O conceito de estupro dentro casamento é um problema novo que confronta os muçulmanos nos tempos modernos. O termo “estupro” (ightisab) na literatura jurídica clássica era aplicado apenas para as relações sexuais forçadas, fora do contrato de casamento. O estupro nesse sentido, sempre foi tomado como crime e processado na categoria legal de adultério, com base na prática do Profeta ﷺ e em um firme consenso legal.
O termo original ightisab, significa linguisticamente tomar algo com força, sem ter em primeiro lugar, direito a isso. Uma vez que o homem tem o direito de ter relações sexuais com sua esposa, como concedido pelo contrato de casamento, ele não está tomando algo pelo qual ele inerentemente não tem direito. O consentimento era uma exigência moral, mas não tinha ramificações legais. Portanto, a decisão do adultério não se aplica ao marido neste caso.
No entanto, o significado de “estupro” mudou com os tempos, como agora significa qualquer relação sexual forçada, mesmo dentro do casamento. A razão para essa mudança é que as tradições jurídicas ocidentais mudaram a base das relações sexuais legais do contrato para o consentimento. O contrato de casamento originalmente tornou legal as relações sexuais, mas agora é o consentimento que legaliza as relações sexuais. Isso deu origem ao conceito de violação conjugal e influenciou o discurso jurídico nos países muçulmanos.
O conceito de estupro marital como uma categoria legal não apareceu em nenhuma tradição de lei até o ano de 1949, o que torna difícil localizar um precedente na lei pré-moderna. A lei islâmica se desenvolveu através da prática de emitir uma fatwa (julgamento legal) aplicado a um caso particular. Se tal caso nunca surgisse, não haveria sentido em emitir um julgamento sobre isso. Dessa forma, a lei islâmica era principalmente um exercício prático e não teórico. Isso significa que os juristas muçulmanos não discutiram o estupro conjugal como tal até o período moderno.
No entanto, a relação sexual forçada dentro do casamento cai sob outra categoria legal proibida na lei islâmica: prejudicar a esposa. Os estudiosos clássicos defenderam o direito fundamental à esposa de estar livre de danos. Se um homem força a esposa a ter relações sexuais contra a vontade dela, ele só pode fazê-lo machucando-a e isso torna sua ação ilegal. O estupro marital, então, é mais apropriadamente entendido como uma questão de violência doméstica, uma questão que era bem conhecida dos juristas muçulmanos desde a época do Profeta, ﷺ, até hoje e para a qual temos amplo precedente.
O princípio de remover danos é um axioma (ou seja, uma sentença ou proposição considerada como óbvia) legal essencial (al-qawa’id al-fiqhiyya) nas escolas ortodoxas da lei islâmica, pois forma a base e a razão de tantas outras regras no Islam.
Ubaida ibn As-Samit relatou: O Mensageiro de Allah,ﷺ, emitiu um decreto:
لاَ ضَرَرَ وَلاَ ضِرَارَ
Não cause danos nem devolva danos.
Fonte: Sunan ibn Majah 2340
E o princípio jurídico é o seguinte:
ال رَر يُزَال
O dano deve ser removido.
Fonte: Al-ashbah wa-al-nazaʼir – 7
Os estudiosos clássicos, frequentemente afirmam isso como um direito explícito da esposa, quando discutem os direitos e deveres do casamento em geral.
Al Qurtubi escreveu:
إِنَّ لَهُنَّ عَلَى أَزْوَاجِهِنَّ تَرْكُ مُضَارَّتِهِنَّ كَمَا كَانَ ذَلِكَ عَلَيْهِنَّ لِأَزْوَاجِهِنَّ
Seus maridos não devem prejudicá-las, da mesma forma que eles têm direitos sobre suas esposas.
Fonte: Al-Jami’ li-ahkam al-Quran – 2:228
E Zamakhshari escreveu:
وَلَا يُعَنِّفُ أَحَدُ الزَّوْجَيْنِ صَاحِبَهُ
Nenhum dos cônjuges deve ser violento contra o seu companheiro.
Fonte: Al Kashshaf ʻan haqaʼiq – 2:228
E Al Baydawi escreveu:
وَحُقُوقَهُنَّ الْمَهْرُ وَالْكَفَافُ وَتَرْكُ الضِّرَارِ وَنَحْوُهَا
Entre seus direitos está o dote, estar livre de danos e assim por diante.
Fonte: Anwar al Tanzil – 2:228
E Razi escreveu:
لَا إِيصَالَ الضَّرَرِ إِلَيْهَا بَيَّنَ أَنَّ لِكُلِّ وَاحِدٍ مِنَ الزَّوْجَيْنِ حَقًّا عَلَى الْآخَرِ
Nenhum dano deve vir a ela. Foi esclarecido que cada um dos cônjuges tem direito sobre o outro.
Fonte: Mafatih al Ghayb – 2:228
Podemos usar esses princípios gerais no Islam para desenvolver novas regras aos novos problemas que encontramos, como o estupro conjugal. Este é o método pelo qual a lei islâmica se desenvolve e se adapta às necessidades locais, mesmo se nenhum precedente puder ser encontrado. Ainda assim, não estamos sem orientação específica do Profeta ﷺ. Em uma tradição autêntica, o Profeta, ﷺ, discute o caso de uma esposa que se recusa a ter relações sexuais com o marido e da qual podemos obter algum entendimento:
Abu Huraira رضي الله عنه relatou: O Mensageiro de Allah, ﷺ , disse:
إِذَا دَعَا الرَّجُلُ امْرَأَتَهُ إِلَى فِرَاشِهِ فَأَبَتْ فَبَاتَ غَضْبَانَ عَلَيْهَا لَعَنَتْهَا الْمَلَائِكَةُ حَتَّى تُصْبِحَ
Se um homem chama sua esposa para a cama e ela se recusa sem motivo e ele passa a noite com raiva dela, então os anjos vão amaldiçoá-la até a manhã seguinte.
Fonte: Sahih Bukhari – 3065
Algumas pessoas citaram essa tradição em uma tentativa de provar que o Islam tolera estupro conjugal, mas uma consideração cuidadosa demonstrará que ela é na verdade uma prova contra o estupro conjugal.
Nesta situação muito específica, a esposa se recusa a responder ao pedido do marido para se juntar a ele na cama. Ela não tem uma desculpa válida para recusá-lo, como estar preocupado, doente ou cansado. Pelo contrário, ela o recusa de uma atitude mesquinha apenas. Isto é uma violação dos termos do contrato de casamento e, portanto, um pecado. E também pode tentar o marido a satisfazer seu impulso natural de maneira ilegal. Se o marido passa a noite inteira em sua casa zangado com ela, isso faz com que os anjos a amaldiçoem até a manhã seguinte.
O Profeta, ﷺ, adverte essas mulheres sobre as consequências morais negativas desse comportamento inexplicável. Mas ele não concede nenhuma concessão ao marido para tomar seu direito à força. Se o cumprimento sexual forçado fosse uma opção aceitável, poderíamos inferir que o Profeta, ﷺ, teria mencionado isso aqui, mas ele não o fez. Assim, a tradição é uma prova implícita contra o estupro conjugal e, por analogia, contra o estupro de concubinas também.
Os estudiosos clássicos determinaram que um homem não tem o direito de ter relações sexuais com sua esposa se ele a prejudicar, pois isso é uma violação de seus direitos e dos valores islâmicos de misericórdia e comportamento honroso. Se ele não cumpre seus direitos, então ela não precisa cumprir os dela.
Al Bahuti escreveu:
وللزوج الاستمتاع بزوجته كل وقت على أي صفة كانت … ما لم يشغلها عن الفرائض أو يضرها فليس له الاستمتاع بها إذن لأن ذلك ليس من المعاشرة بالمعروف وحيث لم يشغلها عن ذلك ولم يضرها فله الاستمتاع
É o direito de um marido desfrutar de sua esposa a qualquer momento, não importando o estado dela … contanto que ele não a distraia de suas obrigações ou a prejudique. Nesse caso, ele não pode apreciá-la, uma vez que não está vivendo com ela com honra. Se ele não a distrair desses deveres ou prejudicá-la, então ele poderá apreciá-la.
Fonte: Kashshaf al-qina – 5/188
Além disso, a esposa tem o direito de pedir o divórcio se o marido a prejudicar de maneira intolerável. O Profeta, ﷺ, uma vez dissolveu o casamento de um casal porque a esposa não podia mais tolerar o comportamento abusivo do marido.
Yahya ibn Said relatou: Habeeba bint Sahl era a esposa de Thabit ibn Qais e foi mencionado ao Mensageiro de Allah, ﷺ, que eles eram casados e ela era sua vizinha. Thabit tinha batido nela, então ela apareceu na porta do Profeta e disse: “Thabit e eu não podemos mais continuar casados.”
O Profeta disse a Thabit:
خُذْ مِنْهَا وَخَلِّ سَبِيلَهَا
Pegue o que ela deve a você e deixe-a seguir seu caminho.
Fonte: Sunan al-Darimi – 2200
Com base em tais tradições, os estudiosos forneceram às esposas abusadas proteção legal e o direito de buscar o divórcio em tais casos.
Said Sabiq escreveu:
ذهب الإمام مالك أن للزوجة أن تطلب من القاضي التفريق إذا ادعت إضرار الزوج بها إضرارا لا يستطاع معه دوام العشرة بين أمثالهما مثل ضربها أو سبها أو إيذائها بأي نوع من أنواع الايذاء الذي لا يطاق أو إكراهها على منكر من القول أو الفعل
Imam Malik aderiu à opinião de que a esposa tem o direito de buscar a separação por decreto do juiz se ela alegar que o marido a prejudicou muito, de tal forma que não é possível que eles continuem em união conjugal. Por exemplo, se ele a agride, abusa ou a prejudica de maneira intolerável, ou a força a cometer o mal em palavras ou ações.
Fonte: Fiqh al-Sunnah – 2/289
Nos tempos modernos, esses precedentes legais formaram a base a partir da qual, juristas em países muçulmanos buscaram reformar a lei da família islâmica e remover quaisquer brechas pelas quais os homens possam justificar a violência contra as mulheres. A Carta Islâmica da Família, que foi endossada por numerosas autoridades muçulmanas, incluindo o Grande Mufti do Egito, afirma o seguinte:
لا يجوز مهما بلغتدرجةالخلافبينالزوجيناللجوءءلىاستعمالالضربتجاوزًاللضوابطالشرعيةالمقررة, ومنيخالفهذاالمنعيكونمسئولاًمدنيًاوجنائيًا
Não é admissível, independentemente do grau de conflito entre os cônjuges, recorrer à violência em transgressão dos regulamentos estabelecidos pela lei. Quem violar esta proibição será responsabilizado civil e criminalmente.
Fonte: Mithaq al Usrah fi al Islam – 65.3
Também não devemos negligenciar a importância do raciocínio baseado em valores no que se refere ao direito e à reforma. Os valores e objetivos da lei islâmica (maqasid al-shari’ah) precedem a letra da lei e dão vida e propósito a ela. Em numerosos versículos e tradições, o Islam ensina os homens a se comportarem da melhor maneira em relação às mulheres.
Allah disse:
وَعَاشِرُوهُنَّ بِالْمَعْرُوفِ
Viva com as mulheres honrosamente. Surat An-Nisa 4:19
Abu Huraira رضي الله عنه relatou: O Mensageiro de Allah, ﷺ, disse:
أَكْمَلُ الْمُؤْمِنِينَ إِيمَانًا أَحْسَنُهُمْ خُلُقًا وَخِيَارُكُمْ خِيَارُكُمْ لِنِسَائِهِمْ خُلُقًا
Os mais completos dentre os crentes na fé são aqueles com o melhor caráter, e os melhores de vocês são os melhores em comportamento para com suas mulheres.
Fonte: Sunan At-Tirmidhi 1162
Em outra narração, o Profeta ﷺ disse:
اسْتَوْصُوا بِالنِّسَاءِ
Eu lhe peço boa conduta para com as mulheres.
Fonte: Sahih Bukhari – 3153
Expressar esses valores como o núcleo do nosso modo de vida, ressoará com mais força entre os muçulmanos e os outros. As pessoas comuns não treinadas nos princípios da lei islâmica podem não ser capazes de articular ou entender um sólido processo legal contra o estupro conjugal, mas instintivamente sabem que está errado porque não é misericordioso, gentil, amável ou justo. Essa linha de pensamento tem um potencial muito maior para alcançar as massas do que os argumentos detalhados de juristas e acadêmicos.
Para concluir, o estupro conjugal é uma questão nova que requer uma análise cuidadosa dos juristas muçulmanos contemporâneos. O princípio de evitar danos pode servir como base para o desenvolvimento da lei, de tal forma que as mulheres vulneráveis sejam protegidas contra o abuso doméstico. Devemos às nossas irmãs no Islam, e às mulheres em geral, fechar quaisquer lacunas na legislação atual que possam permitir que um marido machuque sua esposa.
O sucesso vem de Allah, e Allah sabe melhor!
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