A história é infinitamente elástica. As ações de uma pessoa em qualquer período causam ondulações que afetam as vidas de milhares de pessoas no mesmo período ou nas gerações vindouras. Mahmud de Gházni é importante na história islâmica, porque suas ações definiram o tom para as interações entre o mundo islâmico e o mundo hindu. O tom dessa interação criou uma amargura que tem sido explorada por extremistas na dialética entre hindus e muçulmanos. Nenhum estudante da história da Índia e do Paquistão pode ignorar ano fatídico de 1025, quando o sultão Mahmud invadiu o Templo de Somanath na Índia e saqueou seus vastos tesouros. Por outro lado, os historiadores contemporâneos, que olharam para o subcontinente em isolamento, negligenciado as correntes globais em que Mahmud operava, entenderam mal suas ações e injustamente acusaram o sultão de ser um “destruidor de ídolos”.
Olhando através de qualquer padrão histórico, Mahmud era uma figura imponente. Se alguém vivia por volta do ano 1000, teria de fato o visto como a figura gigante da época. De Lahore à Bagdá, do Mar Cáspio ao Golfo Pérsico, a bandeira de Mahmud tremulava incontestada. Mahmud era filho de Subaktagin, que por sua vez era o genro de Alaptagin. Alaptagin, foi um soldado memeluco (escravo) de uma tribo turca, que serviu na corte samânida em Bukhara. Com a decadência e perda de poder dos samanidas, Alaptagin mudou-se para as montanhas do Afeganistão e estabeleceu a sua autoridade em Ghazna. Os samânidas tentaram subjugar Alaptagin mas não tiveram sucesso. Alaptagin morreu em 995 e seu genro Subaktagin o sucedeu. Subaktagin voltou sua atenção para o leste, atravessando o rio Indus e acrescentando Punjab ocidental a seus domínios. Reconhecendo seus sucessos militares, o califa abássida Qadir Billah de Bagdá conferiu a Subaktagin o título de Nasir ud Daula (Defensor do Reino). A legitimidade do governo no Islã sunita fluía do califa que concedia seus favores sobre príncipes ambiciosos e soldados por toda uma gama de títulos. Subaktagin era um soldado excelente e ele consolidou seu domínio sobre o Afeganistão, até áreas de fronteira e Punjab ocidental.
Quando Subaktagin morreu em 997, seus filhos Mahmud e Ismail lutaram pelo poder. Mahmud, de longe, o mais talentoso dos dois, foi vitorioso. Quando a energia dos samânidas desapareceu no ano 999, Mahmud moveu-se rapidamente para anexar Khorasan. O poder persa desapareceu da Ásia Central e foi substituído pelo poder turcomano, embora a influência persa na região continuasse a florescer através da língua farsi. O Califa de Bagdá reconhecida a legitimidade de Mahmud, conferindo-lhe os títulos de Yamin ud Daula (A mão direita do reino) e Amin ul Millat (Administrador dos Crentes).
Mahmud agora voltava sua atenção para a Índia. E é em suas interações com o Hindustão que a importância histórica de Mahmud é cristalizada. Para entender os ataques de Mahmud a Índia deve-se rever a situação mundial dos muçulmanos no momento. O mundo islâmico estava dividido entre os fatímidas no Cairo e os abássidas em Bagdá, com os omíadas em al-Andalus (atual Espanha) reivindicando seu próprio califado com base em Córdoba. Os fatímidas controlavam o Norte de África, Egito, Síria e Arábia. Simpatizantes dos fatímidas governavam a partir de Multan (no Paquistão moderno) e por um tempo também em Bukhara. Os fatímidas tinha, com efeito, cercado os abássidas.O impacto desse isolamento foi profundamente sentida no comércio da Ásia Ocidental. Os fatímidas foram bem sucedidos em desviar o lucrativo comércio com a Índia e o Extremo Oriente a partir do Golfo Pérsico para o Mar Vermelho e de lá através do Egito para o sul da Europa. Além disso, o comércio lucrativo de ouro com África subsariana também passou a fluir através dos territórios fatímidas.
Sem saída para o Mediterrâneo a partir de seus domínios, Bagdá decaiu, enquanto o Cairo, capital fatímida, prosperou. Mercadores venezianos aumentaram a prosperidade do Cairo desse período. Além deste aperto financeiro, os califas em Bagdá ficaram sob crescente pressão militar das áreas circundantes. Os buídas controlavam as áreas vizinhas de Bagdá durante cinquenta anos. Assim, o século entre 969 (quando os fatímidas conquistaram o Egito) e 1056 (quando os fatímidas foram expulsos de Bagdá) marcaram o ponto mais baixo para os sunitas nas lutas internas entre os muçulmanos. A condição financeira dos califas abássidas estava tão ruim que eles tinham que leiloar seus imensos tesouros para levantar dinheiro. Ibn Kathir registra pelo menos um desses leilões, por volta de 1050.
Os seljúcidas resgataram militarmente os abássidas. O fato de que grande parte da população do Norte da África e da Ásia permanecia sunita através de séculos de controle fatímida ajudou os turcos neste esforço. Para financiar suas campanhas, os governantes turcomanos da Ásia Central cada vez mais voltaram sua atenção para a Índia. Através dos tempos, a Índia tem sido um grande sumidouro de ouro do mundo. Especiarias indianas, marfim e bens manufaturados eram uma grande demanda no mundo mediterrâneo e além. Isto era pago em ouro, que fluia das minas na África Ocidental através do Mar da Arábia para o subcontinente indiano. O saldo da balança comercial foi sempre a favor dos indianos, porque especiarias literalmente brotavam todos os anos, enquanto a oferta de ouro era limitada. A Índia acumulou vastas reservas de ouro que foi transformada em jóias de nobres e decoração dos templos do vasto subcontinente. Uma e outra vez, esta riqueza acumulada atraia a atenção de invasores que invadiram o subcontinente em busca de dinheiro para pagar por suas campanhas militares.
Para essa centralização política ter sucesso, três condições deveriam ser observadas. Em primeiro lugar, devia haver uma força vinculativa, um cimento que manteria o povo junto. Este poderia ser um sistema de ideia ou crença transcendental, ou poderia ser uma coesão primal com base em uma tribo, nação ou raça. Em segundo lugar, o poder do ataque militar que deveria ter preponderância sobre a capacidade de se defender. Em terceiro lugar, o dinheiro para financiar o processo de centralização.
Por volta do ano 1000, as duas visões diferentes do Islã dos abássidas em Bagdá e dos fatímidas no Cairo, estavam competindo pela primazia. Embora os fatímidas sendo superiores militarmente por quase um século, nenhum dos lados tinha o poder ofensivo para sobrepujar completamente o outro. Ambos os lados precisava de dinheiro para financiar suas campanhas mutuamente hostis. Os fatímidas invadiam as cidades costeiras de al-Andalus e da católica romana Itália em busca de ouro. Os sultões que apoiavam os abássidas não só precisavam de dinheiro para financiar suas operações contra os fatímidas, como também para conter a pressão militar constante das tribos turcas através do rio Oxus. Para obter dinheiro, eles se voltaram-se para o leste.
Os ataques do sultão Mahmud na Índia devem ser entendidos neste contexto. Religião, ou mesmo ambições dinásticas, tiveram pouco a ver com esses ataques. A força motriz foi a necessidade de ouro pera lutar e sobreviver ao contexto politico da época. Mahmud invadiu a Índia 17 vezes entre 1000 e 1030. Ele atacou Peshawar (1001), Bhera (1004), Nagarkot (1007), Thaneshwar (1014), Tarain (1018) e Kanauj (1018) que caíram uma após a outra.
O mais famoso dos seus ataques o levou profundamente em territórios indianos. Em 1025, ele dirigiu-se a Somanath, o lugar de um grande templo de Shiva. Os hindus ofereceram uma dura resistência, mas foram derrotados. Os exércitos de Mahmud levaram os tesouros do templo.
Alguns historiadores têm utilizado este episódio para chamar Mahmud de destruidor de ídolos, ou pior ainda, um símbolo do Islã intolerante com outras religiões. Os fatos históricos não substanciam a acusação. e as incursões de Mahmud devem ser examinadas no contexto da situação política no oeste da Índia. A área era politicamente fossilizada, com vários rajas das dinastias Chudasama, Abhihara, Paramara, Chalukya e yadava competindo por território. Templos hindus e jainistas dominavam a paisagem religiosa. Alguns deles, como o templo de Shiva em Somanath eram bem ornamentados. A área era rica devido ao seu comércio com a Ásia Ocidental. Rajas locais muitas vezes invadiam os templos no território de outros, ou lançavam ataques contra peregrinos em seu caminho para os templos, em busca de saque.
Mahmud não foi o primeiro a invadir os templos indianos nem seus ataques tem nada a ver com o Islã ou mesmo suas próprias ambições dinásticas. Isso é confirmado pelo fato de que ele não ficou na Índia ou se quer estendeu seu sultanato aos territórios em Gujrat. Os ataques eram puramente econômicos. Romila Thapur, em um artigo de investigação intitulado ‘’Somanatha :Narrativas de Uma História’’ ( Islamic Voice, Bangalore, India, Outubro de 1999 ), registra diversos ataques de rajas locais sobre templos de outros. A coloração de incursões de Mahmud em tons religiosos foi o trabalho de historiadores britânicos no século 19. Especificamente, foram os políticos britânicos que reescreveram a história indiana. Em 1843, durante um debate na Câmara dos Comuns sobre uma proposta de invasão do Afeganistão pelos britânicos, Lord Ellenborough se referiu as incursões de Mahmud como tendo causado um “trauma Hindu”. Os britânicos, durante a invasão, ocuparam brevemente Ghazna, e arrancaram a porta de entrada do túmulo de Mahmud alegando que foi tomada do templo de Somanath e trouxeram-na de volta para Delhi. Foi descoberto mais tarde que a porta era de origem mameluca egípcia, e não tinha nenhuma origem na Índia.
Mahmud consolidou seu domínio sobre o Punjab e estabeleceu Lahore como sua capital (1020). Em 1004, ele derrotou e substituiu Daud, o governante fatímida de Multan. A sua capital Ghazna, o sultão conferiu riquezas incalculáveis. Ele estabeleceu universidades, apadrinhou estudiosos, construiu hospitais e instituiu uma administração justa e equitativa. Presentes substanciais também foram enviados a Bagdá para obter do califa o título de sultão, mas esse esforço não teve êxito. Mahmud foi um patrono da literatura persa e o grande poeta Firdowsi enfeitou sua corte. Um dos estudiosos mais famosos dos tempos, Al Baruni, acompanhou Mahmud em sua última campanha na Índia. É a este estudioso que devemos nosso conhecimento dos povos da medieval Índia, a sua filosofia, crenças, costumes, cultura e tradições. Al Baruni escreveu o Kitab ul Hind , uma obra-prima insuperável na sua apreciação imparcial da cultura hindu, ciência, matemática e tecnologia da época. Al Masudi também traduziu obras de sânscrito e grego. Seus outros trabalhos incluem Qanun e Masudi e Cronologia das nações antigas .
As façanhas de Mahmud interromperam as defesas indianas, expuseram sua fraqueza e abriram a porta para penetrações subseqüentes do noroeste. Mahmud era um soldado brilhante, mas faltava-lhe o sentido de Estado para construir um império indiano ou estabelecer uma relação de confiança com o povo de Hindustão. Esta tarefa teve que esperar mais de duzentos anos até a chegada de Qutbuddin Aibak e os mamelucos.
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