2 de fevereiro de 1995
Qualquer muçulmano pode se beneficiar lendo ahâdîth de al-Bukhâri e Muslim, seja por conta própria ou com outros. Quanto a estudar hadîth, o Shaikh Shu’aib al-Arnaut, com quem minha esposa e eu estamos atualmente lendo o Tadrîb al-Râwi [O Treinamento do Narrador de Hadîth] do Imâm al-Suyûti, enfatiza que a ciência do hadîth lida com uma literatura vasta e complexa, um tremendo mar de informações que requerem um piloto para ajudar a navegar, sem o qual seríamos fadados a parar nas pedras. Nesse contexto, o Shaikh Shu’aib nos disse uma vez: “Quem quer que não tenha um shaikh, o Diabo é seu shaikh, em qualquer disciplina islâmica.” Em outras palavras, há benefícios que o muçulmano comum pode esperar de ler hadîth pessoalmente e benefícios que ele não pode esperar, a não ser que ele seja tanto treinado quanto use outra literatura, particularmente os comentários clássicos que explicam os significados dos ahâdîth e sua relação com o Islã como um todo.
Os benefícios que se pode derivar de se ler al-Bukhâri e Muslim são muitos: conhecimento geral de tais fundamentos como a crença em Allah, a missão de mensageiro do Profeta (s.a.w.s.), o Dia Final e assim por diante; assim como as prescrições morais gerais do Islã para se fazer o bem, evitar o mal, rezar, jejuar o ramadã e assim por diante. As coleções de hadîth também contêm muitos outros pontos interessantes, tais como as grandes recompensas por atos de adoração como a reza do meio da manhã (duha), a reza de vigília noturna (tahajjud), jejuar nas segundas e quintas, dar caridade voluntária e assim vai. Qualquer um que os leia e os ponha em prática na sua vida tem um retorno enorme por ler hadîth, ainda mais se se almeja se aperfeiçoar adquirindo os nobres traços de caráter do Profeta (s.a.w.s.) mencionados em hadîth. Quem quer que aprenda e siga o exemplo profético nesses assuntos triunfou neste mundo e no Outro.
O que não é para se esperar em ler hadîth (sem instrução pessoal de um shaikh por algum tempo) são duas coisas: tornar-se um ‘âlim ou sábio muçulmano, e deduzir fiqh (jurisprudência islâmica) dos ahâdîth sobre particularidades da prática da Sharî’a.
Sem uma mão para o guiar, o leitor destreinado entenderá errado muitos do ahâdîth que ler e esses erros, se assimilados e deixados sem corrigir, podem se amontoar até que não se consiga nunca mais achar uma saída deles, o que dizer de se tornar um sábio. Tal pessoa é particularmente uma presa fácil para movimentos sectários modernos de nossos tempos aparecendo num disfarce neo-ortodoxo, bem financiados e publicados, citando o Alcorão e ahâdîth para os desinformados para fazer jus para a contenção básica de todas as seitas desviantes desde o começo do Islã; nomeadamente que eles são os únicos muçulmanos verdadeiros. Tais movimentos podem forçar, por exemplo, o hadîth bem autenticado (hasan) relatado de ‘Â’isha (r.a.a) por al-Hakîm e al-Tirmidhi no qual o Profeta (s.a.w.s.) disse: “Shirk (politeísmo) é mais escondido na minha Umma do que o arrastar de formigas sobre uma grande pedra lisa numa noite escura… (Nawâdir al-Usûl fî Ma’rifa Ahâdîth al-Rasûl. Istambul 1294/1877. Reimpr. Beirute: Dâr Sadir, n.d., 399).
Esse hadîth tem sido usado por seitas desde o tempo do movimento wahhâbi histórico até o presente para convencer as pessoas comuns de que a maioria dos muçulmanos podem talvez não serem absolutamente muçulmanos, mas antes mushrikîn ou politeístas, e que aqueles que não aderem às visões de seus shuyûkh podem estar além do jugo do Islã.
Em resposta, os sábios tradicionais assinalam que as palavras “fî Ummati”, “na minha Umma” no hadîth claramente indica que o que se quer dizer aqui é o shirk menor de certos pecados que, embora sérios, não subentendem descrença de cara. Quanto à palavra shirk ou politeísmo, há dois significados. O primeiro é o maior politeísmo de adorar outros com Allah, do que Allah fala na Sûrat al-Nisâ’: “Verdadeiramente Allah não perdoa que algo seja associado a Ele [em adoração], mas perdoa o que quer que seja diferente disso, a quem Ele quiser.” (Alcorão 4:48), e esse é o shirk da descrença. O segundo é o politeísmo menor dos pecados que engloba falhas no tauhîd de alguém ou no conhecimento da unidade divina, mas não engloba deixar o Islã. Exemplos incluem afeição por alguém pelo bem de algo que é errado (chamado de shirk porque se espera benefício do que Allah não pôs benefício) os desgostar de alguém por causa de algo que é certo (chamado de shirk porque se obtém dano do que Allah pôs benefício), ou o pecado de se mostrar em atos de adoração, como mencionado no sahîh ou hadîth rigorosamente autenticado que o Profeta (s.a.w.s.) disse: “a mínima fração de arrogância em boas obras é shirk (al-Mustadrak ‘ala ‘l-Sahîhain. 4 vol. Hyderabad, 1334/1916. Reimpr. (com índice, vol. 5). Beirute: Dâr al-Ma’rifa, n.d.,1.4). Tais pecados não põem ninguém fora do Islã, embora eles sejam desobediência e mostram uma falta de fé (îmân).
Sábios dizem que o shirk menor de tais pecados é o intencionado pelo hadîth, pois se fosse o shirk maior o intencionado, o Profeta (s.a.w.s.) não teria se referido a tais indivíduos como sendo a minha Umma, já que descrença (kufr) é separada e distinta do Islã, e necessariamente fora dele. Isso também é trazido por outra versão do hadîth relatado por Abu Bakr (Nawâdir al-Usûl, 397), que tem “fîkum” ou “entre vocês” em vez das palavras “na minha Umma”, uma referência direta aos Sahâba ou Companheiros proféticos, nenhum dos quais era um mushrik ou idólatra, por consenso (ijmâ’) unânime de todos os sábios muçulmanos. Quanto aos pecados do shirk menor, não pode ser imperceptível o porquê sua ocultabilidade é comparada no hadîth ao imperceptível arrastar das formigas através de uma grande pedra lisa numa noite escura; nomeadamente por causa da sutileza dos motivos humanos e a facilidade com a qual os seres humanos podem se enganar.
Semelhantemente, al-Bukhâri relata que o Profeta (s.a.w.s.) disse: “Verdadeiramente, devem seguir as maneiras daqueles que existiam antes de vocês, trecho a trecho e cúbito a cúbito até que, se eles forem entrar numa toca dum lagarto, vocês deveriam segui-los.” Dissemos: “Ó Mensageiro de Allah, os judeus e cristãos?” E ele disse: “Quem mais?”(Sahîh al-Bukhâri. 9 vol. Cairo 1313/1895. Reimpr. (9 vol. em 3). Beirute: Dâr al-Jîl, n.d., 9.126: 7320).
Esse hadîth também é usado por movimentos modernos alegando ser um retorno ao Alcorão e Sunna, sugerindo que a maioria dos muçulmanos sunitas comuns que seguem a ‘aqîda (princípios da fé) ou o fiqh dos Imâms sunitas ortodoxos majoritários (cujas obras clássicas raramente correspondem totalmente às visões deles) estão indicados nesse hadîth, enquanto há muita evidência de que a maioria ortodoxa da Umma é divinamente protegida do erro, tal como o hadîth sahîh relatado por al-Hakîm de que “a mão de Allah está sobre o grupo, e quem quer que divirja deles diverge para o inferno.” (al-Mustadrak, 1.116). Tais ahâdîth mostram que os versículos alcorânicos como “Se você obedecer a maioria daqueles na terra, eles o desviarão do caminho de Allah” (Alcorão 6:116) não se refere àqueles que seguem a erudição islâmica tradicional (que nunca foram a maioria daqueles na terra), mas em vez disso a maioria não muçulmana da humanidade.
É mais adequado entender os ahâdîth mencionados previamente com palavras dizendo para seguir os judeus e cristãos como se referindo, em nossos tempos, aos muçulmanos que copiam o Ocidente em todos os aspectos de suas vidas, racional e irracional, até mesmo ao extremo de construir bancos em cidades islâmicas e lugares sagrados nunca antes infectados pela usura (rîba) de modo institucional desde os tempos pré-islâmicos. Ou aqueles que promovem ideologias sectárias divisivas sob o disfarce de movimentos reformistas dentre os muçulmanos, como os judeus e cristãos fizeram em suas respectivas religiões.
A erudição tradicional é protegida de tal desvio pelo conhecimento autêntico que foi preservado, de professor a professor presencialmente, em sucessão inquebrantável até o Profeta (s.a.w.s.). Para retornar à nossa questão, sem um tal processo de controle de qualidade, o leitor desamparado de hadîth não pode esperar se tornar um tipo de ‘âlim caseiro, emitindo fatwas embasado no que ele encontre em al-Bukhâri ou Muslim somente, porque os ahâdîth sahîh relacionados à questões legais islâmicas não são de modo algum baseados somente nessas duas obras, mas numa quantidade grande de outras delas, que aquele que emite julgamentos sobre essas questões deve conhecer. Mencionei em outro lugar algumas das ciências necessárias pelo sábio para fazer a junção entre todos os ahâdîth, e que alguns ahâdîth condicionam um ao outro ou são condicionados por ahâdîth mais gerais ou mais específicos ou versículos alcorânicos que levam a questão. Sem esse conhecimento e um shaikh tradicional para se aprender dele, dever-se-á necessariamente tropeçar, algo que eu sei porque já o tentei pessoalmente.
Quando fui para a Jordânia pela primeira vez em 1980, alguém pôs na minha mente que um muçulmano não precisa de nada além do Alcorão e de ahâdîth sahîh. Depois de ler todo o Alcorão árabe com a ajuda do Alcorão Interpretado de A.J. Arberry e registrando o que entendi, sentei-me com a tradução de Muhammad Muhsin Khan do Sahih al-Bukhâri e passei por todos os ahâdîth, volume a volume, anotando tudo que parecia dizer que um muçulmano deve fazer. Foi um esforço de cortar através dos séculos de acréscimos ao Islã que os orientalistas me ensinaram na Universidade de Chicago, um esforço de obter o Islã puro desde as próprias fontes originais. Meu salafismo e meu orientalismo convergiram nesse ponto.
Desse jeito, produzi um manuscrito de ahâdîth selecionados de al-Bukhâri, um tipo de manual de Sharî’a faça-você-mesmo. Ainda o uso como um índice dos ahâdîth em al-Bukhâri, embora as conclusões de meus ijtihads amadores são agora bem vergonhosas. Quando ahâdith eram mencionados que pareciam contradizer um ao outro, simplesmente escolhia o que eu queria, ou que fosse mais próximo dos meus hábitos ocidentais. Afinal, disse eu, o Profeta (s.a.w.s.) nunca escolheu entre dois assuntos a não ser o mais fácil dos dois (Sahîh al-Bukhâri, 4.230: 3560). Por exemplo, disseram-me que não era sunna urinar de pé, e ouvi falar do hadîth de ‘Â’isha que quem quer que diga que o Profeta (s.a.w.s.) tenha urinado de pé, que não se acreditasse nele (Musnad al-Imâm Ahmad. 6 vol. Cairo 1313/1895. Reimpr. Beirute: Dâr Sadir, n.d., 6.136). Mas então eu li o hadîth em al-Bukhâri que o Profeta (s.a.w.s.) urinou uma vez de pé (Sahîh al-Bukhâri, 1.66: 224), e decidi que o que me contaram primeiro era um erro, ou que talvez isso não importasse muito. Somente mais tarde, quando comecei a traduzir o árabe do manual de fiqh shâfi’i Reliance of the Traveller [Confiança do Viajante] que de fato descobri como os sábios da Sharî’a combinaram as implicações desses ahâdîth; que o Profeta (s.a.w.s.) ter ficado de pé para urinar ensina a Umma de que isso não é proibido (harâm), mas antes só desrecomendável (makrûh) – embora em relação ao Profeta tais ações não são desrecomendáveis, mas antes obrigatórias de fazer pelo menos uma vez para mostrar para a Umma que não eram proibidas – ou de acordo com outros sábios, para mostrar que era permissível em situações nas quais previna da urina de pingar na própria roupa.
Em retrospectiva, minhas desventuras do passado com hadîth me capacitaram a apreciar o modo com o qual o fiqh que estudei mais tarde fez a junção de todos os ahâdîth, algo que eu pessoalmente era incapaz de fazer. E entendi o porquê, dos Imâms de hadîth mais renomados, o Imâm al-Bukhâri tomou sua jurisprudência shâfi’i do discípulo do Imâm Shâfi’i, ‘Abdullah ibn al-Zubair al-Humaidi (al-Subki, Tabaqat al-Shâfi’iyya al-Kubrâ. 10 vol. Cairo: ‘Isa al-Bâbi al-Halabi, 1383/1964, 2.214), e o porquê dos Imâms Muslim, al-Tirmidhi, Abu Dâwûd e al-Nasâ’i terem também seguido a Escola Shâfi’i (Mansûr ‘Ali Nasîf, al-Tâj al-Jami’ li ‘l-Usûl fî Ahâdîth al-Rasûl. 5 vol. Cairo 1382/1962. Reimpr. Beirute: Dâr Ihyâ’ al-Turath al-‘Arabi, n.d., 1.16), como fez al-Baihaqi, al-Hakîm, Abu Nu’aim, Ibn Hibbân, al-Daraqutni, al-Baghawi, Ibn Khuzaima, al-Suyûti, al-Dhahabi, Ibn Kathîr, Nûr al-Dîn al-Haithami, al-Mundhiri, al-Nawawi, Ibn Hâjar al-‘Asqalâni, Taqi al-Dîn al-Subki e outros; o porquê dos Imâms tais como ‘Abd al-Rahmân ibn al-Jauzi seguirem o madhhab de Ahmad ibn Hanbal; e porquê Abu Ja’far al-Tahâwi, ‘Ali al-Qâri, Jamâl al-Dîn al-Zailai (o shaikh africano de Ibn Hâjar al-‘Asqalâni, que alguns pensam ter sido mais sábio que ele) e Badr al-Dîn al-‘Aini seguiram a Escola Hanafi.
Esses fatos falam eloquentemente como era o papel do hadîth na Sharî’a nos olhos desses Imâms, para os quais não era uma questão de praticar nem fiqh nem hadîth, como alguns muçulmanos sugerem seriamente hoje, mas antes o fiqh do hadîth dava corpo aos madhâhib tradicionais que eles seguiam. Haveria lugar para muitos de nós nos benificiarmos de seus exemplos.
Fonte: https://masud.co.uk/would-you-advise-individuals-to-study-hadith-from-al-bukhari-and-muslim-on-their-own/
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