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Por que a Chechênia apoia a Rússia mesmo após Anos de Guerra?

Entre os anos 1990 e 2000, Chechênia e Rússia viveram o auge de um conflito bem antigo. Mas, mesmo após tudo isso, hoje os dois são grandes aliados.
  • A Chechênia era uma nação islâmica que foi invadida pela Rússia ainda no período imperial.
  • Em alguns pontos da história, os chechenos sofreram com a opressão russa e a independência sempre foi um desejo latente.
  • Após a queda da União Soviética, uma guerra separatista fez com que a Chechênia se tornasse um estado independente.
  • No entanto, isso desencadeou ações violentas e de grupos terroristas, o que levou a mais uma guerra, na qual chechenos notáveis apoiaram a Rússia.

 

A Chechênia ganhou destaque nos noticiários internacionais em fevereiro de 2022, quando tropas comandadas pelo chefe da república, Ramzan Kadyrov, deram apoio a Vladimir Putin durante a invasão à Ucrânia. Hoje, a federação de maioria islâmica é um estado autônomo da Rússia e possui boas relações com o governo de Moscou, mas a história nem sempre foi assim.

A história entre a Rússia e a Chechênia é marcada por diversos conflitos que surgiram na época da monarquia russa. O clima de instabilidade continuou durante o regime socialista da União Soviética, mas atingiu o seu auge já no final do século XX, quando o país se desintegrou. Este período de instabilidade política trouxe à tona revoltas pela independência de várias regiões, incluindo a própria Chechênia.

Os chechenos conseguiram ter um primeiro momento de sucesso após vencerem a guerra contra os russos em 1996, mas o que se seguiu foi um período de grande instabilidade e violência que resultou em uma nova guerra em 1999. Ironicamente, deste segundo conflito é que nasceu a aliança com a Rússia e também a autonomia da Chechênia. Neste texto, explicaremos as origens deste conflito e a complexa relação entre as duas partes.

Origens do Conflito

Origem do povo checheno e sua islamização

Os chechenos são um povo cuja origem é do norte do Cáucaso e que, ao final da idade média, começou se expandir para outras regiões graças à modernização da agricultura e ao acesso a armamento de fogo, que permitiram que a população crescesse e que pudesse enfrentar os seus inimigos nômades, que eram cavaleiros muito habilidosos.

Outro fator que contribuiu para a expansão do povo checheno pelo Cáucaso foi justamente o avanço do Império Russo contra os canatos de Kazan, Sibéria e Astracã, limitou bastante a capacidade de mobilização dos nômades, o que permitiu que os chechenos pudessem se estabelecer em parte do sul do Cáucaso.

Esses fatores são um marco no início da cultura chechena. Naquele mesmo período, a sociedade começou a se converter ao Islam gradativamente. A Chechênia não foi dominada pelos muçulmanos. Aliás, apenas uma pequena parte do Cáucaso foi conquistada pelo califado árabe em 643, mais precisamente no Daguestão. O islamismo, por sua vez, foi introduzido na Chechênia cerca de 1000 anos depois deste evento.

Essa conversão tardia ao Islam se deve ao trabalho dos muçulmanos do sul do Daguestão, que foram convertendo toda a região ao Islam através da propagação de ensinamentos religiosos.

A dominação russa

Guerras Muridistas do século XIX.

No século XVIII, a Rússia começou a penetrar no Cáucaso, disputando o controle da região com os Persas, que controlavam boa parte da região. Os russos mantinham uma estratégia de dominação que consistia em apoiar a nobreza e os aristocratas. Foi assim que fizeram na Estônia, Letônia, Geórgia, etc. Na Chechênia, no entanto, eles foram frustrados, pois não havia uma nobreza, mas sim uma hierarquia militar, social e espiritual em torno das ordens sufis.

O avanço da Rússia no Cáucaso não foi nada fácil. As investidas duraram a maior parte do século XVIII e XIX, após uma série de disputas com os Persas, Otomanos e outros povos independentes da região. A Chechênia e o Daguestão só seriam conquistados em 1859, após o confronto conhecido como Guerras Muridistas, em que as tropas do Imam Shamil sucumbiram aos russos após 30 anos de conflitos violentos.

Esses conflitos foram muito importantes para a expansão do Islam. O Império Russo, que avançou pelo Cáucaso com a premissa de evangelizar aqueles povos, acabou fazendo com que os inimigos se unissem em torno do Islam para combater os invasores.

A violência, no entanto, acabou prosseguindo após a queda de Shamil. As revoltas na Chechênia e no Daguestão continuaram após a queda de Shamil, contrariando as expectativas do Império. Durante o genocídio, circassianos e muitos chechenos acabaram sendo exilados para o Império Otomano. A resistência foi enfraquecida, mas os embates nunca cessaram totalmente. Ao invés disso, seguiram até o fim do Império Russo.

Era soviética

Em 1917, o Império Russo caiu após a revolução que levou o país ao governo socialista. Aproveitando a fragilidade que o país atravessava naquele momento, os chechenos conseguiram formar um estado independente junto com o Daguestão. Mas, em 1921, o país foi reconquistado à força e posteriormente integrado à União Soviética.

Entre os anos de 1929 e 1930, o regime soviético começou um programa para impor fazendas coletivas no Cáucaso. Por causa disso, houve muitas insurgências na Chechênia, Inguchétia, Karachai e partes do Daguestão lideradas pelos muçulmanos que se opunham à coletivização. A revolta foi tão violenta que o governo suspendeu a implementação do seu projeto.

A revolta dos chechenos seguiu ao longo da década de 1930 e foi duramente reprimida por Stalin em 1944, que exilou várias pessoas do Cáucaso para o Cazaquistão. O que se seguiu foi um projeto de colonização da Chechênia, no qual massas de pessoas vindas de toda a Rússia começaram a ocupar as casas abandonadas dos exilados. Em 2004, o parlamento europeu reconheceu a deportação como um genocídio.

O projeto de colonização de Stalin foi interrompido na era de Nikita Kruschev, que combateu o legado de seu antecessor e permitiu que os chechenos regressassem à sua terra. Eles voltaram em massa e houve conflitos étnicos com os russos que haviam se mudado para as casas que eles habitavam.

No entanto, a russificação prosseguiu de modo menos violento. Afinal, mesmo com o fim do exílio, ainda era muito difícil para os chechenos terem boas oportunidades para melhorar de vida falando apenas o idioma natal e sem conhecimento do russo, fazendo com que boa parte da cultura local fosse substituída pelos costumes russos.

A Queda do socialismo e o agravamento da tensão

Em 1990, a República Socialista Soviética da Chechênia e Ingush fez uma declaração de soberania, que faria parte da reorganização do país que aumentaria os estados da república de 15 para 80. Mas a ideia foi abortada após uma tentativa de golpe de estado no ano de 1991.

Com o fim eminente da União Soviética, iniciou-se um movimento pela independência da Chechênia encabeçado pelo presidente checheno, o ex-general da força aérea soviética Dzhokhar Dudayev, que fez uma campanha para que o novo estado fosse reconhecido, mas foi fortemente contestado pelo presidente russo Boris Yeltsin, que alegou que a Chechênia não era uma unidade independente da Rússia dentro da URSS e, portanto, não tinha o direito constitucional de se separar.

A Primeira Guerra da Chechênia

Na esteira da luta política pelo território checheno, iniciou-se uma revolta armada em 1994 que envolvia diferentes facções, incluindo as tropas do estado separatista e paramilitares religiosos muçulmanos. Mesmo tendo um exército bastante superior, os russos tiveram dificuldades nos combates e os insurgentes acabaram sendo bem sucedidos em seu ataque.

Nessa época, casos chocantes abalaram o mundo, como o atentado terrorista em 1995 no hospital Budyonnovsk, no sul da Rússia. Um grupo com um contingente de 80 a 200 homens que era liderado pelo terrorista Shamil Bassayev tomou a cidade e se direcionou ao hospital fazendo vários reféns pelo caminho. Estima-se que cerca de 140 pessoas morreram no ataque, a maioria reféns, o que gerou uma enorme crise no governo russo.

Os russos ainda tiveram sucesso em um ataque contra o presidente checheno Dzhokhar Dudayev, que morreu com o disparo de um míssil após ser rastreado pelo exército oponente. No entanto, os chechenos proporcionaram uma reviravolta em 1996 ao tomar a capital Grozny das mãos do exército da Rússia, uma desmoralização enorme que fez com que fosse assinado um cessar-fogo que marcou o fim da primeira guerra.

Período entre-guerras 

Em 1997, a Chechênia organizou sua eleição presidencial, na qual foi eleito o então secretário de gabinete e primeiro-ministro checheno, Asian Maskhadov. Ele pressionou para que a Rússia ajudasse a reconstruir o país, que teve sua infraestrutura e economias devastadas, enquanto cerca de 40% da população vivia em campos de refugiados ou aldeias superlotadas. 

O governo russo enviou fundos para a reconstrução do país, mas boa parte do dinheiro foi desviado por autoridades.

A independência chechena, que era um sonho, se tornou um grande pesadelo. A pobreza trouxe à tona casos frequentes de sequestro. O presidente Maskhadov, então, tomou uma medida de combate à violência que gerou uma resposta ainda mais extrema. Shadid Bargishev, que era oficial da divisão antissequestro, morreu em um atentado com um carro-bomba controlado remotamente. Os autores eram terroristas acusados de serem wahabitas.

Isso não intimidou as autoridades da Chechênia. Pelo contrário, em 1998, foi decretado estado de emergência em todo o país e um conflito armado aberto teve início envolvendo as tropas chechenas e os grupos terroristas.

Segunda Guerra da Chechênia

Os terroristas Ibn al-Khattab e Shamil Basayev.

Em 1999, terroristas da Brigada Islâmica Internacional de Manutenção da Paz, liderados por Shamil Basayev e o saudita Ibn al-Khattab, iniciaram uma investida no Daguestão para tentar unificá-lo ao estado da Chechênia. Eles esperavam ser recebidos como heróis pelos muçulmanos, mas foram considerados pela população local como fanáticos religiosos invasores e indesejáveis.

A invasão terrorista ao Daguestão ocorreu no dia 7 de agosto e, três dias depois, eles já haviam anunciado a criação de seu estado independente e declarado guerra ao governo local e à Rússia. Primeiramente, eles enfrentaram resistência da polícia local e até por milícias organizadas pela população. Quando a guerra se agravou, as forças armadas da Rússia entraram no combate, mas dessa vez a ofensiva foi bem mais efetiva do que na primeira.

Os russos bombardearam as linhas inimigas, fazendo com que fossem empurradas para a Chechênia, o que atraiu o exército russo para dentro do país, dando início à segunda guerra.

Em setembro, os terroristas, acuados, iniciaram novos ataques, desta vez colocando bombas em em prédios civis de algumas cidades russas. Estima-se que 300 pessoas morreram nesses ataques. Na época, Vladimir Putin era o primeiro-ministro da Rússia, mas ainda não tinha popularidade suficiente para se eleger presidente. Então, ele apoiou diversas medidas de combate severas e isso emplacaria seu nome no futuro.

Há muitas especulações sobre atrocidades cometidas pelas forças russas na Chechênia, mas outras são fatos claros como, por exemplo, o massacre de Noviye Aldi, em que 60 civis foram mortos no subúrbio de Grozny em fevereiro de 2000. Após a Rússia capturar a capital do país, o governo separatista chegou ao fim e o período da segunda guerra também.

Conflitos e atentados após a segunda guerra

Após a Rússia retomar o poder na Chechênia, os ataques dos terroristas continuaram. Um dos casos mais marcantes foi o ataque ao teatro de Moscou, em 2002, em que 900 pessoas foram feitas reféns e 117 foram mortas, além de 50 rebeldes. Esse ataque fez com que a Rússia endurecesse a vigilância e a repressão na Chechênia e intensificou as estratégias anti-terroristas.

Em 2003, foi estabelecido o primeiro governo da Chechênia pró-Rússia, governado pelo ex-separatista e mufti checheno Akhmad Kadyrov, que já administrava a região desde 2000. O novo líder havia lutado na primeira guerra pela independência local, mas acabou mudando suas visões quando notou que o país havia virado um criadouro de ideais terroristas e de uma série de outros problemas.

Nesta época, a Chechênia foi reintegrada à Rússia mas, em contrapartida, ganhou certa autonomia e uma constituição própria, mas ainda vinculada a Moscou. Um ano depois, Akhmad foi assassinado em público enquanto assistia a um desfile militar na tribuna de honra.

Em 2004, houve mais um atentado terrorista. Desta vez, contra uma escola na cidade de Beslan, na Ossétia do Norte, em que 1100 pessoas foram feitas reféns, entre elas 777 crianças. Os rebeldes exigiram que o governo russo reconhecesse a independência da Chechênia. O ataque durou três dias e 331 pessoas morreram, incluindo 186 crianças.

Quase metade das vítimas em Beslan eram crianças.

Entre 2005 e 2006, Putin, agora presidente, fechou as fronteiras do Cáucaso e iniciou a caçada aos rebeldes, terminando com a morte de Aslan Maskhadov e Shamil Basayev.

A Aliança com a Rússia

Em 2007, Ramzan Kadyrov, filho de Akhmed, chegou ao poder na Chechênia. A princípio, o estado que ele tinha a seu favor era bastante fraco, mas acabou sendo fortalecido pela própria Rússia. De lá para cá, embora houvesse algumas tensões pontuais, o local vive relativa paz, graças à força que o estado autônomo possui hoje.

Entretanto, as denúncias de violência por parte do governo são inúmeras. Kadyrov é acusado de ser um líder autoritário, que persegue opositores, jornalistas, homossexuais e pessoas inocentes. Ele também é acusado de torturas, mortes e até de manter uma prisão em sua fortaleza, onde cometeria todos os atos violentos. Entretanto, ele nega constantemente tudo o que é afirmado ao seu respeito.

Kadyrov está fortemente atrelado a Putin, mas nem tanto ao Kremilin. Estrategicamente, o presidente russo consegue manter longe o problema causado pelos terroristas e ganha um aliado pessoal caso seu poder seja ameaçado. Enquanto isso, o chefe checheno procura manter o seu estado forte para se proteger contra os terroristas e também contra eventuais guerras que possa ter contra a Rússia no futuro.

É por causa dessa boa relação entre Kadyrov e Putin que os dois territórios conseguem ter uma boa relação atualmente, inclusive se apoiando na invasão contra a Ucrânia. O exército de Kadyrov impressiona pelo seu contingente de 70 mil homens e foi até explorado pelo Kremilin como uma propaganda de guerra em um vídeo que circulou na internet com todos os homens reunidos.

A relação entre Rússia e Chechênia é hoje a mais estável que há depois de décadas de conflito e, mesmo que o estado independente tenha sofrido alguns ataques terroristas, como o da aldeia Tsentoroy e outro ao parlamento, ambos ocorridos em 2010, nunca mais houve violência em larga escala, como na época da guerra ou antes de Ramzan assumir o poder.

Conclusão

A Chechênia é um país islâmico que foi dominado pela Rússia ainda no período imperial e que também fez parte da União Soviética. Durante décadas, os chechenos buscaram independência, mas todas as tentativas falharam até o ano de 1994, quando estourou a guerra contra os russos pelo controle da região. Eles conquistaram sua independência, mas acabaram ficando à mercê de muitos terroristas que levaram violência para lá e para estados vizinhos. 

Essa violência atraiu novamente a intervenção da Rússia que, desta vez, teve apoio de alguns importantes líderes chechenos, o que levou o país a uma segunda guerra. Os russos venceram o confronto e hoje a Chechênia é uma federação do país, embora tenha autonomia.

Embora não haja mais ação dos terroristas como antes, há muitas denúncias de repressão e perseguição governamental na Chechênia e muitas pessoas acusam o chefe Ramzan Kadyrov de ser um homem violento e autoritário. Ele possui excelentes relações com Putin e isso garante apoio mútuo entre as partes. É a isso que se deve a presença das forças chechenas na guerra da Ucrânia.

Fontes

-Islam as a uniting and dividing force in Chechen society - Disponível em: https://www.amo.cz/en/islam-as-a-uniting-and-dividing-force-in-chechen-society-2/#:~:text=Islamization%20of%20Chechnya,%2C%20Nogays%2C%20and%20Crimean%20Tatars.

-History of Russian-Chechen Relations: Attempt at a Polemic View - Disponível em: https://www.amo.cz/history-of-russian-chechen-relations-attempt-at-a-polemic-view/

-The Insurgency in Chechnya and the North Caucasus: From Gazavat to Jihad, SCHAEFER, Robert W., 2010. - Disponível em: https://books.google.com.br/books?id=IGj4B1rdcu0C&q=russo+persian+war+1722+vainakh&pg=PA53&redir_esc=y#v=onepage&q&f=false

- Chechnya's Forgotten Children Of The Holodomor - Disponível em: https://www.rferl.org/a/chechnya-ukraine-holodomor-survivors/25177285.html

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