O debate cansativo que gira em torno de o Islam ser ou não uma religião mais violenta que as outras e ser ou não uma ameaça ao Ocidente infelizmente não cessou. O plano de fundo para este debate milenar foi ascendido mediante ao esforço de guerra liderado pelos EUA contra os militantes extremistas do Estado islâmico, bem como a contínua ameaça de grupos terroristas em outros lugares que aderem a certas formas puritanas do Islam. Sua raia do fundamentalismo é, para o Ocidente, o bicho-papão do momento. Mas muitos argumentam que tal extremismo pouco tem a ver com o Islam de maneira geral (ou mais tradicional).
De qualquer forma, o Islam e aqueles que o praticam nem sempre foram vistos como uma ameaça cultural e ideológica. Apenas algumas décadas atrás, os EUA e seus aliados no Ocidente não tinham escrúpulos na cumplicidade com grupos militantes islâmicos em suas batalhas com os soviéticos no Afeganistão. Pesquise ainda mais na história, e descobrirá que houveram momentos em que o eleitorado vocal no Ocidente viu a comunidade muçulmana como, um contra-ideológico direto a um inimigo de ambos.
Voltemos a década de 1830. Um influente grupo de oficiais na Grã-Bretanha – o então império mais poderoso no Ocidente, com uma crença professada em valores liberais e de livre mercado- estava cada vez mais preocupado com a força crescente de Rússia. Da Ásia Central até o Mar Negro, os domínios recém-conquistados da Rússia foram lançando uma sombra sobre os interesses coloniais britânicos na Índia e no Oriente Médio. O potencial de captura russo de Istambul, capital do então enfraquecido Império Otomano, significaria o livre acesso da marinha russa ao Mar Mediterrâneo – uma perspectiva quase impensável para a Grã-Bretanha e outras potências europeias, para não dizermos apocalíptica.
E assim, entre os diplomatas e na imprensa da época uma narrativa russofóbica começou a surgir. Era ideologicamente como um choque de civilizações. Afinal de contas, começando com Catarina, a Grande, no final do século 18, os russos haviam enquadrado suas próprias conquistas em termos religiosos: para recuperar Istambul, uma vez centro do cristianismo ortodoxo até o fim da Idade Média, um dos poetas favoritos da corte de Catarina, Gabriel Derzhavin havia dito, ” avancem através de uma Cruzada” para a Terra Santa e” purifiquem o rio Jordão “.
Esse tipo de zelo cristão ganhou pouca simpatia entre outros cristãos não-ortodoxos. Jerusalém no século 19 ainda era o local de batalhas de rua amargas entre seitas cristãs exasperadas, policiadas pelos otomanos. O proselitismo ortodoxo russo dos católicos na Polônia enfurecia as nações católicas mais a oeste, como a França.
O barão Ponsonby, embaixador britânico em Istambul, por grande parte da década de 1830, definiu o trabalho de combater o expansionismo russo como uma “Santa Causa.” Um artigo no panfleto “British and Foreign Review”, circulou na Grã-Bretanha em 1836, e via os otomanos como “o único baluarte da Europa contra a Moscóvia, da civilização contra a barbárie.” A Rússia representava, segundo algumas opiniões da época, uma sociedade atrasada, supersticiosa onde os camponeses ainda trabalhava em semi-escravidão e monarcas governavam como tiranos, sem contestação por parte dos parlamentos e sentimento liberal. Os otomanos, que estavam embarcando em seu próprio processo de reforma, pareciam favoráveis em comparação.
David Urquhart, um agente empreendedor que serviu um período com Ponsonby em Istambul, tornou-se um dos mais enérgicos defensores da causa otomana e cultura islâmica nos círculos políticos britânicos. Seus escritos sobre a ameaça da Rússia formaram a opinião de muitos na Grã-Bretanha da época, incluindo um certo Karl Marx. E o periódico em que Urquhart passou entre as tribos do Norte do Cáucaso podem definir o cenário para décadas de idealização romântica europeia dos robustos combatentes muçulmanos contra a sobra da Rússia.
Urquhart voltou de suas viagens na Turquia e em outros lugares convencido de que o estilo de vida otomano era melhor para a saúde. “Se Londres fosse [muçulmana]”, ele escreveu, “a população iria tomar banhos regularmente, e ter um jantar mais bem vestido para o [seu] dinheiro, e prefeririam a água ao invés de vinho ou conhaque, gin ou cerveja.” Ele viria a lançar um movimento muito mal sucedido para trazer a cultura dos banhos turcos ao frio úmido da Grã-Bretanha vitoriana.
Lançando seu olhar para os territórios controlados pelos otomanos, Urquhart elogiou o governo do império sobre uma série de comunidades cristãs e de outras seitas – por exemplo, as guerras entre os drusos e maronitas no Levante, ou conflitos entre ortodoxos gregos e armênios. Em um trecho citado pelo historiador Orlando Figes em seu excelente História da Guerra da Criméia, Urquhart creditou ao Islam sob os otomanos especificamente como “tolerante, força moderadora”:
‘’Que viajante não teria observado o fanatismo, e antipatia de todas essas seitas [cristãs] – e sua hostilidade uma para com as outras? Quem traçou seu repouso real para a tolerância do islamismo? Islamismo, calmo, absorvido, sem espírito de dogma, ou pontos de vista de proselitismo, impõe neste momento sobre os outros credos a reserva e silêncio que caracterizam si. Mas deixe que este moderador seja removido, e as profissões humildes agora confinadas ao santuário seriam proclamadas na corte e acampamento militar; poder político e inimizade política combinaria com a dominação religiosa e animosidade religiosa; o império seria inundado de sangue, até que uma autoridade nervosa – a autoridade da Rússia – aparecesse para restaurar a harmonia, pelo despotismo.’’
Avancemos para 2014, e a conversa foi curiosamente invertida: ‘’intelectuais’’ vociferam sobre os séculos de idade da guerra entre sunitas e xiitas. Os cristãos são mostrados como um povo perseguido e sitiado no Oriente Médio. Sem ditadores cruéis alinhados com o Ocidente, nos disseram, o mundo muçulmano iria sucumbir em um banho de sangue caótico, onde as organizações terroristas ganhariam influência.
A lição de história acima não é para denegrir os russos e elogiar os otomanos, um império que era culpado de muitos de seus próprios erros e matanças. Urquhart teve muitos detratores e opositores de volta para casa, especialmente aqueles que queriam que Grã-Bretanha fosse menos abertamente antagônica em relação à Rússia. (Rússia, o Império Otomano, Inglaterra e França, eventualmente, estavam envolvidos na Guerra da Criméia, em grande parte inútil e muito sangrenta na década de 1850).
Mas esta lição vale para mostrar o quanto a política de uma era molda seu discurso sobre culturas e povos. Isso não é menos verdadeiro agora do que era há quase dois séculos. E a maneira como muçulmanos são percebidos hoje, pode mudar radicalmente amanhã.
Texto baseado no artigo de Ihsan Tharoor ao Washington Post, fonte com links das bibliografias usadas.
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