A palavra “sufi” quer dizer literalmente um praticante de tasawwuf, um termo que se deriva da raiz árabe s-w-f, significando pureza. No contexto do tasawwuf, significa pureza de coração. Um segundo significado se deriva da palavra “suf”, que quer dizer lã. Às vezes o Profeta usava uma manta branca de lã e daí a palavra “suf” remete a uma conexão com a tradição profética. Uma conotação mais profunda para “suf” provém de uma associação com Fâtima az-Zahrâ (r), a amada filha do Profeta, que é conhecida por ter tecido lã. Assim como o teceleiro toma fios de lã e tece uma túnica de lã, assim também o tasawwuf integra uma visão de mundo holística dos acontecimentos avulsos da vida mundana. Na terminologia sufi, a “tecelagem de Fâtima (r)” conota purificação e molde da alma e sua integração com seu eu holístico. Um terceiro significado da palavra tasawwuf se deriva de Ahl as-Saff, ou pessoas da primeira fileira, que se distinguiam através da autopurificação, amor ao Profeta e serviço altruísta à humanidade.
O tasawwuf cresceu no berço do Islã e não foi importado dos gregos ou dos budistas como alguns autores modernos professam. A maioria dos sufis traçam sua espiritualidade ao Profeta através de ‘Ali ibn Abu Tâlib (r) e alguns a traçam através de Abu Bakr as-Siddîq (r). Abu Dhar al-Ghifari (d. 652), um companheiro do Profeta, era um sufi bem conhecido. Em uso funcional, tasawwuf quer dizer conhecimento espiritual intuitivo e imediato do amor de Deus. Os sufis exprimem esse amor através da lembrança constante de Deus (dhikr), serviço altruísta, poesia sublime, canções devocionais, música extática, letras repletas de saudade do amor divino e renúncia dos ganhos mundanos. Seja qual for a origem da palavra, não há dúvida que o tasawwuf funciona como um rio poderoso através da história islâmica, tornando sua vasta paisagem em um verdadeiro jardim espiritual. Na história tão mesclada dos muçulmanos, muitas vezes pontuada com desentendimentos, rancor, guerra e caos, o tawassuf é um riacho comum que tem corrido livremente de todos os segmentos do pensamento islâmico – sunita, xiita, fatímida, zaidita e outros. Ao lado da Sharî’a e a Sunna do Profeta, o tasawwuf é o único amálgama que se derreteu e se moldou em diferentes grupos entre os muçulmanos.
A espiritualidade é inata ao Islã. O Profeta mesmo era uma personificação dessa espiritualidade. Seu legado foi passado aos Sahâba (Companheiros do Profeta) e depois deles aos Tabiyîn (aqueles que aprenderam dos Companheiros) e os Tabi Tabiyîn (aqueles que aprenderam dos Tabiyîn). Gerações sucessivas mantiveram essa tradição viva. Nos primeiros séculos do Islã, com as posses e opulência das classes governantes aumentando, uma repulsa ao mundanismo das cortes se iniciou entre alguns dos sábios. Entre os sufis notáveis do início do Islã estavam Hassan al-Basri (d. 728), Rabia al-‘Adawiya (d. 802) e Mansûr al-Hallâj (d. 922). Entretanto, o tasawwuf como disciplina funcionava como uma pequena corrente no meio social e não veio a existir por si próprio até o século XII. Por contraste, as ciências do fiqh foram codificadas e institucionalizadas no século VIII e IX e as ciências do hadîth foram bem estabelecidas pelo século X.
Através dos séculos XI, XII e XIII, correntes históricas se moveram inexoravelmente em favor dos sufis. Al-Ghazzâli (d. 1111), através de seus escritos eloquentes, concedeu respeitabilidade ao tasawwuf e o trouxe diretamente à corrente principal do Islã. Ele lidou com os teólogos, os filósofos e os fatímidas e os mostrou que o tasawwuf era o único modo através do qual a certeza de conhecimento poderia ser assegurada. Em Tahaffuz al-Filasâfa, ele repudiou a abordagem racional (filosófica) ao conhecimento como insuficiente e inadequada para se chegar à verdade. Em Ihyâ’ ‘Ulûm ad-Dîn, ele argumentou contra a abordagem esotérica dos fatímidas e sua busca por um líder infalível e invisível. Do outro lado do espectro, os teólogos confiavam somente numa interpretação prosaica dos textos sem entendimento dos alicerces espirituais. Conhecimento verdadeiro, argumentava Al-Ghazzâli, vem somente da iluminação da alma depois de ter sido limpa.
O tasawwuf se enraizou e solidificou sua posição no mundo islâmico quando o cataclisma mongol desceu sobre ele. Genghis Khan e seus sucessores destruíram uma civilização. Centros de aprendizado e cultura como Bukhara, Samarqand, Nishapur, Herat e Bagdá foram obliterados. O coração das terras islâmicas se extendendo desde Bukhara até Bagdá foi despovoado. De acordo com Ibn Kathîr, o número de pessoas mortas dentro e em volta de Bagdá mesmo excedeu um milhão. Regiões inteiras ficaram despovoadas. Represas foram destruídas. A agricultura pereceu. Cidades se tornaram pasto. Livros foram lançados no rio Tigre. Bibliotecas foram incendiadas. Mesquitas foram demolidas. Homens de conhecimento foram trucidados. Resumindo, a cortina caiu sobre a civilização islâmica clássica.
Com seu poder político destruído e a cultura dizimada, Islã se voltou para dentro em suas raízes espirituais. Foram os sufis que mantiveram a luminária da fé brilhando na escuridão do século XIII. Os mongóis mataram os governantes, destruíram as bibliotecas, escravizaram os sábios, mas sua espada não poderia tocar o coração do sufi. Os sufis persistiram, lutaram uma batalha da alma com os cristãos e a venceram com a conversão de Ghazan, o Grande da Pérsia (1295). Em celas pequenas em esconderijos distantes, o fogo da fé continuou a arder e quando as trevas se levantaram, foram esses pequenos fogos que se tornaram como faróis e levaram a mensagem do Tawhîd para os cantos distantes da Índia, Paquistão, Indonésia e Leste Europeu, transformando a paisagem social da Eurásia e influenciando profundamente o curso dos eventos globais. Durante um período de mais de mil anos, o tasawwuf forneceu o princípio orientador para a reforma nos cantos distantes do mundo islâmico assim como o que de melhor que se tinha para movimentos políticos. Se o centro da gravidade do mundo islâmico hoje é mais perto de Cingapura do que do Cairo, é devido não tanto ao poder dos sultães ou à pregação dos mullahs, mas à abordagem espiritual dos shaykhs sufis.
Na geração que experimentou o dilúvio mongol, foi necessário achar uma determinação sinistra não só para sobreviver mas também para servir e expandir a esfera da fé. O gênio da época se exprimiu através da espiritualidade. Tarîqas sufis cresceram em todo lugar e proveram o bote salva-vidas para os muçulmanos em sua hora mais sombria. Entre aquelas que deixaram uma impressão duradoura na história foram as ordens fundadas pelo shaykh Abdul Qâdir al-Jîlâni (Bagdá, d. 1166), Khwaja Mo’înuddîn Chishti (Ajmer, Índia d. 1236), Ziauddîn Jahib Suhrwardi (Bagdá, cerca de 1150), ‘Ali ash-Shâdhili (Egito, d. 1258), Jalâluddîn Rûmi (Turquia, d. 1273) e Khwaja Baha’uddîn Naqshband (Bukhara, d. 1386). Ibn al-‘Arabi (d. 1240) introduziu o pensamento sufi na Espanha por volta desse mesmo tempo. A Ordem Qâdiriyya se espalhou por todo o mundo islâmico e influenciou profundamente movimentos religiosos, sociais e políticos. A Ordem Chishti for o maior instrumento de introdução do Islã no subcontinente indo-paquistanês. Os escritos de Ibn ‘Arabi influenciaram o desenvolvimento do tasawwuf por todo o mundo. A Ordem Shâdiliyya encontrou seguidores no Egito, Síria, Malásia, Leste Africano e Norte Africano. A Ordem Mawlawiyya de Jalâluddîn Rûmi influenciou os turcos e europeus. A resiliência do Islã, manifesta em sua dimensão espiritual, não somente absorveu o choque das invasões mongóis, mas também no fim obteve sucesso em converter os próprios mongóis ao Islã.
Enquanto não comprometia a Sharî’a ou a Sunna do Profeta, o tasawwuf fundiu a espiritualidade islâmica com as culturas locais e evoluiu um Islã popular que se espalhou pelo subcontinente indo-paquistanês, Indonésia e profundamente na África. A história dessas regiões não pode ser entendida ao menos que a dimensão espiritual do Islã seja tida em conta. Muitos dos movimentos que emergiram para reformar a tendência sufi das massas islâmicas eram eles mesmos fortemente enraizados no pensamento sufi. Exemplos são os movimentos reformistas de Ibn Taymiyya (Síria, d. 1326), Ahmed Sirhindi (Índia, d. 1615), Muhammed as-Sanusi (Líbia, d. 1859) e al-Mahdi (Sudão, d. 1885).
O triunfo dos ‘Awliyâ’ (sábios; amigos de Deus) deve ser visto em seu contexto histórico. Os afegãos conquistaram o Hindustão (1292) somente 25 anos antes da invasão de Genghis Khan na Ásia Central. O Islã só conseguiu um apoio nas ilhas indonésias quando Hulagu destruiu Bagdá (1258). O Islã que entrou na Índia e no Extremo Oriente foi menos do Islã didático dos ‘ulamâ’ e mais do Islã espiritual do sufi. Especificamente, movimentos sufis influenciaram profundamente as terras orientais do Islã, constituindo o que é hoje a Pérsia, Paquistão, Turquia, Ásia Central, Índia, Bangladesh, Malásia, Indonésia, assim como as nações da África Subsaariana do Oeste. Nas regiões centrais do mundo árabe, que escaparam da conquista e devastação pelos mongóis graças à vitória de ‘Ayn Jalut (1261), a influência sufi foi menos pronunciada e a área permaneceu fiel ao legado do Islã clássico, com uma ênfase mais pesada na Sharî’a e legitimidade política. Por exemplo, o espírito ghazi dos otomanos nos séculos XIV e XV foi profundamente animado por influência bektashi, naqshbandi e qâdiri. ‘Uthmân dan Fuduye (d. 1817), que liderou um esforço para estabelecer um governo islâmico na África Ocidental era um seguidor da Ordem sufi Qâdiriyya. Abdel Qader al-Jazairi, um shaykh da Qâdiriyya, liderou a resistência à ocupação francesa da Argélia (1840). Shamayl Daghestani que resistiu à ocupação russa do norte do Cáucaso na década de 1840 era um shaykh naqshbandi. Shaykh al-Hajj ‘Umar Tal liderou a resistência à ocupação francesa do Senegal e Mali (1860). Até 1911, foi o movimento Sanusi no norte da África que resistiu a invasão colonial pela Itália. Até mesmo nos tempos modernos, as ordens sufis continuam provendo a liderança de movimentos de independência nacional em muitas das regiões islâmicas não árabes. Como uma ilustração, por mais de um século, a resistência ao governo russo no Cáucaso foi liderada pela ordem naqshbandi. Por contraste, no século XVIII, o grito de guerra do movimento wahhâbi na Arábia era a aderência estrita à Sharî’a. Os movimentos islâmicos dos dias de hoje no Egito e Argélia são animados por um chamado ao governo pela Sharî’a e legitimidade política.
Os sufis “conquistaram” a Índia, África e Indonésia e influenciaram profundamente a política, língua, arte, música e cultura dos povos muçulmanos do Oriente. A espiritualidade dos sufis era excepcionalmente adequada à mente antiga asiática. Tanto hindus e quanto budistas entraram no Islã em massa. Foi então que Khwaja Mo’înuddîn Chishti de Ajmer, Baba Farîduddîn do Punjab, Khwaja Khutbuddîn de Deccan e Nizamuddîn Awliya de Delhi tiveram um impacto mais duradouro no subcontinente indiano do que Mahmûd de Ghazna ou ‘Alâ’uddîn Khilji. O ascetismo do budismo indonésio aceitou melhor o Islã sufi do que as recitações pedantes dos mullahs. A alma animista da África ressoou à batida do tasawwuf e africanos entraram no Islã aos milhões.
O impacto do tasawwuf nos desenvolvimentos subsequentes em política, música e cultura não foi menos profundo. A dinastia safávida se originou como um movimento sufi. Babur, o primeiro imperador moghul, era um sufi ávido como é manifesto em seu Babur Namah. Os antigos otomanos eram os “Ghazis de Rum”, todos seguidores da Ordem Naqshbandi. Os imperadores moghuls Akbar e Jehangir eram seguidores devotos do Shaykh Salîm Chisti. Os chishtis e os naqshbandis influenciaram profundamente a música hindustani casando o canto devocional com ragas clássicas, como no Qawwali, Naat, Hamd e Ghazals. É um tributo ao gênio universal do Shaykh Jalâluddîn Rûmi, que talvez seja o poeta mais amplamente lido a América do Norte hoje.
A despeito dos triunfos históricos, a ausência de critérios empíricos abriu o sufismo ao abuso. No século XVIII, acompanhando uma queda política e social geral das sociedades islâmicas, a espiritualidade e a ética também sofreram. Assim como religião carente de espiritualidade se degenera em rituais, espiritualidade carente de Sharî’a se degenera em egoísmo e panteísmo. A fraqueza inerente à abordagem espiritual era o alvo de movimentos como o movimento wahhâbi na Arábia e o movimento do Xá Waliullah de Delhi na Índia no século XVIII. Os franceses exploraram essa fraqueza no século XX para nutrir práticas sufis desviantes no Oeste Africano como um meio de confundir os movimentos de resistência islâmicos. Entretanto, deve-se ter em mente que o abuso do tasawwuf não foi a causa mas o resultado da queda política e social dos muçulmanos. A despeito de tais abusos, o tasawwuf não pode ser decartado como uma aberração no espectro dos ensinamentos islâmicos. Tem que ser aceito como uma atividade islâmica convencional se as dimensões históricas do Islã forem entendidas. De fato, foi o principal mecanismo no movimento do Islã nos últimos oitocentos anos.
O tasawwuf foi a força dinâmica que resgatou o Islâ na sua hora mais grave, conquistou os mongóis e impulsionou a fé profundamente na Ásia e Europa. Hoje, é na espiritualidade do Islã que muçulmanos buscam renovação em face ao desafio global de uma civilização mundial agnóstica.
Fonte: https://historyofislam.com/spiritual-renewal-in-post-mongol-islamic-world/
A Equipe de Redação do Iqara Islam é multidisciplinar e composta por especialistas na Religião Islâmica, profissionais da área de Marketing, Ilustração/Design, História, Administração, Tradutores Especializados (Árabe e Inglês). Acesse nosso Quem Somos.