No estudo de fiqh (jurisprudência islâmica), escolas diferentes de pensamento foram desenvolvidas ao longo dos tempos. Estas escolas foram fundadas pelas maiores mentes legais na história islâmica e expandidas por seus sucessores. Cada um desses imames acrescentou uma dimensão única e nova para a compreensão da lei islâmica.
Para o terceiro dos quatro grandes imames, Imam Muhammad al Shafi, sua grande contribuição foi a codificação e organização de um conceito conhecido como usul al fiqh – os princípios por trás do estudo de fiqh. Durante sua ilustre carreira, ele aprendeu com alguns dos maiores estudiosos de seu tempo e ampliou suas ideias, enquanto ainda se mantinha perto do Alcorão e da Sunnah como as principais fontes de leis islâmicas. Hoje, sua madhab (escola de pensamento) é a segunda mais popular na Terra, após a escola Hanafi, que é o madhab de Imam Abu Hanifa.
Muhammad ibn Idris al Shafi nasceu em 767 (o ano da morte do Imam Abu Hanifa) em Gaza, na Palestina. Seu pai morreu quando ele era muito jovem e, por isso, sua mãe decidiu se mudar para Meca, onde muitos membros de sua família (que eram originalmente do Iêmen) residiam. Apesar de estarem em uma situação econômica muito ruim, sua mãe insistiu que ele embarcasse em um caminho em direção à busca do conhecimento, especialmente considerando o fato de que ele era da família do Profeta Muhammad.
Assim, como um homem jovem, ele foi treinado em gramática árabe, literatura e história. Devido à situação financeira de sua família, sua mãe não tinha condições para comprar materiais de escrita adequados para o jovem al Shafi. Assim, ele foi forçado a tomar notas em suas aulas sobre velhos ossos de animais. Apesar disso, ele conseguiu memorizar o Alcorão com a idade de sete anos. Depois disso, ele começou a mergulhar no estudo da fiqh, memorizando, aos dez anos de idade, o livro mais popular de jurisp islâmica da época, Muwatta, do Imam Malik.
Com a idade de treze anos, ele foi instado pelo governador de Meca para viajar a Medina para estudar com o próprio Imam Malik. Imam Malik ficou muito impressionado com a inteligência e a mente analítica do jovem al Shafi e forneceu-lhe assistência financeira para garantir que ele permanecesse no estudo de fiqh.
Em Medina, al Shafi foi completamente imerso no ambiente acadêmico da época. Além do Imam Malik, ele estudou com Imam Muhammad al Shaybani, um dos alunos mais destacados do Imam Abu Hanifa. Al Shafi, familizariado com diferentes pontos de vista sobre o estudo de fiqh, foi grandemente beneficiado pela exposição às várias abordagens sobre essas ciência. Quando Imam Malik morreu, em 795, Imam Shafi era conhecido por ser um dos estudiosos mais experientes do mundo, mesmo apesar de seus 20 e poucos anos.
Não muito tempo depois da morte do Imam Malik, Imam Shafi foi convidado para ir ao Iêmen para trabalhar como um juiz para o governador abássida. Sua estadia lá não duraria muito, no entanto. O problema foi que, como um acadêmico, Imam Shafi não estava pronto para o ambiente politicamente carregado em que ele se encontrava. Por ele ter insistido em ser intransigentemente justo e honesto, inúmeras facções dentro do governo tinham o objetivo de retirá-lo de seu posto.
Em 803, ele foi preso e levado para Bagdá, a sede do califado abássida, por falsas acusações de apoiar os rebeldes xiitas no Iêmen. Quando ele se reuniu com o califa do tempo, Harun al Rashid, Imam Shafi fez uma defesa apaixonada e eloquente que impressionou muito o califa. Imam Shafi não só foi liberto, mas Harun al Rashid ainda insistiu que Imam Shafi ficasse em Bagdá e ajudasse a espalhar conhecimento islâmico na região. Então, Al Shafi concordou e inteligentemente decidiu ficar longe da política para o resto de sua vida.
Enquanto esteve no Iraque, ele aproveitou a oportunidade para aprender mais sobre o madhab Hanafi. Ele se reencontrou com seu antigo professor, Muhammad al Shaybani, que lhe ajudou a dominar os mais intrínsecos detalhes da madhab. Embora nunca houvesse conhecido o Imam Abu Hanifa, ele tinha um grande respeito para com o autor do estudo de fiqh e sua escola de pensamento.
Ao longo de seus 30 e 40 anos, Imam al Shafi viajou por toda a Síria e Península Arábica, dando palestras e compilando um grande grupo de alunos que estudaram com ele. Entre eles estava o Imam Ahmad, o criador da quarta escola de fiqh, a madhab Hanbali. Eventualmente, ele finalmente voltou para Bagdá, mas descobriu que o novo califa, al Mamun, mantinha algumas crenças muito pouco ortodoxas sobre o Islam e era conhecido por perseguir aqueles que discordavam dele. Como resultado, em 814, Imam Shafi fez o seu movimento final, desta vez para o Egito, onde foi capaz de finalizar seus pareceres jurídicos e, finalmente, organizar o estudo de usul al fiqh.
Durante os anos 700 e a parte inicial dos anos 800, haviam duas filosofias concorrentes sobre como a lei islâmica deveria ser derivada. Uma filosofia foi promovida pela Ahl al hadith, que significa “o povo do Hadith”. Eles insistiram em dependência absoluta sobre a interpretação literal dos Hadiths e a inadmissibilidade de usar a razão como um meio para obter a lei islâmica. O outro grupo era conhecido como Ahl al Rai, que significa “o povo da razão”. Eles também acreditavam no uso de Hadiths, é claro, mas também aceitavam a razão como uma importante fonte de direito. As escolas Hanafi e Maliki de fiqh foram consideradas pertencentes aos ahl al Rai neste momento.
Tendo estudado ambas as escolas de fiqh, bem como tendo um vasto conhecimento de hadiths autênticos, Imam al Shafi procurou conciliar as duas filosofias e introduzir uma metodologia clara para fiqh – conhecido como usul al fiqh. Seus esforços para este fim resultaram em sua obra seminal, Al Risala.
Al Risala não era para ser um livro que discutia questões particulares legais e as opiniões do Imam al Shafi sobre elas. Também não era para ser um livro de regras e leis islâmicas. Em vez disso, ele foi concebido para fornecer uma maneira razoável e racional para derivar a lei islâmica. Nele, Imam al Shafi esboçou quatro principais fontes das quais a lei islâmica pode ser derivada:
Para cada uma destas fontes (além de mais algumas fontes que ele não considerava tão importantes), ele vai em profundidade em seu Risala, explicando como elas devem ser interpretadas e reconciliadas uma com a outra. A estrutura que ele criou para a lei islâmica tornou-se a principal estrutura do fiqh, que foi aceita por todos os estudiosos posteriores da lei islâmica. Mesmo as escolas Hanafi e Maliki foram adaptadas para trabalhar no quadro que al Shafi criou.
As contribuições de Imam al Shafi no campo do usul al fiqh foram monumentais. Suas ideias impediram o desgaste do estudo do fiqh em centenas de diferentes escolas, concorrentes, fornecendo uma filosofia geral que deve ser respeitada. Mas é também flexível o suficiente para que possam haver diferentes interpretações e, portanto, madhabs. Embora ele provavelmente não tenha tido essa intenção, seus seguidores codificaram seus pareceres jurídicos (que foram estabelecidos em outro livro, Kitab al Umm) após sua morte, em 820, dentro madhab Shafi. Hoje, a madhab Shafi é a segunda maior madhab após a madhab Hanafi e é muito popular no Egito, Palestina, Síria, Iêmen, África Oriental e Sudeste da Ásia.
Além de ser um gigante dos estudos na área de fiqh, Imam Shafi era conhecido por sua eloquência e seu conhecimento da língua árabe. Durante suas viagens, beduínos, que eram conhecidos por serem os melhores versados na língua árabe, iam assistir suas palestras não para ganhar conhecimento de fiqh, mas apenas para se maravilharem com o seu uso da linguagem e seu domínio da poesia. Um de seus companheiros, Ibn Hisham, observou: “eu nunca ouvi ele (Imam Shafi) usar qualquer coisa que não seja uma palavra que, analisando cuidadosamente, não poderia ser encontrada palavra melhor em toda a língua árabe.”
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Fonte: Lost Islamic History
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