Se você sair pela porta de trás da Igreja de San Salvador em Sevilha, com seu enorme altar encravado com ouro e suas inúmeras estátuas da Virgem Maria, chegará num pequeno pátio. Com as notas evocativas dos violinos barrocos ainda reverberando nos seus ouvidos, você reparará numa fonte em forma de octógono.
Poucos turistas dão atenção à pequena praça que fica na sombra da igreja. Em frente ao muro amarelo que circunda o pátio há o que resta de três arcos de pedra e, despontando do muro, está o topo de uma torre de tijolos.
Restam poucas indicações de que essa torre já foi um minarete e de que o pátio era o lugar onde os muçulmanos faziam a ablução ritual. A Igreja está hoje onde era localizada a mesquita mais importante de Sevilha, Al Adabbas: no coração da comunidade muçulmana da cidade. Muhyiddin Ibn Arabi, o grande místico e educador religioso do século XII da Espanha islâmica, frequentava a mesquita e a menciona em muitas passagens biográficas.
Por meio de seus escritos, Ibn Arabi foi destinado a moldar o desenvolvimento da espiritualidade islâmica mais do que qualquer outro filósofo místico – seu aniversário de 850 anos foi em 26 de julho de 2015. A vasta obra de Ibn Arabi (com mais de 350 títulos) representa um tesouro da sabedoria gnóstica. O seu legado textual inspirou mestres Sufis da Espanha sarracena no ocidente até os seus primos muçulmanos da Indonésia distante. Ele era chamado pelo título “Shaykh al-Akbar” (o maior mestre espiritual).
“Futuhat al-Makkiyya” (As Iluminações de Meca) e “Fusus al-Hikam” (As Gemas da Sabedoria) são considerados os tratados mais famosos de Ibn Arabi. O “Futuhat”, com mais de mil páginas em árabe, levou trinta anos para ser escrito. Essa enorme enciclopédia de conhecimento esotérico combina três fontes de conhecimento: a tradição, a razão e a intuição mística. O “Fusus”, que é significativamente mais curto, mas também rico em conteúdo, é dedicado à sabedoria espiritual dos profetas do Islam.
A singularidade da obra de Ibn Arabi se dá por causa de sua “universalidade e abrangência, combinadas com uma assustadora perspicácia quanto aos assuntos centrais da experiência humana. Poucos podem afirmar ter lido mais do que uma parte dessa obra e menos ainda se atreveriam alegar tê-la compreendido”, diz o pesquisador inglês Stephen Hirtenstein na biografia que escreveu do Shaykh al-Akbar, “The Unlimited Mercifier” (O Misericordiador Ilimitado)
É na Espanha de hoje que estão as raízes desse rico legado filosófico e esotérico. Apesar disso, não há uma única placa de rua que testemunhe o fato de que Ibn Arabi passou 27 anos da sua vida lá. Nascido em 1165 na cidade de Múrcia no sudeste da Espanha, ele se mudou para Sevilha com seu pai quando tinha sete anos. A maior cidade da Andalusia desempenhou um papel central no desenvolvimento pessoal de Ibn Arabi para o grau de místico.
Durante o califado dos Almóadas, Sevilha virou o caldeirão das culturas, onde poetas, filósofos, santos, teólogos e pessoas comuns interagiam livremente. Ibn Arabi cresceu nesse ambiente cosmopolita. Ainda jovem, ele demonstrou uma capacidade de clarividência, relatava visões e costumava se retirar na solidão de antigas ruínas.
Durante a juventude ele estudou o Alcorão e Hadith e se associou com shaykhs e mestres espirituais, entre os quais havia homens e mulheres. No final de sua vida, passou seu tempo em Meca e Anatólia, vindo a falecer em Damasco em 1240, com 75 anos. Seu túmulo, num subúrbio da capital Síria, é um local importante de peregrinação.
Por isso, como é possível que praticamente ninguém na Sevilha hoje em dia associe a sua cidade com Ibn Arabi? Gracia Anguita, pesquisadora de misticismo islâmico já há muitos anos, redigiu sua tese de doutorado sobre a obra de Ibn Arabi na Universidade de Sevilha. “Muitos espanhóis têm consciência de que grande parte das suas conquistas culturais têm sua origem na era islâmica. Mas as personalidades importantes da cultura Andalus, como Ibn Arabi, ainda não se estabeleceram na memória coletiva da Espanha.” Outro possível motivo é que, por ser escrita em árabe, a obra de Ibn Arabi não seja tão acessível quanto outras.
O interesse de Gracia Anguita pelo misticismo começou quando ela leu os ensinamentos esotéricos da Cabala e do cristianismo espanhol barroco. Na universidade, conheceu a obra de Ibn Arabi e começou sua pesquisa sobre o shaykh. “O que me fascina é a sabedoria que ele aplica em todos os assuntos – a compreensão dele do universo e da vida, onde cada realidade física se liga a uma realidade espiritual.”
Anguita era a única candidata a PhD que pesquisava sobre Ibn Arabi na Espanha, quando estava trabalhando na sua tese de doutorado. Para ela, o estudo do Sufismo é negligenciado nas universidades espanholas. “Apenas alguns pesquisadores estão envolvidos no importante estudo sobre Ibn Arabi.” Mas ela acredita que o legado de Ibn Arabi seja predestinado a ser descoberto novamente por um número cada vez maior de pessoas.
O que caracteriza os ensinamentos de Ibn Arabi é a universalidade. Ibn Arabi não somente apresenta as tradições corânicas e proféticas do islam sob uma nova luz, revelando conhecimento oculto contido nelas, mas também a filosofia religiosa do judaísmo e do cristianismo.
Uma abordagem multifacetada e uma perspectiva íntegra são duas características importantes do pensamento de Ibn Arabi – quando fala, por exemplo, sobre a unidade da razão e da intuição. Ele combina fatores aparentemente opostos num todo harmonioso e elucida muitos problemas que são de tanta urgência hoje em dia quanto eram na época dele.
Costuma-se associar Ibn Arabi com a noção de “wahdat ul-wujud” (que se costuma traduzir por “unidade da existência”), ainda que a obra dele não contenha descrição alguma desse conceito. O que se quer dizer aqui é a existência de um princípio que abrange a tudo e que abarca todas as convicções e doutrinas aparentemente contraditórias.
Isso resulta numa tolerância natural, como dizem os famosos versos de Ibn Arabi: “Meu coração se tornou capaz de toda forma / é um pasto para as gazelas e um mosteiro para os monges cristãos / um templo para os ídolos e a Ka‘aba do peregrino / e as tábuas da Torá e o livro do Alcorão.”
De maneira simples e bela, as palavras do shaykh refletem o espírito de Al Andalus, um lugar caracterizado pela coexistência pacífica de diferentes religiões e perspectivas. Em vez de serem antagonistas, a ciência e a religião cooperavam na Espanha sarracena, gerando uma civilização admiravelmente sofisticada. A cultura de Al Andalus era objeto de inveja de todo o resto da Europa.
Obras-primas da arquitetura como Alhambra em Granada ou a Mezquita em Córdoba são testemunhas desse desenvolvimento, da mesma forma que as conquistas dos filósofos, como o pensador muçulmano Averróis (Ibn Rushd) e seu colega judeu, Maimônides – ambos contemporâneos de Ibn Arabi. Muitas das ideias que, posteriormente, vieram a inspirar a Renascença europeia se formaram em Al Andalus.
Mas após séculos de Cristianismo como identidade dominante, muitos espanhóis não aceitam com facilidade seu legado sarraceno e não o veem como parte de sua própria cultura.
Em maio de 2015, o ano do aniversário de 850 anos do shaykh, o sétimo simpósio internacional de Ibn Arabi foi organizado em Múrcia, sua cidade natal, pelo ramo espanhol da Sociedade Muhyiddin Ibn Arabi (MIAS, Muhyiddin Ibn Arabi Society). Mas Múrcia também está longe de incluir Ibn Arabi em seu legado, para que todos os visitantes vejam.
Na Espanha, não houve celebração oficial de comemoração do aniversário de 850 anos do shaykh. Entretanto, no mundo dividido de hoje, a recordação dos ensinamentos de Ibn Arabi sobre a unidade faria bem para todos.
Fonte: https://en.qantara.de/content/spain-and-ibn-arabis-heritage-the-great-master-of-murcia
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