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O Imam Ja’far al-Sadiq

O Imâm Ja’far as-Sâdiq (700-765 d.C.) era um gigante dentre os sábios islâmicos. Era o shaikh dos shaikhs grandiosos, o professor do Imâm Abu Hanîfa, Imâm Mâlik, Abu Yazâd al-Bistâmi e Wasim ibn Atta. Sua erudição englobava tanto o esotérico como o exotérico, ‘ilm al-ishâra assim como ‘ilm al-ibâra, as ciências do kalâm assim como as ciências do hadîth, sunna, as ciências naturais e as ciências históricas. Ele era al-hakîm, um integrador, um verdadeiro homem de sabedoria no sentido alcorânico, um ‘âlim completo que entendia que a Sharî’a se aplicava não somente ao mundo do homem mas também à natureza. Ele aplicava seu conhecimento incisivo para criar padrões divinos no mundo do homem através do fiqh mas ele também via esses padrões na natureza e na história e ele os ensinava a seus estudantes. Ele foi o herdeiro de dois segredos, um de Abu Bakr as-Siddîq (r), o outro de ‘Ali ibn Abi Tâlib (r). Foi um erudito perspicaz que trabalhou para conectar a vão entre os xiitas e os sunitas e entre o Islã e outros sistemas de fé. Não é de se admirar que tanto xiitas quanto sunitas, sufis e salafistas, tradicionalistas e modernistas, todos reivindicam que ele é um dos seus.

Ele viveu em tempos emocionantes. Era a era da fé. Era a era da razão. Era a era da consolidação intelectual. Era também a era da expansão imperial e sublevações políticas. Era a era quando a civilização islâmica veio a ser por si mesma. A semente plantada pelo Profeta Muhammad (s.a.w.s.) brotou, foi cuidada durante esse tempo por homens e mulheres de visão extraordinária e certeza de fé. A forma dessa árvore e o gosto de seu fruto foi principalmente um legado do que esses grandes homens e mulheres fizeram e não fizeram.

Tal como uma árvore tem muitos ramos, a comunidade islâmica global tem muitos ramos, cada um com sua própria beleza e com suas características únicas: xiitas, sunitas, sufis, salafistas, modernistas, tradicionalistas, os esotéricos e os exotéricos, os árabes, os persas, os turcos, os africanos, os paquistaneses, os indianos, os europeus, os indonésios e os chineses. Todos esses ramos cresceram do mesmo tronco. O fato de que eles são diferentes se soma à beleza total da árvore e seu atrativo global.

Poucos sábios através dos séculos conectaram as diferenças entre os xiitas e sunitas, sufis e salafistas, modernistas e tradicionalistas e mais escassos ainda foram os que se alçaram tão alto em sua erudição que são reivindicados, com validade igual pelos xiitas e pelos sunitas, pelos sufis e pelos salafistas, pelos modernistas e pelos tradicionalistas. Imâm Ja’far as-Sâdiq foi um sábio desse tipo. Os xiitas — duodecimanos, ismailitas, alauítas e Agha Khanis de modo idêntico — o consideram ser o sexto Imâm. Os sunitas o consideram ter sido o professor de grandes mujtahidîn, Imâm Abu Hanîfa e Imâm Mâlik bin Anas. Os sufis de todas as tarîqas o situam na corrente de transmissão de conhecimento espiritual do Profeta, os salafistas aceitam os ahâdîth transmitidos através dele, os modernistas o consideram ser o professor de alguns dos cientistas empíricos e racionais mais conhecidos do tempo, e os tradicionalistas seguem sua guia em assuntos de fé e ritual. Enquanto a Sunna do Profeta é como o tronco da árvore que é o mundo do Islã, o Imâm Ja’far foi um de seus ramos principais.

Outro modo ainda de olhar para o Imâm Ja’far é o considerar com o amálgama de Abu Bakr as-Siddîq (r) e ‘Ali Ibn Abi Tâlib (r). Você se recorda de que no momento da morte do Profeta Muhammad (s.a.w.s.) muitos Companheiros consideraram que Abu Bakr (r) representava o consenso da comunidade, enquanto outros sentiram que ‘Ali (r) era o herdeiro da sabedoria profética e aquele a ser seguido. A comunidade islâmica se dividiu nesses parâmetros. O Imâm Ja’far ligou essas duas correntes através de relações familiares assim como pela erudição. Nele o esotérico e o exotérico, o consenso da comunidade e a sabedoria profética se fundiram. Poucos sábios tiveram esse privilégio.

Por último, o Imâm Ja’far era um mestre tanto de ‘Ilm al-Ibâra quanto de ‘Ilm al-Ishâra. Sábios islâmicos clássicos dividiram o conhecimento em duas categorias amplas, nomeadamente aquela que era acessível à mente e aquela que é acessível somente com o coração. Na primeira categoria entra a razão, lógica, matemática, ciência, sociologia, hadîth e as obrigações e rituais da religião. Esse conhecimento pode ser ensinado e pode ser aprendido de um ‘Âlim. É chamado de ‘Ilm al-Ibâra, da raiz árabe Alif-Ba’-Ra’ (a-ba-ra) que significa atravessar, como atravessar de uma costa do rio para a outra. Esse é o conhecimento transmitido a um aluno numa escola ou universidade. O conhecimento do coração, por outro lado, não é acessível à mente mas somente ao coração. Nessa categoria entra o amor, compaixão, humildade, piedade, ética e consciência da presença divina. Esse conhecimento não pode ser ensinado. Mas um grande shaikh pode ajudar um aluno a purificar seu coração e abri-lo para as possibilidades ilimitadas de ‘Ilm al-Ishâra. Ás vezes essas duas correntes de conhecimento são referidas como ‘Ilm adh-Dhâhir (conhecimento que é acessível à percepção) e ‘Ilm al-Ghaib (conhecimento que está além da percepção). Essa terminologia é consistente com a terminologia alcorânica. Entretanto, uma discussão de ‘Ilm al-Ghaib está além do escopo desse texto. Basta apontar aqui que o Imâm as-Sâdiq herdou e teve transmitido ‘Ilm al-Ishâra de seu pai e avô, enquanto aprendia ‘Ilm al-Ibâra dos grandes ‘ulamâ’ da época.

Deixe-me ilustrar a diferença entre ‘Ilm al-Ibâra e ‘Ilm al-Ishâra através duma parábola que é contada para estudantes avançados de fiqh e tasawwuf. É dito que o Profeta deu uma de suas túnicas a Hadrath ‘Omar (r) e Hadrath ‘Ali (r) e lhes instruiu a levá-la para Hadrath al-Uwaisi (r). Mas Hadrath al-Uwaisi, um dos grandes dos Companheiros, nunca encontrou o Profeta ou o viu pessoalmente. Então Hadrath ‘Omar e Hadrath ‘Ali foram em busca desse grande Companheiro que recebeu a honra duma túnica profética. Foram de cidade em cidade, vila em vila, aldeia em aldeia, questionando sobre al-Uwaisi. Finalmente chegaram a um povoado pequeno em volta dum poço no deserto. Quando foram perguntados, as pessoas disseram a Hadrath ‘Omar e Hadrath ‘Ali: “Está vendo aquele homem no poço com as costas voltadas para nós. Aquele é al-Uwaisi. Está sempre recitando ‘lâ ilâha illAllah, Muhammad rasûlAllah’, e a cada vez que recita isso, ele chora.” Quando os dois se aproximaram do poço, Hadrath al-Uwaisi, sem virar sua cabeça, disse alto: “Ó ‘Omar! Ó ‘Ali! Vocês me trouxeram a túnica do Profeta?” Os dois reponderam: “Sim, de fato, trouxemos”. Hadrath al-Uwaisi pegou a túnica, beijou-a, po-la sobre sua cabeça e olhos e chorou amargamente por amor ao Profeta. Quanto voltou a si, se virou para ‘Omar (r) e perguntou: “Ó ‘Omar! Você já viu o Profeta?” O Poderoso ‘Omar (r) ficou aterrado com a questão. “Como al-Uwaisi vem me perguntar tal coisa quando conheço o Profeta minha vida toda?” “Sim, de fato, já vi” respondeu o grande ‘Omar ibn al-Khattâb (r), e procedeu descrevendo os nobres atributos físicos do Profeta. Quando terminou, al-Uwaisi se virou para ‘Ali ibn Abi Tâlib (r) e perguntou: “Ó ‘Ali! Você já viu o Profeta?” ‘Ali (r) respondeu: “Vi o Profeta uma vez só, e vi só uma porção de seu peito ilimitado. O que está além não me foi mostrado.”

Ja’far ibn Muhammad as-Sâdiq nasceu no ano 700 d.C.. Seu pai, o Imâm Muhammad al-Baqîr foi o filho do Imâm Zain al-‘Abidîn e neto do Imâm Husain ibn ‘Ali. O ano era o 83º da Hégira ou 20 anos depois da tragédia de Karbalâ’. Temos destacado especificamente a cronologia de Karbalâ’, porque ela define, como veremos, muitas das convulsões que aconteceram durante a vida do Imâm Ja’far. Sua mãe, Umm Farwa bint Qâsim ibn Muhammad ibn Abi Bakr foi uma tataraneta de Asma Bint Umais que foi casada com Abu Bakr as-Siddîq. Assim, através dos relacionamentos familiares o Imâm Ja’far é parente tanto de Abu Bakr (r) quanto de ‘Ali (r) e através do Imâm Husain e Fâtima az-Zahrâ (r) ao Profeta Muhammad (s.a.w.s.).

Imâm Ja’far foi educado primeiramente por seu pai Imâm al-Baqîr e seu avô materno al-Qâsim. O fluxo de conhecimento, ambos esotérico e exotérico através do Imâm al-Baqîr leva a uma corrente ininterrupta ao Imâm Zain al-‘Abidîn, Imâm Husain, Fâtima az-Zahrâ, ‘Ali Ibn Abi Tâlib (r) e ao Profeta. O fluxo de conhecimento do seu lado materno leva a uma corrente ininterrupta a Abu Bakr (r) e ao Profeta. Assim é que no Imâm Ja’far os fluxos esotérico e exotérico emanando de Abu Bakr (r) e ‘Ali Ibn Abi Tâlib (r) se encontram. ‘Ali (r) era referido pelo Profeta como “a porta para meu conhecimento”. Abu Bakr (r) recebeu sua imersão no conhecimento profético na caverna durante a Hégira do Profeta de Meca para Medina. Esse evento sublime foi aludido no Alcorão: “Quando estava na caverna com um companheiro, ele disse: Não te aflijas, porque Allah está conosco.” (9: 40). A confluência dos córregos de conhecimento esotérico de Abu Bakr as-Siddîq e ‘Ali Ibn Abi Tâlib tem significados profundos na liturgia sufi e está além do escopo deste breve texto.

Além desse treinamento de seu pai e avô, o Imâm Ja’far recebeu educação formal no Alcorão e hadîth de eminentes ‘ulamâ’ da época. Ele era também bem versado em matemática, filosofia, astronomia, anatomia, alquimia e as ciências naturais.

Foi um período de rápida expansão do Imério Omíada. O Imâm Ja’far tinha somente onze anos quando Târiq ibn Ziyâd e Mûsa ibn Nusair atravessaram o Estreito de Gibraltar (711-712 d.C.) e numa campanha se extendendo por mais de sete anos, conquistaram a Espanha e Portugal. No extremo oriental do império, Muhammad bin Qâsim Al-Thaqafi subjugou Sind e Multan (711-714) no Paquistão de hoje. O Imâm Ja’far tinha dezessete quando ‘Omar bin ‘Abdel Azîz se tornou califa em Bagdá. Foi durante o reino do piedoso califa e sua administração limpa e justa quanto a todos os assuntos que a conversão na Pérsia e1 no Egito aconteceu. E o Imâm Ja’far tinha trinta e três (733 d.C.) quando as forças omíadas sob ‘Abd Ar-Rahmân I foram paradas na Batalha de Tours na França e recuaram para Sorbonne, assim marcando o maior alcance das conquistas islâmicas na Europa.

Até mesmo o Império Omíada expandindo para incluir toda a Ásia Ocidental, oeste da Índia, Ásia Central, África do Norte e Espanha, estava fervendo com descontamento de dentro. A memória de Karbalâ’ estava fresca nas mentes tanto dos omíadas quanto dos xiitas. O governo omíada foi duro com os xiitas e os olhava com suspeita. Havia muitas revoltas mas duas delas têm importância de serem mencionadas. No ano 740 d.C., quando o Imâm Ja’far tinha quarenta anos, Zaid bin Zain al-‘Abdidîn liderou uma revolta contra o califa omíada al-Hishâm (morto em 744 a.C.). A alegação de que Banu Hâshim e Ahl al-Bait eram os herdeiros legítimos à liderança da umma não desapareceu com o assassinato de ‘Ali (r), a abdicação de Hasan (r) ou o martírio de Husain (r). Só foi deixado em segundo plano. Depois da morte do Imâm Zain al-‘Abidîn (712 d.C.), seu segundo filho Zaid bin ‘Ali, considerando ser seu dever se opor à tirania omíada, invocou o exemplo de Karbalâ’ e liderou um insurreição armada contra os omíadas. Ele contou com a lealdade dos cufitas no empreitada. Entretanto, os cufitas, fiel a sua perfídia histórica, primeiro prometeram seu apoio e então se retiraram da briga, tal como fizeram com o Imâm Husain na Batalha de Karbalâ’. Zaid bin ‘Ali morreu na batalha.

Houve outra revolta, liderada pelos abássidas que teve um impacto profundo e duradouro na história islâmica. Não satisfeito com a abordagem espiritual usada pelo Imâm Zain al-‘Abidîn depois de Karbalâ’, alguns apoiadores dos Bani Hâshim procuraram em outro lugar por liderança. Encontram em Muhammad bin Hanafiyya um líder, um filho de ‘Ali ibn Abi Tâlib (r) de um de seus casamentos depois da morte de Fâtima az-Zahrâ’ (r). Esse é o começo do ramo não fatímida dos alauítas. Depois de Muhammad bin Hanafiyya, seu filho Abu Sulaimân ‘Abdullah se tornou o Imâm mas foi envenenado pelo califa omíada Sulaimân. Enquanto jazia morrendo, ‘Abdullah procurou em volta alguém de sua família para passar o imamato. Como ninguém de sua família imediata estava disponível, ele encontrou um haxemita, Muhammad bin ‘Ali ‘Abbâs, de uma cidadela próxima. Muhammad bin ‘Ali ‘Abbâs era um neto de ‘Abbâs, tio do Profeta. Então, através de uma reviravolta de circunstâncias históricas, um ramo do imamato passou dos filhos de ‘Ali ibn Abi Tâlib para os filhos de ‘Abbâs. Esse ramo é referido como os abássidas. Foram os abássidas que estabeleceram seu califado no ano 750 d.C. e governaram o vasto Império Islâmico de Bagdá por mais de quinhentos anos até os mongóis destruírem Bagdá em 1258 d.C.

Imâm Ja’far as-Sâdiq se manteve acima das convulsões políticas da época, focando-se então em ensinar e treinar a comunidade. A esse respeito ele pressagia os grandes shaikhs sufis que vieram para adornar a tela da história islâmica em séculos mais tarde, a maioria dos quais, com algumas exceções notáveis como o Shaikh Sanusi da Líbia (morto em 1860), Shaikh Shamail do Daguestão (morto em 1871) e Shaikh ‘Abd al-Qâdir da Argélia (morto em 1883), evitaram política e envolvimento político, enfatizando então o bem estar espiritual e ético do homem. Essa perspectiva foi de benefício imenso à civilização islâmica. Imâm Ja’far evitou a perseguição cruel que aguardava o governo omíada focando-se então em erudição e ensino. Havia sabedoria nessa estratégia. A história deve uma dívida de gratidão ao Imâm as-Sâdiq por sua dedicação ao conhecimento e ensino que produziu grandes luminares nos campos da jurisprudência, tasawwuf, ciência e matemática.

O Imâm Ja’far é conhecido na história como um dos grandes sábios e professores islâmicos. O método de ensino naqueles dias era numa halaqa ou semicírculo onde um shaikh transmitia conhecimento a aqueles que iam a suas halaqas. Foi o tempo em que a transmissão de conhecimento era através dum discurso entre um professor e seu aluno ou um sábio sufi e seu murîd. Tais halaqas aconteciam na casa do shaikh ou numa mesquita. o Imâm Ja’far inicialmente ensinou na halaqa iniciada por seu pai o Imâm Baqîr. Como a prensença cresceu as halaqas passaram a acontecer na mesquita do Profeta em Medina. Tão grande era sua radiância que ele atraiu imediatamente um grande número de estudantes. Muitos desses estudantes eram eles mesmos shaikhs doutos e bem conhecidos, muito mais velhos que o Imâm Ja’far e em alguns campos mais doutos que ele. Tal era a humildade dos sábios naqueles dias. Eles não consideravam abaixo de sua dignidade aprender de um homem mais jovem com mais conhecimento que eles. Entre aqueles que frequentavam suas halaqas nos primeiros anos estava o Imâm Abu Hanîfa que disse com referência a sua associação com o Imâm Ja’far as-Sâdiq: “Se não fosse pelos dois anos que passei na companhia de Ja’far as-Sâdiq, estaria eu vagando”. Ele se referiu ao Imâm Ja’far como “o sábio mais douto que eu já vi”. A referência aqui é quanto à transmissão de conhecimento espiritual. A Sharî’a tem tanto um aspecto externo quanto um aspecto interno. O aspecto interno da Sharî’a é a âncora a qual o aspecto externo é amarrado. O Imâm Abu Hanîfa é conhecido como o Imâm al-‘Azam (O Grandioso Imâm) no campo de jurisprudência. Como reconhecido pelo Imâm Abu Hanîfa, os alicerces espirituais da escola hanafi de jurisprudência deve muito ao conhecimento espiritual transmitido pelo Imâm Ja’far as-Sâdiq e através duma corrente de transmissão ininterrupta e sua linhagem à espiritualidade de ‘Ali Ibn Abi Tâlib (r), Abu Bakr as-Siddîq (r) e (para aqueles que desejam se imergir nesse oceano profundo) a Nûr al-Muhammadiyya, a Luz de Muhammad (s.a.w.s.).

Outro grande sábio que frequentava a halaqa do Imâm Ja’far era o Imâm Mâlik ibn Anas, pelo qual a escola mâliki é nomeada. A maioria dos estudantes de jurisprudência islâmica não percebem que muito do fiqh mâliki é baseado nas regras dadas por ‘Ali ibn Abi Tâlib (r) durante o califado de ‘Omar ibn al Khattâb (r). O Imâm Mâlik (711-795 d.C.) de Medina era mais novo que o Imâm Ja’far as-Sadiq (700-765 d.C.) e o Imãm Abu Hanîfa (699-767 d.C.). O Imâm Mâlik disse sobre o Imâm Ja’far: “Eu era seu visitante regular por um período de tempo, e nunca o vi uma vez sequer sem estar rezando, jejuando ou recitando o Alcorão.” Na geração seguinte a do Imâm Abu Hanîfa e Imâm Mâlik, Imâm Shâfi’i (morto em 820) de Damasco estudou os ensinamentos do Imâm Abu Hanîfa e Imâm Mâlik e desenvolveu a escola de fiqh shâfi’i. O fiqh hanbali que surgiu como um movimento de protesto contra os mu’tazilitas usou as escolas de fiqh mais antigas como sua base. Então as maiores escolas de fiqh (hanafi, mâliki, shâfi’i, hanbali e ja’fari) devem gratidão ao conhecimento transmitido pelo Imâm Ja’far as-Sâdiq.

A Sharî’a tem tanto uma dimensão interna quanto uma dimensão externa. Tem manfestações exteriores assim como um gosto interno. Se a escolas de fiqh majoritárias refletem tanto as dimensões interna quanto externa da Sharî’a, é devido em medida não pequena às intuições oferecidas pelo Imâm Ja’far as-Sâdiq.

O Imâm Ja’far não foi somente um sábio de kalâm, Sunna e hadîth. Também foi um historiador e mestre de química, astronomia, matemática e ciências naturais. Um de seus estudantes, Jâbir ibn Hayyân, prosseguiu em distingui-lo como o maior químico e matemático de seu tempo. A compreensibilidade e ar de erudição exibido pelo Imâm Ja’far é consistente com as injunções alcorânicas para estudo não só das ciências da alma mas também das ciências da natureza e da história porque em todas as três há sinais dos padrões divinos. O Alcorão diz: “De pronto lhes mostraremos os Nossos sinais em todas as regiões (da terra), assim como em suas próprias pessoas, até que lhes seja esclarecido que ele (o Alcorão) é a verdade. ” (41: 53). “Em todas as regiões (da terra)” quer dizer o mundo externo (dhâhiri) do homem (história e sociologia) e o mundo da natureza (as ciências naturais). Foi somente depois do século XVII que o estudo do Alcorão e da Sunna foi separado do estudo da história e ciências naturais nas academias islâmicas com consequências desastrosas para a civilização islâmica.

O Imâm Ja’far viveu num período de turbulência intelectual. O rápido avanço das forças omíadas na Índia, Espanha e Ásia Central trouxe para o meio do Islã cristãos, zoroastristas, coptas, budistas, hindus e nestorianos. Essas chegadas trouxeram com elas seus prórpios modos de olhar para o transcendente e seus próprios sistemas de aprendizado antigo. Sábios muçulmanos, no seu zelo para entender e transformar os padrões divinos na terra, se moveram com entusiasmo e vigor para aprender as ciências da Grécia, Egito, Pérsia, Índia e China. O califa al-Mansûr foi um grande patrono do aprendizado. Ele mandou delegações para Constantinopla, com presentes generosos, para trazerem com eles de volta os trabalhos gregos de Aristóteles, Platão, Ptolomeu e Galeno. Da Índia veio o Siddhanta de Aryabhatta, um trabalho sânscrito clássico de astronomia e matemática criado durante o reino da dinastia Gupta no norte da Índia (319-550 d.C.). Como o reservatório de conhecimento aumentou, assim também aumentou a curiosidade das pessoas e elas procuravam respostas para questões básicas de religião à luz do novo conhecimento adquirido de terras distantes. O desenvolvimento do fiqh foi a resposta da civilização islâmica a essa erupção intelectual. Proveu estabilidade ao panorama intelectual e guiou a comunidade islâmica através da turbulência das ideias competitivas e algumas vezes contraditórias. O Imâm Ja’far foi um dos gigantes intelectuais que guiaram o navio do Islã através da turbulência dessas tempestades ideológicas.

O Imâm Ja’far ensinou tanto as ciências naturais como as históricas. Seus ensinamentos revelam que ele sabia sobre a rotação da Terra em volta do Sol, a existência de elementos além dos quatro (terra, ar, água e fogo) aceitos pelos gregos. Também produziu discursos sobre a natureza da luz e calor que são consistentes com o nosso entendimento moderno desses assuntos. Um de seus estudantes foi o famoso químico e matemático Jâbir ibn Hayyân. Wasil ibn Ata (morto em 748 d.C.) que é geralmente creditado por ter fundado a escola mu’talizita (racional) de filosofia também estudou na halaqa do Imâm Ja’far.

A questão que às vezes se faz é como é possível para uma pessoa ter conhecimento das ciências naturais e matemáticas que ela não aprendeu de outros professores. o Imâm Ja’far as-Sâdiq e seu pai o Imâm al-Baqîr conheciam essas matérias antes de que os livros dos gregos e dos indianos fossem traduzidos ao árabe. A questão é profunda e requer uma resposta séria. A dificuldade em responder a questão surge da alegação da ciência moderna que o empírico e o racional são os únicos dois métodos de adquirir conhecimento. Não admite a aquisição de conhecimento por meios suprarracionais ou transcendentes. Tenho lidado com essa questão em outros ensaios nessa Enciclopédia em grandes detalhes. Um resumo segue aqui.

O conhecimento é adquirido por pelo menos quatro métodos: empírico, racional, intuição e infusão. O empírico é a linguagem da observação e experimentação. É a linguagem dos sentidos e é a base da ciência moderna. O racional é o conhecimento extensivo e é a linguagem da matemática. O racional é um servo do empírico. Intuição é o conhecimento que é conhecido pelo homem mas do qual ele se esqueceu. É concedido pela graça divina para aqueles que o buscam. Infusão é a linguagem das escrituras e é dada somente aos profetas.

A civilização humana é construída sobre todos esses quatro modos de aprendizado. O homem moderno aceita o empírico e o racional, nega a linguagem da infusão (revelação) e fica confuso sobre a inspiração ao menos que ela seja sujeita à validação empírica.

Muito na experiência humana não pode ser medido. Como medimos o amor? Como você atribuiria o valor em dólares dos sacrifícios dos pais por criar seus filhos? Se você pensa que essas são questões esotéricas, considere o seguinte: quando eu era o Cientista Diretor no Telescópio Espacial Hubble durante o período 1979-1982, me pediram para projetar estruturas de compostos avançados que tenham uma expansão térmica de menos de um milésimo do comprimento de uma onda de luz. Aqueles habilidosos nesse campo vão reconhecer imediatamente que não há instrumentos científicos conhecidos que possam medir a precisão dimensional de estruturas a esse nível. Tive que inventar e conceber um método aceitável com precisão suficiente para essa aplicação. Mas e se os requisitos fossem mais rigorosos que os ditos acima? A tarefa seria impossível com nosso estado presente de tecnologia. Uma das tarefas mais desafiadoras na investigação científica é o projeto de um experimento confiável. Há muito que simplesmente não pode ser medido. Há muito que a pessoa moderna descrente aceita na base da fé mesmo se não for medido. Por exemplo, o que existia antes do Big Bang? E mesmo quando um sábio, um erudito religioso ou um grande homem de intuição toma uma posição na ciência natural, riem deles.

Essa tem sido a dificuldade enfrentada pelos sábios através das eras. As pessoas riem deles porque simplesmente não conseguem entender a sabedoria dos sábios. Isso aconteceu mais ainda com os profetas. O povo de Noé riu dele quando ele estava construindo a arca. O Faraó queria que seu chefe construísse uma estrutura alta para que ele pudesse “olhar” para o Deus de Moisés!

Muito da linguagem da intuição é ‘Ilm al-Ishâra. Pode ser sentida, aludida mas não ser ensinada. Algo é acessível à razão, algo não o é. O Imâm Ja’far as-Sâdiq foi um sábio. Através de seu treinamento, sua linhagem, sua piedade, seu caráter distinto e seu coração puro refletindo a graça divina, sua intuição era mais ampla que a da maioria das pessoas. Se ele predizia o movimento da Terra em volta do Sol, não era porque ele aprendeu isso necessariamente dos egípcios ou dos gregos mas porque esse conhecimento, a Verdade, está dentro do coração, só para ser descoberta por aqueles que a buscam. É um dom divino, dado para aqueles que Lhe apraz.

Resumidamente, todo ser humano nasceu com um reservatório infinito de conhecimento. Mas o homem se esquece e o conhecimento fica submergido no subconsciente. Torna-se aparente e acessível à percepção através do esforço consciente, treinamento, dedicação. A graça divina favorece aqueles que se esforçam e lhes recompensa com a percepção daquilo que outrora não era percebido. Isso é intuição. Um cientista tem intuição científica através de seu trabalho duro. Um sábio a adquire através de seu coração que é iluminado pela graça divina.

Reforçamos nossa observação apontando que um comitê de pesquisa consistido de cientistas famosos da França, Alemanha, Itália, EUA, Irã, Líbano e Inglaterra examinaram os ensinamentos científicos do Imâm Ja’far as-Sâdiq e procuraram por suas fontes. Foi chamado de Comitê de Pesquisa de Strasbourg. Confirmaram as bases científicas do Imâm Ja’far mas ficaram aturdidos quanto às fontes. Os membros do comitê, cientistas como são nas ciências modernas empíricas e racionais não conseguiam aceitar que há outros modos de aprendizagem acessíveis ao homem pela graça divina, nomeadamente através da inspiração (intuição) ou revelação.

A erudição e sabedoria do Imâm Ja’far não ficou sem seus detratores. O califa al-Mansûr, que governou de Kufa e Bagdá naquele tempo, era um monarca perspicaz e racional aberto para ideias novas do cantos longínquos da terra. Mas havia outro aspecto menos compassivo no seu governo. De fato, ele era de várias maneiras um tirano. Suspeito que era dos centros de poder rivais, era intolerante a qualquer sinal de dissidência. Alarmado pela popularidade do Imâm as-Sâdiq, al-Mansûr queria descreditá-lo mostrando que seu conhecimento era limitado. Ele mandou o Imâm Abu Hanîfa formular quarenta questões controversas relacionadas a fiqh que deveriam ser respondidas pelo Imâm Ja’far as-Sâdiq. O Imâm Abu Hanîfa sabia que recusar seguir as instruções do califa resultaria em flagelação pública ou pior. Confiante que o Imâm Ja’far as-Sâdiq era mais do que páreo para quaisquer questões postas a ele, o Imâm Abu Hanîfa formulou as questões. Os dois imâms foram convocados à presença do califa al-Mansûr e as questões foram postas ao Imâm Ja’far as-Sâdiq. O Imâm Ja’far não só respondeu cada questão, mas também fez uma análise comparativa das opiniões legais da escola de Kufa (que mais tarde veio a ser o fiqh hanafi) e a escola medinense (que evoluiu para o fiqh mâliki), assim como sua própria opinião (documentado anos mais tarde como o fiqh ja’fari). Satisfeito, o califa mandou os dois Imâms para casa sem molestá-los.

O caráter do Imâm Ja’far era exemplar. Ele era piedoso, sempre engajado na lembrança de Deus. Enfatizava a necessidade da ética, moralidade e justiça nos assuntos humanos. Sufyân Ath-Thauri relata alguns dos ditos do Imâm: “Um mentiroso é carente de honra; uma pessoa invejosa não consegue ter conforto; uma pessoa mal-educada não obtém respeito. Ponha sua confiança em Deus para ser um crente verdadeiro; e fique contente com o que Deus deu para você e você será rico. Seja gentil com seu vizinho para ser um muçulmano verdadeiro; e não busque companhia de pessoas que transgridem os limites definidos por Deus, porque ele ensinarão para você as maneiras deles. Em todos os assuntos, consulte somente aqueles que são tementes de Deus.”

O Imâm Ja’far ensinou a reconciliação e irmandade entre as divisões interreligiosas e sectárias. Sobre os sunitas ele disse: “Reze com suas tribos, participe de seus funerais, visite seus doentes e dê-lhes o que é devido a eles”. Shaikh Hishâm relata a seguinte invocação do Imâm Ja’far sobre Abu Bakr as-Siddîq (r) e ‘Omar ibn al-Khattâb (r): “Ó Deus, és minha testemunha de que amo Abu Bakr e amo ‘Omar e se o que estou dizendo não é verdade que Deus me corte fora da intercessão de Muhammad (s.a.w.s.).” Quão diferente é a abordagem dos grandes Imâms da abordagem paroquial dos muçulmanos de hoje que estão uns nas gargantas dos outros, impregnados que estão na ignorância e preconceito acumulado através dos séculos de narrativas históricas autosservientes!

Fonte: https://historyofislam.com/imam-ja%E2%80%99afar-as-sadiq/

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