A palavra “salafi” (salaff) ou “muçulmano primitivo” na erudição islâmica tradicional significa aquele que morreu dentro dos primeiros quatrocentos anos depois do Profeta Muhammad (s.a.w.s.), inclusive sábios como Abu Hanîfa, Mâlik, Shâfi’i e Ahmad ibn Hanbal. Qualquer um que morreu depois disso é um dos khalaf ou “muçulmanos dos últimos dias”.
O termo “salafi” foi revivido como um slogan e um movimento, entre os muçulmanos dos últimos dias, pelos seguidores de Muhammad ‘Abduh (o aluno de Jamâl al-Din al-Afghâni) uns treze séculos depois do Profeta (s.a.w.s.), aproximadamente há cem anos. Como movimentos semelhantes que historicamente apareceram no Islã, sua reivindicação básica era que a religião não tem sido corretamente entendida por ninguém desde o Profeta (s.a.w.s.) e os primeiros muçulmanos – e eles mesmos.
Em termos de ideais, o movimento advogava um retorno a uma ortodoxia direcionada pela Sharî’a que purificaria o Islã de acréscimos injustificados, os critérios para julgar o que estaria no Alcorão e hadîth. Agora, esses ideais são nobres e não penso que alguém discordaria da sua importância. Os únicos pontos de discordância são como esses objetivos seriam definidos e como o programa deveria ser levado adiante. É difícil em poucas palavras lidar devidamente com todos os aspectos do movimento e os problemas envolvidos, mas espero publicar uma tratativa mais completa mais tarde ainda neste ano, in shâ’Allah, numa coleção de artigos chamada “Os Re-Formadores do Islã”
Quanto à sua validade, pode-se notar que a abordagem salafista é uma interpretação dos textos do Alcorão e da Sunna, ou antes um corpo de interpretação, e como tal, aqueles que evidenciam suas declarações estão sujeitos aos mesmos critérios rigorosos das ciências islâmicas como qualquer um que faça alegações interpretativas sobre o Alcorão e a Sunna; nomeadamente, eles devem mostrar:
1. que suas interpretações são aceitáveis em termos de língua árabe;
2. que eles têm domínio exaustivo de todos os textos primários que se relacionam a cada questão e
3. que eles tenham completa familiaridade com a metodologia de usûl al-fiqh ou “fundamentos da jurisprudência” necessária para fazer a junção de todos os textos primários compreensivelmente.
Somente quando se tem essas qualificações que se pode produzir legitimamente uma alegação interpretativa válida sobre os textos, que é chamado de ijtihad ou “dedução da Sharî’a” das fontes primárias. Sem essas qualificações, o máximo que se poderia fazer é reproduzir uma declaração interpretativa assim de alguém que definitivamente tenha essas qualificações; isto é, alguém daqueles animosamente reconhecidos pela Umma como tal desde os tempos dos verdadeiros Salaf, encabeçando-os os Imâms mujtahids dos Quatro Madhâhib ou “escolas de jurisprudência”.
Quanto aos sábios hoje que não têm as qualificações de um mujtahid, não me é claro por quê eles deveriam ser considerados mujtahids do nada, assim como quando é dito que alguém é “o sábio vivo mais grandioso da Sunna” não sendo muito diferente de quando qualificamos uma criancinha de escola no parquinho como um físico dizendo: “ele é o maior físico no parquinho”. Declarações de conhecimento islâmico não se fazem do nada. Slogans sobre “seguir o Alcorão e a Sunna” soam bem na teoria, mas na prática vem a questão da erudição, e quem resolverá para os muçulmanos as milhares de questões da Sharî’a que surjam na sua vida. Em algum momento se percebe que se deve escolher entre seguir o ijtihad de um mujtahid real ou o ijtihad de um ou outro “líder do movimento”, cujas qualificações podem ser simplesmente uma questão de reputação, algo que é frequentemente feito e circulado entre as pessoas sem um entendimento dos problemas.
O que vem à mente de muita gente nesses dias quando se diz “salafistas” são jovens barbados discutindo sobre o dîn (religião). A esperança básica desses reformadores cheio de juventude parece ser que discussão e conflito vão acabar em algum momento desarmando qualquer resistência ou discordância às suas posições, que então resultarão em purificar o Islã. Aqui eu penso que a educação, de todos os lados, poderia fazer muito para melhorar a situação.
A realdidade do caso é que os Imâms mujtahids, aqueles cuja tarefa era deduzir a Sharî’a islâmica do Alcorão e hadîth, estavam em acordo sobre a maioria das regras; enquanto aquilo sobre o que discordariam eles teriam uma boa razão para tal, seja porque o árabe poderia ser entendido de mais de uma maneira, seja porque um texto particular do Alcorão ou hadîth admitia qualificações dadas em outros textos (algumas delas aceitáveis por razões de metodologia legal para um mujtahid mas não para outro) e assim por diante.
Pela falta de informações difíceis em línguas vernáculas, a legitimidade da diferença erudita sobre as regras da Sharî’a é frequentemente perdida de vista entre os muçulmanos no Ocidente. Por exemplo, a obra Fiqh al-Sunna pelo autor Sayyid Sabiq, recentemente traduzida para o inglês, apresenta evidências de hadîth para regras correspondentes a cerca de 95 porcento daquelas da Escola Shâfi’i. O que é uma contribuição bem-vinda, mas de modo algum uma “palavra final” sobre essas regras, pois cada uma das Quatro Escolas tem uma vasta literatura de evidências de hadîth, e não somente a Escola Shâfi’i refletida pela obra de Sabiq. A Escola Mâliki tem a Mudawwana do Imâm Mâlik, por exemplo, e a Escola Hanafi tem o Sharh Ma’âni al-Athar [Explicação dos Significados dos Ahâdîth] e Sharh Mushkil al-Athar [Explicação dos Ahâdîth Problemáticos], ambos pelo grande Imâm de hadîth Abu Ja’far al-Tâhâwi, tendo essa última obra sido publicada recentemente em dezesseis volumes por Mu’assasa al-Risâla em Beirute. Quem quer que não tenha lido essas obras e não saiba o que há nelas é condenado por ser ignorante de evidência de hadîth pela grande maioria das posições hanafis.
O que estou tentando dizer é que há um elemento fictício enorme envolvido quando alguém chega para os muçulmanos e diz: “Ninguém entendeu o Islã corretamente exceto o Profeta (s.a.w.s.) e os primeiros muçulmanos, e nosso shaikh”. Isso não é válido, pois as obras duradouras dos imâms de primeira categoria em hadîth, jurisprudência, exegese alcorânica e outras disciplinas da Sharî’a impõem nos muçulmanos a obrigação de saber e entender sua obra, da mesma forma que a compreensão séria de qualquer outro campo acadêmico obriga que se tenha estudado as obras de seus maiores sábios que lidaram com seus problemas e resolveram suas questões. Sem tal estudo, é-se condenado a repetir os erros já feitos e relegados ao passado.
A maioria de nós tem conhecidos entre a Umma que dificilmente reconhece outro sábio na face da Terra além do Imâm do seu madhhab, o Shaikh do Islã deles ou algum sábio contemporâneo ou algum outro. Tal tipo de entusiasmo é entendível, até mesmo aceitável (em nível humano) num não sábio. Mas só até onde isso não se torne ta’assub ou intolerância, significando que se creia que se deva derrubar muçulmanos que sigam outros sábios qualificados. Nesse ponto é harâm, porque é parte do sectarismo (tafarruq) entre os muçulmanos que o Islã condena.
Quando se recebe conhecimento islâmico e se põe a ficção de lado, vê-se que superlativos sobre sábios particulares tais como “o maior” são insustentáveis, que cada uma das Quatro Escolas de jurisprudência islâmica clássica teve muitíssimos luminares. Imaginar que toda a erudição precedente seria avaliada em termos desse ou daquele “Grande Reformador” é se aprontar para uma grande depressão, porque isso não pode ser sustentado intelectualmente. Lembro-me de ter escutado uma vez um estudante de Direito na Universidade de Chicago dizer: “não estou dizendo que Chicago tem tudo. É só que nenhum outro lugar tem algo.” Nada justifica transpor esse tipo de atitude para nossas fontes acadêmicas no Islã, seja isso chamado de “Movimento Islâmico”, “Salafismo” ou outra coisa, e o quão mais cedo abandonemos isso, melhor será para nossa erudição islâmica, nosso senso de realidade e para nosso dîn (religião).
©Nûh Hâ Mîm Keller 1995
Fonte: https://masud.co.uk/who-or-what-is-a-salafi-is-their-approach-valid/
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