Karen Armstrong, especialista britânica em religião comparada, nota que, na Europa, há uma tradição antiga e desonesta de se distorcer o islam. Ela critica a ideia de que o islam seja essencialmente mais violento do que o cristianismo e fala sobre a origem do desdém ocidental para com o mundo árabe. Entrevista por Claudia Mende
Artigo de 2/11/2015
Sra. Armstrong, num artigo para o jornal “The Guardian”, você escreveu que a barbárie do Estado Islâmico pode ser “ao menos em parte, fruto de políticas guiadas pelo nosso desdém”. Você escreveria isso novamente agora, após os ataques em Paris?
Karen Armstrong: Sim, com certeza. Se o ataque a “Charlie Hebdo” foi de fato inspirado ou financiado pela al-Qaida, teve motivações tanto políticas quanto religiosas. Em Paris, foi um ataque contra o símbolo sagrado da civilização ocidental moderna e secular: a liberdade de expressão. A liberdade de expressão era um ideal iluminista. Era essencial para a sociedade capitalista que as pessoas fossem livres para inovar sem serem contidas pelas restrições da igreja, das classes ou das associações. Em Paris, os terroristas afirmaram algo nas linhas de: “Vocês atacaram o nosso símbolo sagrado (o Profeta Muhammad), por isso, atacaremos o de vocês! Agora vejam como que é.”
Mas o que isso tem a ver com o desdém ocidental?
Armstrong: O Profeta vem sido representado de maneira caricata no ocidente como um charlatão violento, epiléptico e pervertido desde os tempos das cruzadas, na Idade Média. Essa imagem distorcida do islam surgiu ao mesmo tempo que o nosso antissemitismo europeu, que caracterizava os judeus como os inimigos malignos, violentos e perversos da Europa.
Então, sim. O ataque à revista foi em parte produto do desdém ocidental. O ataque no supermercado judaico, que parece ter sido financiado pelo ISIS, foi direcionado contra o apoio do ocidente a Israel. Nisso também há um elemento de desdém: por exemplo, houve pouco protesto contra as numerosas baixas de civis em Gaza do último verão, o que, para alguns muçulmanos, parece indicar que as vidas das mulheres, das crianças e dos idosos palestinos não são tão valiosas quanto as nossas [dos ocidentais].
Onde você vê as raízes desse desdém?
Armstrong: O ideal iluminista de liberdade era, em prática, somente para os europeus. Os Pais Fundadores dos Estados Unidos, que eram profundamente influenciados pelo iluminismo, orgulhosamente proclamavam que “todos os homens são criados iguais” e desfrutavam dos direitos humanos naturais à vida, à liberdade e à propriedade. Mas não tinham remorsos por possuírem escravos africanos ou expulsarem os nativos americanos das suas terras ancestrais.
John Locke, o missionário da tolerância, escreveu que o mestre tinha direitos “absolutos e despóticos” sobre o escravo, o que incluía o direito de matá-lo a qualquer momento. E assim continua: entre os que marcharam pela liberdade de expressão em Paris, havia muitos líderes de estados que já apoiaram regimes em países majoritariamente muçulmanos que negavam aos seus cidadãos liberdades básicas. A Inglaterra e os Estados Unidos, por exemplo, continuam apoiando o regime Saudita. Novamente o desdém: a nossa liberdade é mais importante do que a de vocês.
Não devemos também analisar certos versículos do Alcorão e suas interpretações no decorrer da história para explicar o fenômeno do terrorismo islâmico?
Armstrong: “No decorrer da história”, estes versículos do Alcorão nunca inspiraram atos terroristas. Todo império depende da força. É assim com os impérios indiano, chinês, persa, romano, helenístico e britânico e também é o caso com os impérios islâmicos. Além disso, até a era moderna, o islam tinha um histórico de tolerância muito melhor do que o do cristianismo ocidental. Quando os cruzados conquistaram Jerusalém em 1099, eles chacinaram os habitantes muçulmanos e judeus da cidade num massacre que chocou o Oriente Médio, que nunca havia testemunhado tamanha violência descontrolada. E ainda assim, isso foi 50 anos antes de qualquer represália islâmica séria. Há mais violência na Bíblia hebraica e no Novo Testamento do que no Alcorão.
A maioria dos teólogos cristãos discordaria.
Armstrong: Esses teólogos que alegam que não há passagem no Novo Testamento como os versículos 2:191-93 do Alcorão provavelmente esqueceram o Livro da Revelação, que é o texto favorito de muitos fundamentalistas cristãos que anseiam pelas batalhas do iminente Fim dos Tempos, que trarão a destruição dos inimigos de Deus. Eles interpretam esses textos literalmente e os citam com mais frequência do que o Sermão da Montanha. A agressão contra o inimigo que é comandada no Alcorão, 2:191, se conclui com: “Se eles cessarem a hostilidade, não pode haver mais hostilidade.” (Alcorão, 2:193). Não há clemência deste tipo para com aqueles que combatem a Palavra de Deus nas batalhas da Revelação.
Por que isso nunca é mencionado nos debates sobre esse assunto?
Armstrong: É possível que defendam que esse livro não condiz com a mensagem do Novo Testamento como um todo, mas o mesmo pode ser dito dos “versículos da espada” do Alcorão. Mesmo Jesus, que disse para seus discípulos que amassem seus inimigos e oferecessem a outra face quando atacados, advertiu seus seguidores: “Não penseis que vim trazer paz à terra; não vim trazer paz, mas espada.” (Mateus, 10:34). Todas as escrituras têm passagens violentas que podem ser citadas fora de contexto, ser indevidamente consideradas importantes e usadas para anular o ensinamento de paz que inspira todas as doutrinas ao que há de melhor nelas.
Há uma ideia popular de que o islam têm a violência incorporada nas suas crenças desde o princípio. O que você acha?
Armstrong: Essa crença popular se originou na época das Cruzadas, quando eram os cristãos ocidentais que atacavam os muçulmanos no Oriente Próximo. Ela pode indicar uma ansiedade e uma culpa ocultas: Jesus disse aos seus seguidores para que amassem seus inimigos, não que os exterminassem. A convicção de que o islam sempre fora uma religião da espada foi promovida por monges eruditos no século XXI. Eles projetavam a preocupação que tinham sobre o comportamento deles mesmos sobre suas vítimas.
Mas e quanto à origem do império islâmico?
Armstrong: Nos primeiros anos, quando os muçulmanos eram uma minoria oprimida em Meca, o Alcorão os proibia de retaliar e atacar os agressores. Mas quando foram forçados pela perseguição cada vez mais intensa a fugirem de Meca e fundar um novo estado, os muçulmanos, como o povo de qualquer outra nação em formação, tiveram de lutar, e o Alcorão apoia isso. Mas os historiadores militares nos dizem que Muhammad e os primeiros califas eram praticamente os únicos que construíram um império com meios mais diplomáticos do que violentos: Muhammad, com a unificação da península Árabe, que antes era formada por sociedades tribais que estavam sempre em guerra, e com a instituição da Pax Islamica; e os primeiros califas, os Rashidun, nas terras cultivadas do Oriente Médio.
Outra diferença entre o oriente e o ocidente é a ausência da separação entre estado e religião no mundo árabe. Por que, no mundo árabe, o laicismo tem uma posição tão precária?
Armstrong: O laicismo que se desenvolveu no ocidente durante o século XVIII foi uma inovação radical. Antes do período moderno, a religião permeava todas as atividades humanas, porque as pessoas queriam que suas vidas tivessem sentido. A ideia de “religião” como uma busca pessoal, particular e separada em essência de todas os outros esforços era desconhecida na Europa pré-moderna e no resto do mundo. Nenhuma outra cultura tem coisa parecida. As palavras que traduzimos como “religião” (como a palavra “din” em árabe ou “dharma” em sânscrito) dizem respeito a todo um modo de vida. Tirar a “religião” da política seria algo tão difícil quanto tirar o gin de um coquetel. E isso não porque eles fossem muito burros para verem diferença ente duas atividades completamente diferentes, mas porque assuntos como o apuro dos pobres, a manutenção da ordem e da segurança públicas e a justiça, todos eles eram de importância sagrada.
Então o laicismo é visto como um conceito ocidental em essência?
Armstrong: É uma inovação ocidental. Fomos capazes de desenvolvê-lo sob a nossa própria dinâmica, e não sob o comando de outros. Ele foi essencial para a nossa modernização e, por isso, muitos o consideram libertador. Mas no mundo árabe, não passava de um conceito estrangeiro; era imposto por potências colonizadoras e veio como subordinação política e não liberdade. Na maioria dos casos, ele foi imposto com tanta crueldade que, quando os colonizadores partiram, foi considerado algo certamente maligno.
Quando Ataturk secularizou a Turquia moderna, ele fechou todas as madrassas. Suas políticas de purificação étnica para sempre associaram o secularismo com a violência dos Jovens Turcos, um grupo secular que havia tomado o poder na Turquia Otomana e que cometeu os massacres na Armênia na Primeira Guerra Mundial. Esses governantes queriam que seus países parecessem modernos (o seja, europeus), mesmo que a maioria de suas populações não tivessem familiaridade alguma com os conceitos ocidentais.
E o Egito, a terra natal do radicalismo islamista?
Armstrong: Depois de um atentado à sua vida em 1954, Gamal Abdel Nasser prendeu milhares de membros da Fraternidade Muçulmana – os inocentes junto com a minoria culpada. A maioria foi encarcerada sem julgamento, por ter feito nada mais do que distribuir panfletos ou comparecer a uma reunião.
Um deles era Sayyid Qutb. Quando viu seus Irmãos apanhando, sendo torturados e executados nessa infame prisão, e ouviu Nasser prometer que secularizaria o Egito com o modelo ocidental e que confinaria o islam à esfera privada, o secularismo parecia ser um mal terrível. Na prisão, ele escreveu o livro “Marcos ao Longo do Caminho” (Milestones na tradução em inglês ou Ma‘alim fil Tarik), a “bíblia” do fundamentalismo sunita, a obra de um homem que sofreu muita pressão e que foi executado ao mando especial de Nasser em 1966. Os outros Irmãos se radicalizaram nessas terríveis prisões. Quando foram soltos em nos anos 1970, popularizaram o seu extremismo.
Entrevista conduzida por Claudia Mende
Da Inglaterra, Karen Armstrong é especialista em religiões comparadas. É autora de muitos bestsellers sobre história das religiões. O seu novo trabalho fala da violência no judaísmo, no cristianismo e no islam. “Fields of Blood: Religion and the History of Violence” (2014) (Campos de Sangue: a Religião e a História da Violência).
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