zaki Yamani, ex-czar do petróleo do reino, foi um amigo de longa data e apoiou Asad financeiramente quando ele ficou na Espanha e no Marrocos. 

Em 2011, Riad organizou uma conferência internacional em homenagem a Asad. 

A estadia de Asad em Meca e Medina teve um profundo impacto em sua compreensão do Islam. Foi então que ele começou a atribuir à escola de pensamento Ahle-Hadith, que exige uma nova interpretação dos versículos do Alcorão e dos ditos do Profeta. 

“Foi o período e o espaço em que a transformação de Weiss para Asad ocorreu em grande medida e suas relações mudaram cada vez mais de uma rede europeia para uma rede islâmica”, disse Windhager. 

Mas talvez sua maior contribuição ao ajudar a transformar o Islã em uma força política tenha ocorrido em um país que nem estava no mapa na época. 

O primeiro paquistanês 

Muhammad Assad foi muito importante para a história do Paquistão.

A aceitação do Islam por Asad estava além de alguma experiência espiritual em um trem, ela foi manifestada no subcontinente indiano onde ele chegou em 1932 junto com Munira e seu filho Talal. 

Seu segundo livro, Islam at the Cross Roads, foi publicado dois anos depois. 

“O livro fez ondas assim que chegou às prateleiras. Foi notável ver um cidadão europeu criticar a sociedade ocidental, defender o Islam e a Sunnah e dizer que somente o Islam pode tirar o mundo da escuridão”, diz Muhammad Arshad, historiador da Universidade de Punjab, em Lahore. 

Até o Islam at the Cross Roads, quase ninguém havia tentado contextualizar a eterna antipatia da Europa pelo Islam. Aqui estava um europeu branco escrevendo em inglês que os muçulmanos não deveriam ficar impressionados com o progresso material do ocidente. "Aproveitem as ciências deles o quanto quiserem. Mas deixe de lado a filosofia". 

Essa foi uma época em que a maioria dos muçulmanos do mundo ainda vivia sob algum tipo de domínio colonial. "Não desanime com a miséria", disse Asad a seus companheiros muçulmanos, pois levou mil anos para o califado desmoronar, enquanto o império romano desapareceu em cem anos. 

“Se sempre tivéssemos seguido esse princípio do Islam que impõe o dever de aprendizado e conhecimento a todo homem e mulher muçulmana, não teríamos que olhar hoje para o Ocidente para uma aquisição de ciências modernas”, escreveu ele. 

Asad imediatamente conquistou admiradores entre as principais figuras muçulmanas, como o poeta e filósofo Allama Iqbal, o acadêmico Abul Ala Maududi e Sayyid Qutb, que nomeou um capítulo de seu famoso livro The Social Justice in Islam como At the Crossroads. 

Em meados da década de 1930, Asad participava ativamente de diferentes projetos destinados a melhorar a forma como a educação religiosa era transmitida e encontrar maneiras de introduzir disciplinas científicas ao lado de tópicos clássicos nas instituições islâmicas.

Nessa época, ele assumiu a tarefa monumental de traduzir Sahih Bukhari - a coleção de ditos do Profeta Muhammad. É um trabalho árduo, que envolveu leitura cuidadosa e peneiração de milhares de notas históricas.

“Ninguém até então havia tentado traduzi-los para o inglês. Foi um empreendimento enorme”, diz Arshad. 

No entanto, ele não conseguiu concluir essa tradução e grande parte do manuscrito foi perdido durante a divisão da Índia e do Paquistão em 1947. 

Asad estava continuamente no radar da inteligência britânica. Ele foi visto com desconfiança antes mesmo de sua chegada ao subcontinente indiano. 

“Existe alguma conexão entre von Weiss e o consulado bolchevique em Jeddah? São mistérios sobre os quais é difícil saber a verdade”, escreveu um informante britânico enquanto Asad ainda estava na Arábia Saudita. 

 A eclosão da Segunda Guerra Mundial em 1939 deu aos britânicos uma razão para ir atrás de Asad, que ainda era um cidadão austríaco no papel. A ocupação alemã da Áustria fez dele um inimigo do estado na Índia. 

Nos seis anos seguintes, Asad viveu em campos de internação onde arames farpados separavam apoiadores nazistas abusivos de outros prisioneiros como Asad. 

Enquanto ele foi transferido de um centro de detenção para outro na Índia, os nazistas enviaram seu pai e sua irmã para os campos de concentração na Alemanha. Ele tentou desesperadamente arranjar documentos de viagem para sua família sair. 

Esse foi um período de tribulação para ele. Talal, seu filho, disse que foi a única vez que viu Asad chorar. 

Após sua libertação em 1946, Asad dedicou seu tempo a trabalhar nos contornos de um futuro estado islâmico e sua constituição. 

“Até então, os muçulmanos não tinham nenhum modelo de estado islâmico. A maioria dos livros publicados antes da década de 1940 se concentrava no califado. Foi Asad quem iniciou o debate sobre como deve ser um sistema de governo em um estado muçulmano na era moderna”, diz Arshad. 

 Asad apoiou veementemente a democracia e a eleição de legisladores pelo voto. Ele usou textos islâmicos para apoiar sua visão, refutando aqueles que afirmam erroneamente que a democracia não é compatível com o Islam. 

Após a independência do Paquistão em 1947, ele chefiou brevemente o Departamento de Reconstrução Islâmica, que visava garantir que as políticas governamentais seguissem os princípios religiosos. 

Mas o primeiro primeiro-ministro do Paquistão, Liaquat Ali Khan, viu o uso de Asad no ministério estrangeiro que estava tentando estabelecer contatos com outros países muçulmanos. E assim ele foi designado para a mesa do Oriente Médio. 

Quando chegou a hora de Asad viajar, ele exigiu um passaporte paquistanês. Uma lei de cidadania ainda estava em andamento e os funcionários continuaram a viajar para o exterior como súditos britânicos mesmo após a independência.  

Asad não queria nada disso - ele não era um súdito britânico e também não queria que sua nacionalidade austríaca fosse mencionada. Os responsáveis ​​pela emissão dos documentos ficaram perplexos. Mas Liaquat Ali Khan emitiu a ordem. E assim Asad voou no que se tornou o primeiro passaporte paquistanês atribuído a alguém. 

A mensagem

Depois de se demitir da missão paquistanesa da ONU em meados da década de 1950, Asad mudou-se para viver em diferentes países, passando um tempo em Tânger, no Marrocos, na Espanha e em outros lugares.  

Ele continuou a escrever e dar palestras em universidades e conferências. Ao longo do caminho, ele pesquisou e trabalhou em sua contribuição mais ambiciosa e importante para o Islam - a tradução inglesa do Alcorão. 

Após 17 anos de trabalho, A Mensagem do Alcorão foi publicada em 1980. Não recebeu a aprovação do clero ortodoxo, que discordou da interpretação "modernista" de Asad. 

“Não conheço um único estudioso que tenha aprovado sua tradução”, diz Muzaffar Iqbal. “O problema é de uma mente européia tentando chegar a um acordo com a mensagem do Alcorão e incapaz de compreender os aspectos supranaturais do Alcorão e acabando racionalizando-os.” 

Asad tratou de alguns dos tópicos, como Jinn e a jornada noturna do Profeta Muhammad pelo Miraj em termos alegóricos. 

Outra coisa que tem incomodado os estudiosos tradicionais é a posição de Asad sobre as mulheres: em sua interpretação do Alcorão, as mulheres não são obrigadas a cobrir suas cabeças.

Muzaffar Iqbal diz que Asad apoiou sua exegese com referências a estudiosos tradicionais como Al-Zamakhshari, mas ele escolheu uma das muitas explicações de um determinado versículo do Alcorão para se adequar ao seu próprio entendimento. 

Apesar das controvérsias, a tradução de Asad é amplamente lida, especialmente entre os muçulmanos de língua inglesa. E há muitos que defendem vigorosamente Asad e seu legado. 

“O problema com Asad é que ele não está associado a nenhuma escola religiosa tradicional ou universidade – como outros acadêmicos que são apresentados por seus seguidores como grandes professores. Asad simplesmente não tinha um bom departamento de marketing”, diz Shaykh Jahangir Mahmud, que dirige um think-tank religioso no Paquistão. 

Asad não é o único tradutor do Alcorão que adotou uma abordagem branda sobre a questão das mulheres cobrirem suas cabeças ou se os muçulmanos podem desfrutar de música. Mas ele foi contestado por seus críticos. 

“Ele é frequentemente atacado por causa de sua origem europeia, embora tenha aprendido árabe com os beduínos vivendo entre eles em suas tendas. Ele provavelmente viveu no deserto por mais anos do que qualquer outro estudioso”, diz Mahmud. 

Como no sul da Ásia, onde Asad ainda é visto por muitos como um estranho, ele não é totalmente aceito no mundo árabe, que é cético em relação a um não-nativo que traduziu o Alcorão. 

“Seja como for, o prestígio de Asad continua a crescer entre os muçulmanos de hoje, especialmente na Europa e nos Estados Unidos”, escreveu Murad Hoffman, argumentando que o rejuvenescimento islâmico provavelmente virá de Londres ou Nova York, em vez de Cairo ou Islamabad. “Se essa suposição estiver correta, pode chegar a hora em que a apreciação do pensamento de Muhammad Asad se tornará um fenômeno verdadeiramente global.” 

Não foi apenas a tradução do Alcorão que ele enfrentou o escrutínio. Até mesmo suas decisões na vida pessoal o colocaram na linha de fogo. 

Curvando-se

Enquanto Asad estava em Nova York trabalhando para a missão paquistanesa da ONU em 1952, casou-se com Pola Hamida, uma garota polonesa-católica que se converteu ao islamismo. 

Talal, na época, estava hospedada em Londres junto com sua mãe Munira, terceira esposa de Asad. 

A notícia de seu casamento gerou polêmica no Paquistão e artigos escandalosos na imprensa local alegaram que ele poderia ter voltado ao judaísmo. Munira criou uma grande confusão e escreveu para funcionários do governo paquistanês, reclamando que seu marido a estava abandonando. 

Asad apresentou sua renúncia. Pressionado por suas finanças, foi então que ele decidiu escrever O Caminho Para Meca (The Road to Mecca). 

Até mesmo seu breve mandato no Ministério das Relações Exteriores foi útil para seu país adotivo. Foi por causa de sua relação pessoal com Ibn Saud que o Paquistão conseguiu estabelecer um escritório diplomático em Jeddah. 

“Ele foi a pessoa que lançou as bases de nossa amizade com a Arábia Saudita, da qual o Paquistão ainda está se beneficiando. É triste que o tenhamos esquecido”, diz Ikram Chughtai, um historiador paquistanês que publicou vários livros sobre Asad. 

Anos antes de a Organização da Conferência Islâmica ser criada em 1969, Asad escreveu toda uma proposta para criar uma Liga das Nações Muçulmanas. Mas o arquivo com suas recomendações acumulava poeira na mesa do então ministro das Relações Exteriores do Paquistão, Zafarullah Khan, que não gostava de Asad. 

Na década de 1940, “havia muitos nas ruas marchando pelo novo país, mas havia apenas alguns como Asad que trabalhavam na frente ideológica do Paquistão”, diz Chughtai. 

Apesar de tudo o que aconteceu, Asad foi mais uma vez convidado pelo governo do Paquistão para organizar um grande seminário acadêmico sobre o Islam no final de 1957. 

Asad usou seu domínio sobre árabe, política, história e conexões pessoais para convidar dezenas de acadêmicos de todo o mundo muçulmano. Quando os anais da conferência foram publicados, seu nome nem sequer foi mencionado. 

Houve atrito dentro de sua família com Asad tentando sustentar sua ex-esposa Munira quando suas próprias circunstâncias financeiras estavam tensas. 

Talal e Pola nunca se deram bem. Suas relações azedaram a tal ponto que, quando Asad estava em seu leito de morte em fevereiro de 1992, Pola nem se deu ao trabalho de informar Talal. 

“O fato de a esposa de meu pai não ter me contatado com bastante antecedência para me dizer como ele estava doente (eu liguei para ele muitas vezes, mas percebi que sua voz soava bastante constrangida ao telefone) foi uma questão de amargura considerável para mim”, escreveu Talal. em sua resposta por e-mail. 

Alguns pesquisadores argumentam que, mais tarde na vida, Asad se desencantou com o Islam. Talal diz que nada pode estar mais longe da verdade. Certamente, Asad estava descontente com o desenvolvimento de certos países muçulmanos, especialmente o Paquistão. Mas sua devoção ao Islam permaneceu inabalável. 

A última lembrança de Talal de seu pai é quando ele a visitou sem avisar em um hospital de Boston. 

“Quando entrei na sala, encontrei-o rezando Salat al-maghrib em sua sajjada, sem saber da minha presença.” 

Texto original: TRT World

Autor: Saad Hassan

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