Um equívoco lamentável que existe dentro da comunidade muçulmana americana de hoje é de que o Islam só esteve presente na América há menos de 100 anos. Muitos muçulmanos americanos são filhos de imigrantes que vieram para os Estados Unidos partindo do Oriente Médio e Sul da Ásia, em meados do século XIX, e assim imaginaram erroneamente que os primeiros muçulmanos nos Estados Unidos foram os imigrantes. A realidade, porém, é que o Islam já está nos Estados Unidos há muito mais tempo do que isso. Além dos possíveis exploradores muçulmanos pré-colombianos de al Andalus e da África Ocidental, o Islam chegou à costa da América em ondas através do comércio atlântico de escravos, a partir do século XVI até o XIX. Enquanto centenas de milhares de escravos chegaram à América durante esse tempo, as histórias de apenas alguns foram preservadas e são conhecidas atualmente. Uma das mais duradouras e originais é a de Bilali Muhammad.
Enquanto as nações europeias começaram a colonizar o Novo Mundo, em 1500, a demanda por mão de obra barata surgiu. As plantações, minas e fazendas precisavam de trabalhadores ao longo do Norte e do Sul e a população nativa do Novo Mundo mostrou-se inadequada, devido à sua falta de imunidade a doenças europeias. Como resultado, as potências europeias, como a Grã-Bretanha, França, Portugal e Espanha olharam para o sul, em direção à África, procurando uma fonte de trabalho escravo que pudessem explorar.
Assim, os comerciantes de escravos europeus começaram a chegar nos portos da África, procurando comprar escravos. Geralmente, os europeus não iriam capturar os escravos. Em vez disso, eles geralmente pagavam governantes locais para irem à guerra com outros países africanos para capturarem guerreiros e vendê-los para serem levados para a América. Os governantes africanos normalmente eram pagos em armas, o que iria perpetuar ainda mais o ciclo de violência e escravidão. Todo o sistema funcionava para desestabilizar o desenvolvimento social, político e econômico da África e os resultados deste genocídio ainda são sentidos hoje neste continente.
As estimativas variam, mas mais de 12 milhões de africanos foram provavelmente retirados à força de suas terras para servirem como escravos na América, e até 20% deles morreram na viagem transatlântica conhecida como a Passagem do Meio. Como grande parte do comércio de escravos foi focada na África Ocidental, um grande número desses escravos eram, sem dúvidas, muçulmanos. Os reinos de savana do Mali e Songhai foram grandes centros da civilização islâmica na África Ocidental e uma população muçulmana enorme existia na região.
Um dos muitos escravos muçulmanos levados para a América era Bilali Muhammad. Ele era da tribo Fulbe e nasceu por volta de 1770, na cidade de Timbó, onde é hoje a Guiné. Ele veio de uma família bem educada e recebeu um alto nível de educação na África antes de ser capturado como escravo no final de 1700. Ele era fluente na língua Fula, juntamente com o árabe, e tinha conhecimento de estudos islâmicos de alto nível, incluindo Hadith, Sharia e Tafsir. A forma como foi capturado é desconhecida, mas ele foi inicialmente levado para uma plantação no Caribe e, por meados de 1802, chegou à Ilha de Sapelo, ao largo da costa da Geórgia, no sul dos Estados Unidos.
Na Ilha de Sapelo, Bilali teve a sorte de ter Thomas Spalding como seu dono de escravos. Embora as condições de todo o Sul fossem horrendas para os escravos, que eram forçados a trabalhar durante todo o dia e tinham necessidades básicas comumente negadas, como roupas e abrigo estável, Spalding dava algumas liberdades para seus escravos que não existiam em outros lugares. Ele não forçava os escravos a trabalharem mais de seis horas por dia, não tinha negreiros brancos e permitiu que seus escravos muçulmanos praticassem sua religião abertamente – uma liberdade rara no Sul profundamente cristão. Bilali teve permissão para construir uma pequena mesquita na plantação, que poderia muito bem ter sido a primeira mesquita na América do Norte.
Por causa do nível relativamente elevado de educação de Bilali, ele subiu para o topo da comunidade escrava e foi invocado por seu dono para cuidar de grande parte da administração da fazenda e suas poucas centenas de escravos. Talvez o relato mais notável de liderança e confiabilidade de Bilali Muhammad ocorreu durante a guerra de 1812 entre os Estados Unidos e Reino Unido. Spalding teria deixado a fazenda com sua família, temendo um ataque britânico e colocado Bilali encarregado da defesa da plantação. Deu até mesmo à Bilali 80 mosquetes para defender a ilha com, que foram distribuídas entre a população muçulmana do plantio. Bilali se manteve fiel à sua palavra e protegeu a plantação quando seu proprietário tinha ido embora e entregou-a de volta para Spalding depois da guerra. O fato de que o proprietário de um escravo tenha tanta confiança em seus escravos a ponto de dar-lhes o controle da plantação juntamente com as armas fala muito sobre o caráter e confiabilidade de Bilali Muhammad.
Como muçulmano bem-educado da África Ocidental, Bilali sem dúvidas trouxe sua educação islâmica com ele para a América. Isto é evidenciado por um manuscrito de treze páginas que ele escreveu e deu à um escritor do sul, Francis Robert Goulding, antes de morrer em 1857. O manuscrito foi escrito em árabe e foi assim ilegível para a maioria dos norte-americanos por décadas. Ele fez o seu caminho, eventualmente, para a Biblioteca Estadual da Geórgia em 1931, que tentou decifrar o manuscrito, que popularmente acreditava-se ter sido o diário de Bilali.
Depois de anos de esforços que envolveram inúmeros estudiosos tão distantes como da Universidade al Azhar, no Egito, os estudiosos finalmente conseguiram decifrar o manuscrito. Descobriu-se que não era um diário em tudo mas era na verdade uma cópia de trechos de um tratado sobre a lei islâmica do madhab Maliki escrito por um estudioso muçulmano de fiqh, Ibn Abu Zayd al Qairawani na Tunísia nos anos 900. O Risala de Ibn Abu Zayd foi uma parte do currícuo de leis do Oeste Africano, prevalente na pátria de Bilali em 1700, quando ele era um estudante.
Quando ele veio para a América como um escravo, ele foi, naturalmente, incapaz de trazer qualquer pertence pessoal com ele e assim sua cópia do Risala foi escrito inteiramente a partir de décadas de memória depois que ele aprendeu isso na África Ocidental. Isto exemplifica o nível de conhecimento presente na África Ocidental, ao mesmo tempo que foi devastada pelo comércio de escravos no Atlântico.
O Documento Bilali é provavelmente o primeiro livro de jurisprudência islâmica (fiqh) já escrito nos Estados Unidos. E enquanto o Islam morria lentamente entre a comunidade Afro americana nos Estados Unidos no século XIX, é importante reconhecer e apreciar as histórias dos primeiros muçulmanos americanos. Eles não eram um grupo pequeno e inconsequente. Eles eram compostos por centenas de milhares de pessoas e, apesar das dificuldades quase insuperáveis, eles lutaram para preservar a sua herança islâmica sob a opressão da escravatura. A história de Bilali Muhammad é um perfeito exemplo dos esforços desta comunidade muçulmana americana inicial, que poderia inspirar os muçulmanos americanos do presente, sejam eles de ascendência Africana ou não.
Diouf, Sylviane A. Servants of Allah: African Muslims Enslaved in the Americas. New York: New York UP, 1998.
Dirks, Jerald. Muslims in American History: A Forgotten Legacy. Beltsville, MD: Amana Publications, 2006.
Fonte: Lost Islamic History
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