“O Islam forneceu tudo para homens e mulheres. Deu tudo às mulheres - liberdade, direitos econômicos, direitos políticos, direitos sociais, direitos públicos e privados. O Islam concedeu às mulheres direitos na família não garantidos por nenhuma outra sociedade. As mulheres podem falar de libertação na sociedade cristã, na sociedade judaica ou na sociedade pagã, mas na sociedade islâmica é um grave erro falar da libertação das mulheres. A mulher muçulmana deve estudar o Islam para saber que foi o Islam que deu a ela todos os seus direitos ”.
A frase acima foi dita pela ativista egípcia Zainab al-Ghazali, pioneira do feminismo islâmico. Ela recebeu grande influência do feminismo ocidental, mas logo percebeu que a perspectiva individualista desse movimento social, em que as mulheres devem buscar sua emancipação independente da religião, não era conciliável com seus princípios como muçulmana. Portanto, ela o condenou.
A grande mãe do feminismo islâmico nunca questionou os papéis do homem e da mulher dentro da religião e defendia a forma como o Alcorão e o Profeta Muhammad honraram a todas as pessoas, fazendo com que muitos estudiosos da história do movimento feminista a categorizasem como uma pensadora conservadora.
Embora suas ideias não contradissessem os princípios religiosos, os impactos do feminismo islâmico não se restringem aos pensamentos de Zainab. No campo político, seu movimento foi instrumentalizado pela Irmandade Muçulmana, entidade com a qual a ativista manteve relações estreitas, e foi um dos principais grupos responsáveis pela criação do Islam político e de outras ideias que foram fundamentais para o avanço do radicalismo islâmico.[1]
Após Zainab, as pensadoras que seguiram a sua linha adotaram raciocínios menos conservadores, acreditando que era importante aderir a pensamentos progressistas para contribuir com a diminuição da opressão contra as muçulmanas. Na prática, isso representou um declínio das questões espirituais do Islam para um debate essencialmente político em que Allah e o Profeta não eram finalidades, mas sim meios para se atingir objetivos.
No século XIX, os britânicos tentaram desestabilizar a cultura egípcia para conter o avanço dos nacionalistas e legitimar o domínio europeu. Um dos principais argumentos usados nessa época era, segundo eles, a forma desumana como o Islam tratava as mulheres e, em contrapartida, os costumes ocidentais seriam a chave para libertar as muçulmanas de toda a opressão.
Essa visão se propagou na sociedade egípcia e recebeu acolhimento de diversas pessoas que foram persuadidas a revisarem os elementos de sua cultura, acreditando que os preceitos religiosos como o uso do véu, a poligamia, a reclusão das muçulmanas, a submissão da esposa e os papéis de gênero do homem e da mulher fossem fomas de violência contra elas.
Esses argumentos ganham força com autores modernistas como Qasim Amin, mas se propagam principalmente entre as feministas Huda Sharawi, fundadora da União Feminista do Egíto, e Duriyya Shafiq , fundadora da União das Filhas do Nilo. Essa geração de intelectuais pretendia, basicamente, diminuir o papel da religião na sociedade egípcia e consolidar o modelo político secular para estabelecer a igualdade de gênero. [2]
Embora haja casos como o de Huda Sharawi, que dizia não ter o objetivo de mudar a sharia, era nítido que ela pretendia diminuir o poder da religião na esfera pública e acabar com as tradições religiosas contrárias ao pensamento feminista secular, ressignificando o papel da mulher de esposa e mãe do lar para alguém capaz de buscar sua emancipação e de realizar suas próprias ambições no mercado de trabalho.
Nascida no ano 1917 e filha de um sheikh, Zainab al-Ghazali se juntou à União Feminista do Egito aos 16 anos. Porém, logo percebeu a incompatibilidade do ativismo secular com os princípios islâmicos aos quais ela aderia e, aos 18, ela criou a Associação das Mulheres Muçulmanas.
A associação assumiu um papel ativo no proselitismo religioso (dawa) e também promoveu educação islâmica para as mulheres como forma de conscientizá-las sobre os seus direitos para que elas tenham dignidade como mães e esposas, e para que elas não precisem abrir mão de ocupar os espaços destinados às mulheres na sociedade islâmica.
No entanto, Zainab sempre considerou que a mulher deve primeiramente se dedicar ao matrimônio e à maternidade. As mulheres também poderiam assumir papel na esfera pública, intelectual e política de acordo com os preceitos religiosos garantidos a elas, se essas funções não impedissem as primeiras.
Pela perspectiva islâmica, é inegável dizer que Zainab defendeu bons pontos ao ressaltar que o respeito às mulheres e as melhores condições de tratá-las são alcançados quando os preceitos religiosos são honrados de maneira ampla. Muitas de suas visões sobre o gênero feminino também eram compartilhadas com Said Qutb, que provavelmente influenciou Zainab.
Said Qutb foi exegeta corânico e principal formulador do Islam político. Ele considerava que o imperialismo ocidental representava um retorno à era da ignorância pagã e a solução para isso era o resgate de uma sociedade islâmica governada pela sharia, mesmo que para isso fosse necessário instaurar revoluções violentas. Esse ideal político que ele propunha influenciou o jihadismo global da Al-Qaeda e a Revolução Iraniana de 1979.
Qutb foi ideólogo da Irmandade Muçulmana, organização que surgiu no Egito em 1928 pregando o retorno às origens islâmicas e o nacionalismo como uma alternativa política ao colonialismo britânico. A entidade também buscava combater as influências do pensamento ocidental na sociedade egípcia e isso incluía o feminismo secular, o qual Qutb apontava como principal razão da degradação da mulher nas sociedades capitalistas.
Os pensamentos mais elementares relacionados ao gênero são comuns entre Zainab e Qutb, pois ambos acreditavam que o Islam deu às mulheres a opção de serem sustentadas e cuidarem de sua família, e que isso era muito mais digno do que a realidade das ocidentais, obrigadas a trabalhar por causa da ganância capitalista e da incapacidade de seus maridos em sustentá-las.
No entanto, uma diferença marcante entre o pensamento dos dois é que Qutb defende que, embora o Islam tenha autorizado as mulheres a serem estudantes e profissionais, ele as encoraja a permanecerem em casa, enquanto Zainab defende que elas priorizem suas obrigações como esposa e mãe, mas afirma com veemência que a religião lhes permite ocupar o espaço público.
Como disse a autora Pauline Lewis, em sua biografia de Zainab: “A combinação de al-Ghazali dessas várias influências viria a criar um discurso que era tanto reacionário em seus métodos de empregar retórica conservadora e espiritual, mas revolucionário na busca por objetivos nacionalistas e feministas.”
Naturalmente, a relação entre Zainab e a Irmandade Muçulmana não seria tão estreita se a ativista não enfatizasse que o papel religioso da muçulmana também deveria ter utilidade para a esfera política. Embora militância e engajamento em questões sociais sejam aspectos que o Islam não estabelece como compromissos para as mulheres, para Zainab são tão importantes quanto qualquer outra prática para propagar a religião.
Em suas declarações públicas, Zainab defendia três pontos: A mulher é fundamental para a criação de uma sociedade islâmica forte, pois elas são as mães e professoras, portanto precisam ser educadas, íntegras e religiosas; devem cumprir seu papel no proselitismo religioso e, por último, devem rejeitar os males das influências da sociedade ocidental mesmo após o fim da colonização formal.
Pelo fato de as mulheres possuírem um papel dominante na educação das crianças, Zainab acredita que é impossível que a comunidade se retifique se a mulher não assumir seu papel como agente de expansão da religião. Portanto, elas devem ser cultas, conhecer o Alcorão e a Sunnah, a política e a geografia mundial e as razões do atraso da sociedade. Com tecnologias atuais e educação religiosa, as mães seriam capazes de criar uma forte sociedade islâmica.
Ainda que Zainab não deixe claro qual é o sentido do proselitismo feminino, ela esclarece que a mulher tem responsabilidade em ajudar a consolidar uma sociedade islâmica e, embora ela estipule um papel religioso para elas que esteja amplamente de acordo com o consenso dos sábios da tradição sunita, seu propósito político é algo intimamente ligado à agenda da Irmandade Muçulmana.
Na Conferência das Mulheres Muçulmanas de 1985, em Lahore, Zainab declarou: “A Irmandade considera as mulheres uma parte fundamental do chamado islâmico. Elas são as mais ativas porque os homens têm que trabalhar. São elas que constroem o tipo de homem de que precisamos para preencher as fileiras do chamado islâmico.” [3]
Naturalmente, o feminismo islâmico não se restringe ao pensamento filosófico de Zainab. No entanto, é impossível negar que a sua percepção de muçulmanas como agentes de mudanças sociopolíticas e que preservam a prática da religião consolidou a ideologia como conhecemos atualmente.
Hoje, as lutas feministas são extremamente diversificadas e usam a religião islâmica para atingir uma série de objetivos políticos, normalmente relacionados à diminuição da desigualdade entre homens e mulheres, violência doméstica e eliminação de práticas culturais que se encrustraram na religião, causando opressão a elas. Mas, em muitos casos, também combatem práticas religiosas estabelecidas no Alcorão e na sunnah do Profeta.
Alguns exemplos disso: feministas islâmicas protestaram em mesquitas nos EUA alegando que a divisão de sexos na oração não possui base no Alcorão; a professora feminista Amina Wadud liderou uma oração sem segregação de gênero e alegou que “rompeu com algo inventado pelo homem” e o objetivo do movimento Musawah de acabar com a poligamia no Islam.
Essas noções de igualdade de gênero são especialmente conflituosas com a religião pelo fato de serem inspiradas nas demandas progressistas e individualistas das mulheres no ocidente. O feminismo islâmico, assim como o Islam político, insere a doutrina religiosa dentro da lógica ocidental e submete-a a interpretações ideológicas para atingir determinados objetivos.
Se antes a mulher podia contemplar a religião de forma ampla para preencher seus dilemas espirituais, sob a nova lente ela se torna uma agente político encarregado de promover um projeto revolucionário para corrigir as práticas dos muçulmanos segundo seu entendimento pessoal - algo que vem à tona não por causa de um mandamento divino, mas por influência do discurso ocidental de igualdade entre os sexos.
Quando isso se instaura na religião islâmica, os pecados deixam de ser falhas que precisam ser corrigidas através da purificação espiritual e da aplicação da sharia e se transformam em problemas que devem ser combatidos politicamente para eliminar desigualdades, embora este conceito seja bastante vago.
Ao julgarmos o exemplo de Zainab al-Ghazali, vemos que nem todo feminismo contradiz o Islam, a princípio. No entanto, uma fala do Dr. Shadee El-Masri a respeito da militância contra a islamofobia nos ajuda a entender quais são os problemas em adotar um discurso vago de igualdade entre homens e mulheres:
“Quando pulamos para essa linguagem, nós aceitamos implicitamente essa estrutura liberal de que todos têm o direito de serem como são. Você deve navegar cuidadosamente, pois quando começa a fazer isso, começa a atrair outros movimentos ativistas que também falam essa linguagem (...) Quando fazemos isso, devemos fazer da maneira original, na nossa própria linguagem (...) Quando adotamos algo que está fora do Alcorão, isso eventualmente irá nos contradizer.”
O feminismo islâmico foi inventado pela ativista egípcia Zainab al-Ghazali, que fez parte da Irmandade Muçulmana, um movimento responsável pela criação do Islam político. Ela defendia que as mulheres deveriam priorizar suas tarefas como mãe e esposa, mas que também deveriam assumir um papel ativo para propagar a religião.
Zainab condenava as influências da sociedade ocidental no Islam.Porém, embora fosse contrária ao feminismo secular, ela o usou como inspiração para buscar uma sociedade mais justa para as muçulmanas.
Pensadoras feministas muçulmanas que vieram posteriormente não tiveram a mesma preocupação de Zainab e usaram influências bem mais progressistas para combater a desigualdade de gênero na religião, o que representou uma degradação de princípios religiosos amplamente estabelecidos no Alcorão e na sunnah do Profeta.
[1] ZAYNAB AL-GHAZALI PIONEER OF ISLAMIC FEMINISM. Disponível em: https://zaynabal-ghazali.weebly.com/
[2] UM RECENTE MOVIMENTO POLÍTICORELIGIOSO: FEMINISMO ISLÂMICO. Revista de Estudos Feministas. LIMA, Cila. Universidade de São Paulo, 2014.
[3] ZAINAB AL-GHAZALI PIONEER OF ISLAMIST FEMINISM. LEWIS Pauline, Journal of History, 2007
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