O tafsīr de Ibn Kathir (nascido em 1302 d.C.) é um dos comentários do Alcorão mais popularmente utilizados no mundo árabe nos dias de hoje.
Recentemente, enquanto estudava o Alcorão com o tafsīr de Ibn Kathir, fiquei sabendo de um acontecimento incrível, que envolve dois rabinos e a Ka‘bah Sagrada. Na explicação do versículo (ayah) 44:37 do Alcorão, Ibn Kathir relata os seguintes eventos:
“Um dos reis Tubba‘ partiu da região do Iêmen numa empreitada de conquistas até alcançar Samarqanda, expandindo seu reino e domínio. Ele que fundou Al-Hirah. Há consenso de que ele passou por al-Madinah durante os tempos da ignorância pré-islâmica (Jahiliyyah). Ele tentou combater os locais, mas eles resistiram; eles o combatiam durante o dia e lhe ofereciam alimentos durante a noite, então ele se envergonhou diante deles e se não lhes combateu mais.”
“Ele tinha a companhia de dois rabinos judeus, seus conselheiros. Eles disseram a ele que jamais sairia vitorioso nesta cidade (então chamada Yatrib). Então ele recuou e os levou (os dois rabinos) com ele até o Iêmen.”
“Quando passou por Meca, ele decidiu destruir a Ka‘bah, mas os rabinos aconselharam que também não fizesse isso. Contaram a ele sobre a importância daquela Casa, que ela havia sido construída por Ibrahim al-Khalil (o Profeta Abraão, Amigo Íntimo de Deus), e que ela teria grande importância com a vinda de um Profeta, mais perto do fim dos tempos.”
“O rei a respeitou, fez a circum-ambulação (o tawaf) em torno dela e a cobriu com um tecido de fina qualidade. Então retornou ao Iêmen e convocou o seu povo a seguir a religião da orientação junto a ele. Naquela época, a religião (o judaísmo) de Musa (Moisés) era a religião que os bem-orientados seguiam, antes da vinda do Messias. Assim, o povo do Iêmen aceitou a religião da orientação junto dele (o rei Tubba‘).”
Apesar de ter estudado o Alcorão por quase 60 anos e ter lido muitos outros livros islâmicos, nunca ouvi falar desses acontecimentos. Me considero um Rabino Judeu Reformista, judaico-muçulmano. Com judaico-muçulmano, quero dizer que sou judeu fiel e me submeto à vontade de Deus.
Como rabino, sou crente na aliança que Deus fez com Abraão – o primeiro judeu, monoteísta fiel (Hanifi Muslim), e me submeto aos mandamentos da aliança que Deus fez com o povo de Israel no monte Sinai.
Como rabino reformista, também acredito que os líderes espirituais judeus deveriam modificar as tradições judaicas, uma vez que as circunstâncias históricas e sociais mudam e se desenvolvem. Também creio que não devemos dificultar a prática da religião para as pessoas, anexando um número cada vez maior de restrições e limitações aos mandamentos que recebemos no monte Sinai.
Essas são as lições que o Profeta Muhammad ensinou doze séculos antes do surgimento do judaísmo reformista no começo do século XIX, na Alemanha. Apesar da maioria dos judeus de hoje não serem mais ortodoxos, se os judeus da época do Profeta Muhammad tivessem seguido os ensinamentos dele, o judaísmo reformista teria começado 1.400 anos atrás. Creio que o Profeta Muhammad era um profeta do judaísmo reformista para os judeus ortodoxos da época dele; ainda assim, ele estava 1.200 anos à frente de seu tempo.
Durante os seis séculos entre o nascimento de Jesus e a chegada de Muhammad em Yathrib, a cidade dos judeus (Medina), a maioria dos judeus já havia adotado a ortodoxia.
Com a afirmação de ibn Kathir de que “naquela época, a religião (o judaísmo) de Musa era a religião dos orientados, antes da vinda do Messias, que a paz esteja com ele”, podemos concluir que os acontecimentos que ele relata ocorreram antes do nascimento de Jesus e da ascensão do judaísmo ortodoxo.
Os judeus migraram para a Arábia e o Iêmen nos séculos depois da destruição de Jerusalém e da sua Casa Sagrada, que fora construída na metade do século X a.C. pelo profeta Salomão. Naquela época, os eruditos entre os judeus, estudiosos da Torá, eram chamados de escribas ou sábios.
Dito isso, por que foi tão importante para esses dois anciãos judeus convencerem o Rei Tubba‘ que não destruísse a Ka‘bah?
Os místicos judeus sempre indicaram com sua crença que há uma Casa Sagrada ideal nos paraísos elevados – Beit HaKodesh – que, de alguma maneira transcendente e simbólica, era a Casa de Deus – Beit El.
O Alcorão diz: “E o seu profeta [Samuel] voltou a dizer: O sinal da sua autoridade consistirá em que vos chegará a Tabut [Arca – uma caixa de madeira posicionada no centro do Tabernáculo, a Arca da Aliança], conduzida por anjos, contendo a Sakinah do vosso Senhor [a paz e a garantia interiores] e algumas relíquias, legadas pela família de Moisés e de Aarão. Nisso tereis um sinal, se sois fiéis.” (2:248)
Ibn Kathir explica a parte “conduzida por anjos” citando Ibn Jurayj, que afirma que Ibn ‘Abbas disse: “Os anjos desceram carregando a Tabut por entre o céu e a terra, e a colocaram diante de Talut (Saul) enquanto as pessoas observavam.”
Portanto, haverá sempre uma Casa Sagrada para a peregrinação monoteísta. Se ela não existir materialmente em Meca (Makkah) ou em Jerusalém, existirá em ideal e espiritualmente nos paraísos elevados.
Quando não é chamada de Beitullah, é chamada de Beit El. Quando não é chamada de Bayt al-Maqdis, é chamada de Beit HaMiqdash; há muitas denominações, dois locais na terra e um no paraíso, mas todos eles são um.
Quando Abraão e Ismael reconstruíram a Casa Sagrada em Makkah, não havia Casa em Jerusalém. Quando Salomão construiu a Casa Sagrada na metade do século X a.C., a Casa Sagrada de Makkah já havia sido construída por Abraão e Ismael e já havia sido poluída pelos 360 ídolos que os habitantes locais colocaram dentro dela. Então, no ano 587 a.C., os babilônios destruíram a Casa Sagrada de Jerusalém. Cerca de 70 anos mais tarde, os judeus que voltaram do exílio na Babilônia reconstruíram a Casa Sagrada de Jerusalém.
Uma geração após a morte de Jesus, no ano 70 d.C., os romanos destruíram Jerusalém e a Casa Sagrada. Eles erigiram um arco de triunfo no Fórum Romano, com uma representação do candelabro sagrado do Templo sendo levado como tesouro.
E durante todo o tempo da Jahiliyyah, a Casa Sagrada em Makkah permaneceu poluída até ser purificada dos 360 ídolos por Muhammad, perto do fim de sua vida. Desde então, permanece pura. A Casa Sagrada ideal do paraíso foi reconstruída fisicamente muitas vezes em dois locais sagrados distintos.
Mas o Deus único, que é adorado em cada local sagrado distinto, é o Deus único de todos os lugares do mundo. Como ensinaram os rabinos anciões: “Por que Deus se chama Makom (lugar)? Porque Ele é o local do mundo – e o mundo não é o local d’Ele.” (Yalqut Shimoni Vayetze 117)
De fato, um dos nomes de Deus na tradição judaica é Makom – local; porque enquanto o Profeta Ya‘qūb (Jacó) fugia do seu odioso irmão, Esaú, (Genesis 27:41) certa noite ele dormiu num local especial, onde teve a visão de uma escada que ligava os céus e a terra:
“E [Jacó] chegou a um lugar onde passou a noite, porque já o sol era posto; e tomou uma das pedras daquele lugar, e a pôs por seu travesseiro, e deitou-se naquele lugar.
E sonhou: e eis uma escada posta na terra, cujo topo tocava nos céus; e eis que os anjos de Deus subiam e desciam por ela;” (Genesis, 28:11-12).
Os dois rabinos judeus protegeram Makkah pois sabiam e acreditavam na tradição falada de que Abraão e Ismael tinham reconstruído a Ka‘bah. Se dúvida, eles também se entristeceram pela Ka‘bah ter sido poluída por 360 ídolos que, nela, eram adorados.
Uma vez os judeus acreditam que o Templo Sagrado de Jerusalém não será reconstruído até depois da vinda do Messias, os rabinos devem ter esperado que algum dia surgiria um Profeta em Makkah que purificaria a Ka‘bah dos 360 ídolos. E essa esperança viria a ser retribuída pelo Profeta Muhammad séculos mais à frente.
Talvez por isso que ‘Umar ibn al-Khattab, o segundo califa, depois de conquistar Jerusalém, foi na direção “da área onde os romanos haviam enterrado o Templo [bayt al-maqdis], na época dos filhos de Israel”, segundo Abu Ja‘far Muhammad bin Jarir al-Tabari (839-923 d.C.) – um dos principais comentadores do Alcorão, conhecido como um dos maiores historiadores do Islam.
Talvez por isso também que, um pouco depois de 696/697, de cinco a dez anos após o Domo da Rocha ter sido construído, foram colocadas em circulação moedas de bronze – um lado delas com a imagem do menorah (candelabro) de sete braços do Templo e com a Shahada em árabe – “Não há deus além de Allah” – e sem mais nenhuma gravura do outro lado, exceto: “Muhammad [é o] Mensageiro de Allah”.
Fonte: https://themuslimvibe.com/faith-islam/why-two-jewish-rabbis-protected-the-kaaba
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