Pode-se dizer que o Islamismo está na China desde o século VII. Ou seja, muito antes das comunidades muçulmanas se estabelecerem nas regiões sul e sudoeste da Ásia, ou mesmo de se ter um número significante de europeus no país, já havia um grupo de muçulmanos na China.
Além dos números expressivos de praticantes da religião no país (atuais 22 milhões), a relação entre a cultura chinesa e a religião islâmica resguarda outros pontos interessantes: sua longevidade, sua diversidade e a capacidade que ambas têm apresentado de se adaptarem, uma a outra.
Falamos de uma religião – com suas crenças, suas tradições e seu sistema cultural – e falamos também de um país – com suas próprias diferenças culturais internas e com diferentes religiões praticadas em seu território. Por isso, é preciso estabelecer claramente as influências de uma sobre a outra.
Inicialmente, vale a pena destacar que a história do islamismo na China não é apenas a chegada de uma nova religião em um país. Ela também faz parte da própria história da China e seus desdobramentos – antigos e recentes. Essa história diz respeito ao intercâmbio cultural, relações diplomáticas, movimentos sociais e desenvolvimento comercial.
Por isso, ela é tão importante de ser conhecida (ou relembrada, para alguns). De forma geral, então, vamos fazer um passeio pela história de como o islamismo encontrou um terreno acolhedor na China, pontuando os seus marcos principais.
O primeiro ponto de parada desse passeio acontece justamente no século VII, quando enviados do Oriente Médio foram à China encontrar o imperador Gaozong, da Dinastia Tang (618 – 907). Essa foi uma visita diplomática e foi conduzida pelo sahaba Sad ibn Abi Waqqas – conhecido por ter sido um dos primeiros a se converter ao islamismo, assim como o principal responsável por levar a fé islâmica até a China.
Na ocasião, Sad ibn Abi Waqqas estava indo pela terceira vez ao território chinês. De acordo com as tradições islâmicas, ele foi enviado por Uthman, o terceiro califa, menos de vinte anos após a morte do Profeta Muhammad ﷺ. Depois desse encontro, outros aconteceram, e foram responsáveis por consolidar o processo de estabelecimento de muçulmanos na região.
À época, os viajantes árabes e persas que passavam pelo Oceano Índico e pelos mares do sul da China eram, em sua maioria, comerciantes muçulmanos. E foi exatamente com esse fluxo intensificado de pessoas que houve o ambiente propício para que eles se estabelecessem no país, em especial nos portos chineses e nos postos comerciais da Rota da Seda.
De forma geral, então, podemos apontar dois caminhos principais de entrada dos muçulmanos na China:
Essa longa rota, vale lembrar, se estendia desde o Mediterrâneo Oriental, passando por toda a Ásia Central, chegando a Bukhara e Samarkand. Tudo isso, antes de alcançar o noroeste da China e terminar nos mercados de Xi’an e Pequim.
Estudiosos apontam que, algum pouco tempo depois desses primeiros contatos, os muçulmanos, liderados pelo próprio Sad ibn Abi Waqqas, construíram a primeira mesquita no país, por volta de 627. Mas, apesar de terem estabelecido um lugar de culto e estarem em quantidade cada vez maior na região, os muçulmanos não se entrelaçaram imediatamente à cultura e sociedade local. Eles ficaram separados da maioria chinesa Han por cerca de cinco séculos.
A integração dos muçulmanos na China foi se intensificando com o passar dos tempos. Um marco importante nessa relação aconteceu séculos depois que o islamismo já havia chegado ao país, quando os chineses passaram a precisar, cada vez mais, de auxílio para administrar seu império.
Isso ocorreu precisamente no século 13, já na dinastia Mongol Yuan, e foi um período em que os muçulmanos passaram a ser vistos como uma possibilidade de mão de obra capacitada para lidar com as burocracias do império chinês.
Naquele momento, os novos governantes não tinham experiência em administração e buscaram auxílio entre os muçulmanos, que estavam a todo vapor nas cidades que faziam parte da Rota da Seda, tais como Samarkand e Bukhara.
Esses governantes eram descendentes de Ghengis Khan, fundador do império mongol, e levaram um extenso número de asiáticos e persas para a região central, a fim de que os ajudassem a organizar administrativamente o império em expansão.
Estudiosos da história do islamismo na China resumem o período de vitórias de Ghengis Khan como extremamente benéfico para as relações interculturais. Isso porque, após a conquista de grande parte da Eurásia no século XII, por Ghengis Khan, seus herdeiros passaram a administrar diversos lugares distintos do continente.
Houve muita prosperidade, e um período considerável sem guerras. A consequência direta disso foi a possibilidade de mais viagens entre os cidadãos de territórios diferentes e a abertura para o intercâmbio de bens e de ideias.
Depois disso, nos 300 anos que se seguiram a essa bonança – que abrange a dinastia Ming – os muçulmanos continuaram a ter grande abertura ao diálogo no governo chinês. E, hoje em dia, podemos entender a integração muçulmana na China como completa. As comunidades muçulmanas estão estabelecidas em todo o território do país.
Além disso, é importante destacar que o crescimento no número de muçulmanos na China não aconteceu apenas de maneira natural (através de descendentes), mas também absorvendo chineses nativos – através do casamento, da adoção e da conversão.
Atualmente, a China abriga cerca de 22 milhões de muçulmanos. De acordo com pesquisas recentes, a porcentagem dos muçulmanos no país pode variar de 1.6% a 2.8% (lembremos que a China, em 2017, bateu a casa dos 1,386 bilhão de pessoas). Essa informação é crucial para entender a força que o islamismo tem e como ele se estabeleceu de maneira tão marcante em um país imenso e populoso.
Essa quantidade de pessoas é dividida em diferentes grupos étnicos. A princípio, os muçulmanos chineses eram reconhecidos como Hui. Depois, outros grupos foram sendo estabelecidos, pois outras nacionalidades foram se convertendo ao islamismo.
E é aí que estão os Uygur, Bonan, Kazak, Kirguiz, Tayik, Dongxiang, Tatar, Kirguiz, Salar, Ozbek e Kazak. Geograficamente, esses grupos estão distribuídos por todo o território chinês. Destacam-se as regiões de Gansu, Qinghai, Ningxia e Xinjiang como as que abrigam a maior concentração de muçulmanos. Outra demarcação geográfica importante para o islamismo é a cidade de Xian, conhecida por fazer parte da famosa Rota da Seda.
Dentro desse contexto, uma dúvida comum sobre o islamismo na China diz respeito a sua liberdade. Essa é, de fato, uma questão sensível. Os muçulmanos sofreram, assim como outras minorias étnicas, perseguição de sua crença durante a Revolução Cultural Chinesa (1966-1976).
Atualmente, há também algumas questões que estão sendo debatidas, sobre o tratamento do governo chinês com aqueles que professam a fé islâmica. No entanto, em termos de lei, a liberdade dos muçulmanos é garantida pela constituição do país.
As marcas da presença do islamismo podem ser vistas de diversas maneiras, além da questão populacional. Uma delas é na quantidade de mesquitas que foram construídas ao longo dos anos no país.
As mesquitas, templos de fé, ficaram conhecidas no mundo inteiro, por seu estilo marcante e pela imponência (e conservação) de suas construções. Na China, dentre as mesquitas mais antigas, pode-se destacar a Mesquita Libai, construída em Yangzhou; a Mesquita de Huaisheng, localizada em Guangzhou (antigamente Cantão); a Mesquita Zhenjiao, em Hangzhou; e a Mesquita Qingjing, que fica em Quanzhou. Mais uma vez, a Rota da Seda dita as demarcações, pois todas elas estão nas cidades portuárias que recebiam os viajantes antigos daquele tempo.
Outra maneira de classificar esses monumentos, é pela atenção que recebem dos turistas. Nesse caso, para além das mais antigas, há mesquitas que se transformaram em importantes pontos turísticos da região em que estão localizadas. As mais destacadas são a Mesquita de Xian, na cidade de mesmo nome, e a Mesquita da Rua Ox, em Pequim.
Há também a Mesquita de Niujie, conhecida por ser a mais antiga de Beijing. Sua arquitetura é a expressão máxima da mistura cultural representada pela influência chinesa no islamismo – e vice versa. Seu exterior mostra um design mais identificado com a cultura chinesa, enquanto seu interior mostra a junção dos elementos chineses e islâmicos.
Não à toa, muitas pessoas de países islâmicos visitam essa mesquita. Já a Mesquita de Kowloon, em Hong Kong, é conhecida por ser a maior da região. Em seu interior, ela consegue abrigar cerca de 3 mil pessoas. É uma atração excepcional, portanto, pela imponência de sua construção. Ainda seguindo a rota das mesquitas mais famosas da China, temos a Idgar, localizada na província de Xinjiang, e a Mesquita Gigante de Dongguan, na província de Qinghai. Esta última, como o nome já sugere, também desperta interesse pelo seu tamanho.
Com tantas mesquitas espalhadas pelo país, não é de se admirar o interesse que a arquitetura islâmica e suas derivações na cultura chinesa despertam. De forma geral, uma mesquita tem um design e arquitetura bem delimitados, mas isso não significa que ela não tenha absorvido também elementos dos mais diversos lugares em que se localizam. Na China, não seria diferente.
Sua estrutura funcional é caracterizada pela sala de oração voltada para Meca (no território chinês, essa direção está perto do oeste), podendo também funcionar como centros de ensino (com salas específicas para este fim) e instituições de caridade.
Em relação aos seus recursos para oração e de reunião, assim como os de decoração, as mesquitas chinesas resguardam todos os elementos das tradicionais mesquitas. Mas, há algumas variações que podem ser percebidas.
Por exemplo, a famosa Mesquita de Huaisheng possui seus pátios no mesmo estilo dos de um palácio chinês, como nos templos budistas. Sua sala de oração fica localizada ao final do eixo que se volta para o oeste, alinhando-se à qibla. A mesquita é rodeada por muros, e apenas o seu minarete (a torre da mesquita, onde o muezim faz as cinco chamadas por dia para a oração) pode ser visto do lado de fora.
Dentro da Mesquita de Huaisheng, lê-se, principalmente, o vocabulário com design chinês. Outra particularidade pode ser vista na abóbada, que é feita de madeira chinesa, e fica no salão de oração. Em seu interior, também ficam evidentes os ornamentos florais e as inscrições em árabe, mas utilizando o estilo chinês.
Tratando de caligrafia, essa é uma questão que, por si só, já permite conhecer bastante desse entrelaçamento cultural que acontece na China, com a difusão do islamismo. Afinal, a caligrafia desempenha um papel crucial nas artes – ela aparece em diversos trabalhos, de diferentes estilos e é capaz de intensificar a identificação com as culturas das quais são derivadas. Além disso, a caligrafia é um elemento fundamental nas artes do mundo islâmico, assim como é na China – e ambas são muito bem marcadas, possuindo traços que são facilmente identificados no mundo todo.
No caso da China, um fato curioso é que a caligrafia islâmica sobreviveu a períodos longos de isolamento do resto de seu universo de origem. Ou seja, a caligrafia islâmica preservou sua força e sua identidade nesse “novo mundo”. Mas, ao mesmo tempo, ela também absorveu muito da cultura chinesa, mostrando adaptação ao seu entorno.
A culinária islâmica que se desenvolveu na China também é um atrativo a mais nesse contexto intercultural. Afinal, a gastronomia pode ser considerada uma forma de arte – e essa mistura é extremamente atraente e, ao mesmo tempo, exótica. Nesse contexto chinês, os pratos mais conhecidos estão relacionados à culinária Hui, que são o grupo étnico islâmico em maior número na China.
Para os Hui, assim como para outros grupos de muçulmanos, as panquecas grelhadas são um prato irresistível – os chamados dabing. Essas panquecas são diferentes das tradicionais panquecas do Ocidente, pois elas são bem maiores e mais grossas. De forma geral, sua maneira de preparo é na grelha, mas há também versões em que são fritas.
Outro prato que não pode faltar na culinária islâmica na China é o macarrão. Ele pode ser feito de trigo, farinha de legumes ou arroz. E cada um tem um sabor especial. Assim como a panqueca, o macarrão tem preparos diferentes: alguns cortam, outros puxam e beliscam, antes de colocar a massa para cozinhar, fritar ou assar. E o mais importante: tudo é sempre fresco, para garantir o sabor passado de geração em geração.
A relação da religião islâmica com a cultura chinesa é milenar. Por isso, esse tem sido um entrelaçamento tão rico em diversos aspectos, para além da fé – como aspectos sociais, culturais e econômicos. Da mesma forma, a influência mútua, exercida ao longo desses anos todos, modificou tanto a história e a cultura chinesa, quanto a maneira como o islamismo é vivido no país.
Levados pelo comércio, os primeiros muçulmanos a chegar na China não desbravaram apenas novos territórios, mas também novas possibilidades de se vivenciar o islamismo. E isso é fundamental para que a fé possa se renovar, apesar de suas crenças e tradições estabelecidas. Com o passar do tempo, o islamismo precisou se adaptar a novas realidades, mas manteve sempre sua essência. Tanto, que tem marcado profundamente a China, em sua arquitetura, sua gastronomia, sua história: em resumo, em seu cotidiano.
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