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O Pensamento de Al-Kindi e a influencia da filosofia no Islã primitivo

Há momentos breves na história, quando a natureza levanta seu véu para o intelecto humano, para que possamos testemunhar a majestade da criação divina e transmitir a sabedoria adquirida desse encontro às gerações futuras. Um tal intelecto era o de Al Kindi.

Abu Yusuf Yaqub Ibn Ishaq al-Kindi, um dos mais célebres filósofos e cientistas naturais da era clássica do Islã, nasceu em Kufa no ano 800, no ilustre clã de Kindah do sul do Iêmen. Durante os séculos V e VI, o clã unificou várias tribos sob sua proteção. Após o advento do Islã, alguns membros desta tribo migraram para o sul do Iraque, onde desfrutavam da proteção e auxílio dos califados, Omíada e Abássida. O pai de Al Kindi era o governador da Kufa, que na época era uma cidade comercial próspera, onde pessoas advindas da Pérsia, Arábia, Índia e China se encontravam para comércio e transação. Al Kindi recebeu sua educação inicial em Kufa.

Bagdá foi governada na época pelo lendário Harun ar Rashid (763-809) que herdeu a Escola de Tradução, estabelecida pelo Califa al Mansur (714-775) em 765. Esta era uma idade de ouro para os muçulmanos. Foi um momento da história quando a civilização islâmica abriu suas portas para novas idéias do Oriente e do Ocidente. À medida que o Império Abássida crescis, entrou em contato com idéias das civilizações gregas clássicas, indianas, zoroastrianas, budistas e hindus. Os muçulmanos confiantes tomaram essas idéias e as reformularam em um molde exclusivamente islâmico. Fora deste caldeirão veio arte, arquitetura, astronomia, química, matemática, medicina, música, filosofia e ética islâmica.

O que deu aos muçulmanos a confiança para enfrentar outras civilizações, foi a fé. Com uma confiança firmemente enraizada na revelação, os muçulmanos enfrentaram outras civilizações, absorvendo o que acharam ser válido e transformando-o na imagem de sua própria crença. O Alcorão convida homens e mulheres a aprender com a natureza, a refletir sobre os padrões, moldar e ajustar a natureza para que possam absorver sabedoria. “De pronto lhes mostraremos os Nossos sinais em todas as regiões (da terra), assim como em suas próprias pessoas, até que lhes seja esclarecido que ele (o Alcorão) é a verdade. Acaso não basta teu Senhor, Que é Testemunha de tudo?” (Alcorão, 41:53). É durante este período que vemos o surgimento do arquétipo da civilização islâmica clássica, chamado Hakim (que significa, uma pessoa de sabedoria). No Islã, um cientista não é um especialista que olha a natureza de fora, mas um homem de sabedoria que olha a natureza de dentro e integra seu conhecimento em um todo essencial. A busca dos Hakim não é apenas conhecimento pelo simples conhecimento, mas a realização da Unidade essencial que permeia a criação e as inter-relações que demonstram a sabedoria de Deus.

Em 814 CE, Al Kindi foi enviado a Bagdá para educação avançada. Bagdá estava sendo governada pelo califa al Mamun (786-833), que era um erudito por direito próprio e estudava medicina, fiqh, lógica e era um Hafiz-e-Qur’an (aquele que memoriza o Alcorão). Mamun foi além de seus predecessores ao encorajar a aprendizagem e a erudição (conhecimento ou cultura variada, adquiridos esp. por meio da leitura). Ele elevou a Casa da Tradução para Baitul Hikmah (Casa da Sabedoria). Convidou então, estudiosos da Grécia, da Índia e da Pérsia, a traduzir e promover o trabalho dos filósofos gregos, matemáticos hindus e místicos persas. Da Grécia vieram as obras de Sócrates, Aristóteles, Platão, Galeno, Hipócrates, Arquimedes, Euclides, Ptolomeu, Demóstenes, Antheme e Pitágoras. Da Índia chegaram estudiosos com conhecimento em números indianos, o conceito de zero, a medicina ayurvédica e as obras astronômicas de Ariabata (476-550) e Brahmagupta (598-668). Da China veio a ciência da alquimia e as tecnologias do papel, seda e cerâmica. Os persas trouxeram as disciplinas da administração, agricultura e irrigação. Os estudiosos que estavam envolvidos no trabalho de tradução incluíam muçulmanos, cristãos, judeus, zoroastrianos e hindus. Os muçulmanos aprenderam com essas fontes e deram ao mundo Álgebra, Química, Sociologia e o conceito de infinito.

O jovem e brilhante Al-Kindi logo atraiu a atenção de al Mamun, que o nomeou como um tradutor de Baitul Hikmah. Ali Kindi entrou em contato com os filósofos da época, como Ibn Hayyan (721-815), o inventor da ciência da química e o matemático Al Khwarizmi (780-850), inventor da Álgebra.

Al Kindi era um gênio versátil. Ele permanece no topo mesmo entre os gigantes intelectuais da época. Suas contribuições abrangem lógica, matemática, astronomia, química, física, geometria, medicina e música. Ele é creditado com a escrita de 241 livros nas seguintes disciplinas: lógica 9, matemática 11, astronomia 16, física 12, geometria 32, medicina 22 e música 7.

Em matemática, ele desenvolveu, juntamente com Al Khwarizmi (780-850), o sistema de números indianos, e aplicou-o em decimais. Ele fez contribuições originais para a geometria esférica e aplicou à astronomia. Na química, ele mostrou que os metais básicos não podiam ser convertidos em ouro, em oposição à visão predominante dos alquimistas. Na física, ele trabalhou na teoria do som e mostrou que a voz humana cria ondas que percorrem o ar e são recebidas pela cóclea (parte auditiva do ouvido). Na ótica ele fez experimentos com o reflexo da luz e mostrou como um espelho convexo focava os raios entrantes em um único ponto. Em medicina, ele desenvolveu uma metodologia sistemática para administrar a dosagem apropriada de remédio. Na música, ele estudou harmonia e pitch, e mostrou como as freqüências podem ser combinadas para produzir sons harmônicos. Ele estudou tempo e espaço e considerou que ambos eram finitos, ao contrário do ponto de vista de Aristóteles. Ele é mais conhecido por seu estudo do conceito de infinito e “o paradoxo do infinito” como o nomeou.

Al Kindi desenvolveu suas próprias idéias sobre akhlaq (caráter e ética). Assim como os mestres sufis, ele aconselhou o leitor a ir contra o apego ao mundo físico. Ao mesmo tempo, como os Imams de fiqh, ele prescreveu moderação na busca pela felicidade. Ele se manteve corajoso e prudente nas questões  da mente e da alma, pois mesmo aqui a necessidade de temperança era necessária. Felicidade, ele propôs, que estabelecesse um sábio equilíbrio entre apego e desapego, entre coragem e imprudência. Em suas tentativas de desenvolver uma ciência de akhlaq, ele previu Nasiruddin al Tusi (1201-1274) da Pérsia, quatrocentos anos antes.

Al Kindi foi uma ponte principal na transmissão do conhecimento grego e árabe para a Europa Ocidental. Em 1085, a cidade de Toledo, a antiga capital gótica no coração da Espanha, foi conquistada pelos cruzados. Os cristãos conquistadores estabeleceram uma escola de tradução onde os textos greco-árabes foram traduzidos para o latim. Entre os livros, assim traduzidos, havia um grande número escrito por al Kindi. Foram incluídos os manuscritos De Intellectu, Ilayiat e Aristu, al Mosiqa e Ikhtiyarat al Ayyam. Suas obras influenciaram Roger Bacon (1214-1294), no ocidente latino e Avicena (980-1037) e Averróis (1126-1198) no mundo islâmico.

Al-Kindi, os Muatazilitas e a Cristalização da Ortodoxia Islâmica

Al Kindi testemunhou a turbulência causada no mundo islâmico pela introdução da filosofia grega e sua rejeição final a favor da ciência empírica. Esta fase da história islâmica precisa ser esclarecida porque muitas vezes se afirma que a decadência da ciência na civilização islâmica aconteceu devido à rejeição do pensamento racional grego, o que não foi o caso. A ciência e a civilização prosperaram em terras muçulmanas bem após a rejeição do racionalismo grego. A civilização islâmica entrou em contato com o racionalismo grego, o achou apropriado e adotou o método indutivo inerente ao seu próprio gênio, ao contrário do método dedutivo dos gregos.

É interessante referir-se à Escola de pensamento Muatazilita, e seu contraponto, a Escola Ashari. À medida que os muçulmanos iam conquistando a Síria, o Egito e a África do Norte, eles iam então, se tornando guardiões, não apenas do povo desses países, como também de suas idéias. A maioria dessas terras estava sob o controle romano ou bizantino oriental, onde o pensamento grego era dominante. Historicamente, o termo “pensamento grego” é aplicado à sabedoria coletiva e ao pensamento clássico do povo do Mediterrâneo oriental, que inclui um amplo arco geográfico que se estende de Atenas, na Grécia, passando pela Anatólia, Síria, Egito e Líbia. A civilização grega exaltava a nobreza do homem e colocava a razão humana no ápice da criação. Platão, Aristóteles, Ptolomeu, Euclides e Arquimedes são alguns dos nomes domésticos da galáxia de pensadores produzidos por essa civilização. A realização duradoura do pensamento grego é que aperfeiçoou o processo racional e deixou seu legado duradouro para a humanidade.

Os primeiros muçulmanos não só adotaram a abordagem racional, mas partiram com entusiasmo para explicar suas próprias crenças em termos racionais. Perguntas relativas à natureza do homem, seu relacionamento com a criação, suas obrigações e responsabilidades, assim como a natureza dos atributos divinos foram abordados. Nenhum estudioso muçulmano embarcaria em um esforço intelectual, a menos que sua abordagem tenha uma base no Alcorão. Os racionalistas viram uma justificativa para a sua abordagem nos versos do Alcorão e na Sunnah do Profeta, por exemplo:

“Na criação dos céus e da terra; na alteração do dia e da noite; nos navios que singram o mar para o benefício do homem; na água que Deus envia do céu, com a qual vivifica a terra, depois de haver sido árida e onde disseminou toda a espécie animal; na mudança dos ventos; nas nuvens submetidas entre o céus e a terra, (nisso tudo) há sinais para os sensatos.” Al-Baqarah:164

De fato, o Alcorão convida a razão humana a testemunhar a majestade da criação, a refletir sobre o seu significado e a compreender a transcendência que o invade. As ciências filosóficas que evoluíram como resultado desse esforço são referidas como Kalam (discurso, geralmente um discurso religioso). Às vezes, Kalam é vagamente traduzido como teologia, mas a teologia como uma ciência nunca se popularizou nos estudos islâmicos, como ocorreu no cristianismo, porque os muçulmanos se esforçaram e conseguiram preservar a transcendência de Deus. O cristianismo adotou a posição de que Deus é cognoscível para o ser humano e, portanto, é acessível à percepção humana. Os muçulmanos, apesar dos desafios filosóficos dos gregos, conseguiram manter a posição de que Deus é somente reconhecido através seus nomes, atributos e pela majestade de Sua criação, enquanto Sua transcendência está escondida por Sua luz.

O primeiro estudioso islâmico que abordou as questões da crença islâmica sob uma perspectiva racional foi Al Juhani (699). Note-se que a abordagem racional coloca a razão humana no ápice da criação e torna o mundo conhecido. Al Juhani sustentou que homens e mulheres não só têm a capacidade de conhecer a criação por sua razão, mas também têm a capacidade de atuar como agentes livres. A crença é o resultado do conhecimento e da compreensão. De fato, a humanidade tem o imperativo moral de entender a criação de Deus. O homem, como um ser racional, é obrigado não só a entender o mundo, mas também a agir com ele usando seu livre arbítrio. Assim, os pontos de vista de Al Juhani conferiram à razão e à responsabilidade da humanidade. O céu e o inferno eram conseqüências da ação humana. Esta escola era conhecida como Escola Qadari (palavra-chave q-d-r, que significa poder ou vontade livre).

A abordagem Qadari quando levada a extremos retira Deus do contexto dos assuntos humanos, ao ponto de tornar o Paraíso e o Inferno conceitos mecanicistas predicados unicamente pela ação humana. Isso foi inaceitável para a mente muçulmana. A reação dos quarteis mais ortodoxos foi obrigada a surgir e isso aconteceu com o surgimento da Escola Qida (pré-destino). O fundador desta Escola foi Ibn Safwan (745). De acordo com Ibn Safwan, todo poder pertence a Deus, e o homem é pre-determinado em suas ações, boas ou ruins, bem como seu após essa vida. Como a Escola de Qadari, a Escola de Qida também buscou sua justificativa no Alcorão (“Eu mesmo não posso lograr, para mim, mais benefício nem mais prejuízo do que o que for da vontade de Deus.”, Qur’an, 7: 188).

As linhas de batalha agora foram traçadas. Assim como a civilização cristã em tempos anteriores, a civilização islâmica também estava apenas começando a enfrentar o racionalismo grego. Qual seria o resultado? As respostas não eram claras e estavam escondidas num futuro desconhecido. Tanto o Imam Ja’afar-as-Saadiq quanto o Imam Abu Hanifa estavam bem cientes dos argumentos de qida e qadar, mas permaneceram livres de suas controvérsias.

Wasil ibn Ata (700-749) reuniu, desenvolveu e articulou as Escolas de Qadari em uma filosofia coerente, que passou a ser conhecida como Escola Muatazilita. Podemos também considerar a Escola Mutazilita como a primeira resposta da civilização islâmica ao desafio do pensamento grego. Esta Escola permaneceu por quase duzentos anos, e muitas vezes foi a escola de pensamento dominante entre os muçulmanos. Sua influência foi comparável às Escolas do Imam Abu Hanifa, Imam Ja’afar como Saadiq ou Imam Malik. A escola Muatazilita foi desafiada por Imam Hanbal (780-855) e Hasan al Ashari (874-935) e, finalmente vencida por al Gazzali (1058-1111). Esta batalha de idéias teve um impacto profundo na história islâmica, influenciando o pensamento muçulmano até hoje.

A escola Muatazilita se focou na razão humana e na capacidade de compreender a relação do homem entre si e do homem com Deus. Necessariamente, eles basearam seus argumentos no Alcorão. Os princípios das Escolas Muatazilita foram:

  • A unicidade de Deus

Dize: Ele é Deus, o Único! Deus! O Absoluto! Jamais gerou ou foi gerado! E ninguém é comparável a Ele! Al Ikhlas

  • Livre-Arbítrio

Porém, se teu Senhor tivesse querido, aqueles que estão na terra teriam acreditado unanimemente. Poderias (ó Mohammad) compelir os humanos a que fossem fiéis? 10:99

  • Ação e Reação

Deus não impõe a nenhuma alma uma carga superior às suas forças. Beneficiar-se-á com o bem quem o tiver feito e sofrerá o mal quem o tiver cometido. 2:286

  • Incentivar o Bem e Reprimir o Mal

Sois a melhor nação que surgiu na humanidade, porque recomendais o bem, proibis o ilícito e credes em Deus. 3:110

Os Muatazilitas aplicavam esses princípios às questões da relação do homem com o homem, do homem com o mundo e do homem com Deus. Ao colocar o homem no centro da criação, eles o transformaram no arquiteto de sua própria fortuna e enfatizou sua moral para moldar o mundo sob o comando de Deus.

O califa Mamun adotou a Escola Muatazilita como o dogma oficial do Império. Do Califa Mansur ao Califa Al Mutawakkil (765-847), os Muatazilitas aproveitaram a proteção oficial e durante quase cem anos, eles guiaram o navio intelectual do Islã.

A destruição dos Muatazilitas se deu pelo zelo excessivo e pela incapacidade de compreender as limitações da metodologia que defendiam. Com uma sanção oficial, puniram os sábios que discordavam deles e tentavam silenciar toda oposição. Eles também ampliaram sua metodologia aos atributos de Deus e do Alcorão. No Islã, Deus é único e não há ninguém como a Ele. Portanto, os Muatazilitas argumentaram que o Alcorão não poderia ser parte dele e além dele. Para preservar a singularidade de Deus (Tawhid), colocaram o Alcorão em um segundo plano. A questão da “criação do Alcorão” causou uma grande divisão e confusão entre os muçulmanos. Além disso, a idéia de que a recompensa e punição fluíam mecanicamente da ação humana, deixava brechas para um ataque intelectual. Se os seres humanos são automaticamente recompensados ​​por suas boas ações, e automaticamente punidos por seu mal, então, onde está a necessidade da Graça Divina? Esta abordagem determinista era repugnante para os muçulmanos, e uma revolta foi inevitável.

O grande desafio dos muatazilitas veio dos eruditos usulis (exegetas da jurisprudência), sendo o mais conhecido entre Imam Ahmad Ibn Hanbal (780-855). Um grande erudito, ele aprendeu os princípios do fiqh de todas as escolas predominantes em sua geração, a saber, Hanafi, Maliki, Shafi’i e Ja’afariya, bem como as Escolas de Kalam (filosóficas). As idéias muatazilitas estavam causando uma grande confusão entre os povos. A estabilidade era necessária e a inovação tinha que ser combatida. O Imam Ahmad solicitou por uma adesão rigorosa ao Alcorão e à Sunnah do Profeta. Ele sustentou que o Alcorão era a Palavra de Deus e estava além do tempo e do espaço. Sua posição era um desafio direto para os muatazilitas que gozavam da proteção e auxílio oficial dos califas. Consequentemente, Ibn Hanbal foi punido e encarcerado durante a maior parte de sua vida. Sua oposição sustentada e determinada deu vida aqueles que lutaram contra os muatazilitas. Foi principalmente através dos esforços do Imam Ahmad que o califa Al Mutawakkil abandonou a escola muatazilita em 847. Por sua vez, quando os asharis obtiveram vantagem, os muatazilitas foram punidos, presos e silenciados. Um dos que foram punidos, estava al-Kindi, que perdeu a proteção oficial. Sua biblioteca foi confiscada e distribuída entre seus adversários. Esse é o destino das diferentes idéias que surgiam ocasionalmente no decorrer da história islâmica!

Fonte: https://historyofislam.com/contents/the-classical-period/al-kindi/

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