Um artigo de: Dr. Jonatham A.C Brown.
Nos últimos dias tem havido muito debate sobre a posição do Islã quanto a homossexualidade. Contudo, qualquer pessoa que tenha lido uma poesia persa, um guia de viagem do Golfo ou ouvido paquistaneses ou afegãos brincando, sabe que a atração pelo mesmo sexo não é algo incomum nas sociedades muçulmanas. Uma rica gama de pesquisas e estudos de alto nível . demonstraram que o Islã, as sociedades muçulmanas e a tradição da shariah (lei islâmica) não concebem a “homossexualidade” como uma identidade. Mas elas reconhecem que a atração pelo mesmo sexo ocorre, muitas vezes por razões “naturais” (por exemplo, era considerado normal homens se sentirem atraídos por jovens imberbes, que compartilhassem de beleza feminina). São apenas ações específicas, como a sodomia (em árabe, liwat ) , que despertam o radar da shariah no que diz respeito a pecados ou crimes puníveis. Não é atração pelo mesmo sexo ou desejos que a shariah proíbe. É agir de acordo com eles.
No entanto, o desenrolar dos acontecimentos que se seguiram ao atentado em Orlando, fez ressurgir o tema da desaprovação do Islã sobre relações entre pessoas do mesmo sexo sob um novo escrutínio. Alguns críticos argumentaram que qualquer desaprovação da homossexualidade é homofóbica, e que qualquer indulgência da homofobia estabelece um terreno fértil para a violência contra a comunidade LGBT. Outros fizeram objeções mais específicas, ou seja, que a existência de uma pena de morte por sodomia (liwat) na shariah cria uma inclinação particularmente escorregadia para a violência contra gays. Se a sharia prescreve a morte para a homossexualidade, alegam, então o atirador de Orlando não estava simplesmente executando a vontade de Deus? Isso não é um grande problema?
Em resposta, alguns estudiosos muçulmanos apresentaram argumentos que, apesar de certas relações entre pessoas do mesmo sexo serem proibidas no Islã, não há nenhuma penalidade de morte para a homossexualidade na shariah. O problema com este argumento, no entanto, é que, longe de descobrir um equívoco popular sobre o Islã ou revelar algum verdadeiro ensinamento há muito escondido da religião, ele simplesmente reproduz um debate de mil anos de idade dentro da tradição da shariah. Sim, a posição principal na escola de jurisprudência islâmica hanafi por muitos séculos foi de que a pena para alguém condenado por sodomia (que em todas as escolas se faz necessária a presença de quatro testemunhas da penetração, basicamente a punição sendo apenas para o sexo público) não seria a execução, e sim a aplicação de uma punição mais leve ou talvez apenas disciplinar expedida por um juiz. Entretanto, as outras três escolas sunitas de direito islâmico (hambali, shafi’i e malik) consideram a sodomia como um crime passível pena de morte (pelo menos para o parceiro ativo).
Estas divergências existem por causa de como as diferentes escolas do pensamento islâmico na shariah concebem as evidencias do Alcorão e os precedentes do Profeta, e como elas interpretaram isso. Para as escolas de lei que confirmam a pena de morte por sodomia, suas evidências eram: 1) Vários ahadiths (ditos) do Profeta em que ele afirma que aqueles que cometem ‘’o ato do povo de Ló’’ deveriam ser mortos, sendo o principal deles o hadith de Ibn ‘Abbas ; 2) uma analogia entre a sodomia e zina (fornicação heterossexual ou adultério), que muitas vezes era punível com a morte; e 3) as decisões de muitos companheiros do Profeta e outras dos primeiros estudiosos muçulmanos.
A escola Hanafi diferiu contra esta posição, porque: 1) a escola não permitia declarar algo como sendo crime hudud (passível de punição física), por analogia (sodomia pode ser análoga a zina (fornicação), mas Deus e o Profeta ﷺ tinham ordenado aos muçulmanos que buscassem a mais minima possível aplicação de penas hudud, de modo que por extensão, a analogia, seria um indulto); 2) hanafis argumentavam que os hadiths que afirmavam a pena de morte pelo crime de liwat (sodomia) eram de autenticidade discutível ; e 3) havia muito desacordo sobre a punição adequada para a sodomia entre os primeiros estudiosos muçulmanos para a sugerir que a morte seria uma conclusão clara.
Há outro problema com o argumento de ‘’há pena de morte para a homossexualidade no Islã ” no contexto do debate sobre o atentado em Orlando. Embora tenha havido grande desacordo entre os estudiosos muçulmanos sobre a punição apropriada para o liwat (sodomia) no Islã, não há qualquer desacordo entre eles sobre se o liwat é proibido no Islã. Assim, a objeção de críticos permanece: a desaprovação do Islã sobre relações entre pessoas do mesmo sexo é homofóbica, e a homofobia é uma ladeira escorregadia para a violência contra gays. O que é esquecido nesta discussão é algo que deveria ser óbvio para todos: a sua moralidade pessoal não é a lei, e você não toma a lei em suas próprias mãos.
Independentemente do sistema de leis pelo qual se vive, é responsabilidade dos órgãos de justiça reconhecidos o dever de aplicá-la. Independente de quão vil você considere um ato, é a lei do local que determina se esse ato é um crime e qual punição deve ser aplicada. De acordo com a sharia, os muçulmanos que vivem no Ocidente (ou outros estados não-muçulmanos) são essencialmente visitantes a partir da perspectiva da lei sagrada. A definição padrão entre os estudiosos muçulmanos para a ‘’Morada do Islã’’ ( Dar al-Islam ) eram daquelas terras onde a shariah reinava.
Muçulmanos fora deste contexto residem em terras e países como convidados de qualquer sistema legal ou religioso ali dominante. Se a lei da terra proíbe os muçulmanos de cumprirem alguns dos deveres exigidos pela shariah, tais como a oração, ou obrigá-os a fazerem algo claramente proibido no Islã, como o consumo de álcool, a opinião comum entre estudiosos muçulmanos clássicos era de que os muçulmanos já não podiam mais residir naquele local (uma segunda opinião era de que eles deveriam permanecer de modo que a religião do Islã não desaparecesse de lá).
Caso contrário, os muçulmanos deveriam respeitar a lei da terra. Sua decisão de permanecer naquelas terras representa o seu acordo a um contrato com os governos no poder sobre eles. Como manda o Alcorão aos muçulmanos “sejam fiéis a seus contratos” (Alcorão 5: 1), e como o Profeta ﷺ ensinou: “Os muçulmanos são obrigados pelas condições [de seus acordos].” Neste contexto, a shariah continua a governar os muçulmanos no culto privado e em todas as áreas do direito do sistema local deixadas em aberto (como contratos, herança e casamento), mas os muçulmanos devem respeitar e cumprir as restrições, deveres e regulamentos colocados sobre eles.
Como muçulmanos conciliam o princípio do Estado de direito com os comandos de suas escrituras sagradas? O Alcorão ecoa a Bíblia em seu tom sobre justiça. “Uma vida por uma vida, olho por olho …” (Alcorão 5:45) tem um imediatismo sobre isso, assim como o hadith (dito) do Profeta (recorrido, como mencionado acima) que ‘’Quem quer que você encontre cometendo o ato do povo de Ló, matai os parceiros ativos e passivos.’’ Não são comandos como estes dirigidos a nós como indivíduos?
Esta mesma pergunta foi feita ao mais famoso estudioso do século XIII do Cairo (e Damasco, neste assunto).
Ibn ‘Abd al-Salam foi perguntado se uma pessoa que tinha cometido um crime grave ou pecado mortal era autorizado a tomar a lei em suas próprias mãos e se matar. A resposta foi não, respondeu o estudioso. Se a pessoa quer ser punida, ela deve se confessar diante de um juiz para que ela possa ser tratada “da forma legal’’ ( ‘Ala al-Wajh al-shar’i).
Escrituras como a Bíblia e o Alcorão se dirigem a humanidade ao nível do padrão conceitual, como indivíduos não mediados pelos governos. A esse nível, Ibn ‘Abd al-Salam explicou, que era de fato sobre indivíduos que deveriam procurar a justiça pelos erros cometidos contra eles, que exigissem “olho por olho”. Mas, continuou, a shariah delega esse poder e papel para os governos, devido ao sério risco de abusos serem cometidos. Isto tornou-se a posição padrão dos estudiosos muçulmanos em relação a punir as pessoas pelos os crimes hudud (passíveis de punição física), bem como para lidar com crimes como o assassinato. Na escola hanbali, a posição tem sido clara: “Para nós, o princípio é delegar o hudud à autoridade (imã), pois é o direito de Deus, por isso, deve ser delegado a Seu vice [na Terra] .’’ Um posterior estudioso da escola hanbali explicou que isso acontece porque para se fazer cumprir essas leis “requer a exerção de discernimento e razão (ijtihad) ” para se certificar de que a justiça está sendo feita.
No caso do assassinato, a família da vítima tem um direito dado por Deus (e mesmo natural) de ver a justiça ser feita e ver o assassino punido. Mas, se um membro da família mata o próprio assassino, sem a permissão do governante ou juiz, ele pode ser seriamente punido. Se alguém mata o assassino quando o juiz explicitamente ordenou que ele não fosse tocado, então o acusador poderá ser acusado de assassinato. Não pode haver execução de um assassino, mesmo aquele cuja culpa é conhecida, sem a permissão da autoridade governante (estes são exemplos das escolas de jurisprudência hanafi e shafi’i). Como resumido pelo, grande jurista muçulmano Wahba al-Zuhayli: “há um acordo sobre o principio de que a aplicação das punições dos crimes hudud e qisas (olho-por-olho), bem como outras punições discricionárias caem sob a alçada especial das autoridades (imã).”
A resposta curta é, que ela não era. Como um agente da DEA assistindo uma entrevista de Keith Richards, os guardiões da shariah (juízes, estudiosos responsáveis, polícia, etc.) fechavam os olhos para a vida privada da população. Assim, apesar da produção interminável de poesia exaltando a beleza de meninos, os casos de pessoas que eram punidas por liwat (sodomia) são extremamente raros (eu só encontrei alguns poucos exemplos na história islâmica). Claro, juristas muçulmanos sabiam que a homossexualidade existia ao redor deles. E eles reprovavam. Como Ibn ‘Abd al-Salam escreveu, as pessoas só parecem preocupadas com pecados quando eles são socialmente rejeitados, e não quando são desagradáveis a Deus. Pessoas ficavam mortificadas por comer em público durante o Ramadã, ele reclamou, mas não viam nenhum problema com a sodomia onipresente.
Por que essa dissonância entre as regras da shariah e sua aplicação? Esta dissonância só existia para os crimes hudud (passíveis de punição física), esses ‘’limites de Deus “, cujas punições haviam sido definidas claramente pelo Alcorão e precedentes do Profeta (adultério / fornicação, calúnia, certos tipos de roubo, embriaguez, apostasia do islamismo e banditismo / roubo com violência). Embora alguns desses crimes fossem graves ameaças à ordem pública (por exemplo, o banditismo, roubo), e outros incluíssem violações dos direitos dos outros membros da sociedade (por exemplo, calúnia), o que unificava os crimes hudud era que eles eram vistos como transgressões ao ‘’direito de Deus ‘’.
Eles eram particularmente ofensivos para Ele. Mas, porque Deus é misericordioso, o Alcorão e os ensinamentos do Profeta tornaram quase impossíveis realmente punir alguém por um dos crimes hudud. O Alcorão ordena que a punição para fornicação é 100 chicotadas, mas também requer quatro testemunhas que viram a penetração ocorrer para provar isso (o Alcorão acrescenta que, se alguém faz esta acusação sem quatro testemunhas, ele / ela é punido com 80 chibatadas por calúnia ) (Alcorão 24: 2-4).
Além disso, em um mandamento que tem sido fundamental para a aplicação da justiça na história islâmica, o Profeta ordenou aos juízes que “afastassem o hudud dos muçulmanos, tanto quanto possível, e se há uma saída para [o acusado], então deixe-o ir’’. Porque é melhor para a autoridade errar na misericórdia do que errar no castigo. Juristas muçulmanos encapsularam esta regra em sua máxima, afastando o hudud por ambiguidades (shubuhat), compilando vastas listas de todos os aspectos técnicos processuais pelos quais punições hudud poderiam ser anuladas. Por exemplo, se um ladrão roubou um item abaixo de um determinado valor, ou a partir de um local não seguro, ou se o ladrão simplesmente negou que ele tivesse roubado, ele não poderia ser punido com a pena hudud de ter sua mão cortada.
Isso não significa que o ladrão iria escapar da punição. Seu crime iria simplesmente cair do nível de hudud para punição por roubo (sariqa), para um nível inferior de roubo, que era punido por um dever de restituição e, talvez, uma punição como um ano de prisão. Como a maioria das escolas sunitas de direito consideravam o liwat (sodomia) como sendo uma extensão do crime hudud de zina (fornicação), as mesmas garantias processuais seriam aplicadas. Se houvesse qualquer ambiguidade, a punição hudud não seria aplicada. Tal como acontece com a decisão da escola hanafi sobre o liwat, reduzir o nível da punição de hudud não queria dizer que o culpado não seria punido. Mas que o castigo seria muito menos severo.
Além do cuidado geral com o qual crimes hudud eram punidos, havia também uma aceitação cultural generalizada da atração pelo mesmo sexo nas sociedades muçulmanas. Estudiosos e juízes muçulmanos concordaram que o liwat era um pecado grave, mas era muito difundido para não tratá-lo com humor. E apreciar a beleza masculina não era desconhecido por eles. Um estudioso do século XIII que visitava o Cairo vindo de Bukhara fazia um trocadilho com os critérios rigorosos que o famoso compilador de ditos do profeta, al-Bukhari utilizava para avaliar os hadiths. Quando este estudioso via um rapaz bonito, ele dizia: ‘’Este ressoa de acordo com os critérios de al-Bukhari! ” Um influente estudioso sunita do século IX e juiz-chefe de Bagdá era bem conhecido por deliciar-se a encontrar jovens bonitos – e escrever poesia sobre isso – na medida em que um crítico dedicou um poema inteiro a “um juiz que aplicaria a punição hudud por adultério, mas que não vê nada de errado com o liwat (sodomia).” mas tudo isso eram apenas piadas para brincadeiras do juiz com o califa durante suas reuniões.
Em uma entrevista no outro dia, me perguntaram se a posição do Islã com relação a sexo entre pessoas do mesmo sexo significava que os muçulmanos não podiam viver no Ocidente. Essa pergunta é muito estranha se você parar para pensar. Há muitas características da vida na América que o Islã (e muçulmanos, presumivelmente) desaprovam: beber álcool, sexo antes do casamento, comer carne de porco, vestir roupas reveladoras, a lista poderia continuar. Intoxicação é um crime hudud na Shariah, punível com oitenta chibatadas e sexo antes do casamento / extra-conjugal é condenado tão severamente quanto a sodomia. No entanto, não há nenhuma evidência significativa de que os muçulmanos procurem realizar as punições hudud por esses atos nos EUA. Na verdade, os muçulmanos vivem em torno dessas práticas todos os dias nos EUA sem incidentes.
Apesar da afirmação de Donald Trump de que os muçulmanos não conseguiram se integrar na sociedade americana, eles parecem muito dispostos a aceitar a pluralidade de estilos de vida americanos e até mesmo, defender os direitos dos outros americanos que têm crenças que muçulmanos podem não compartilhar. Uma recente pesquisa do Pew mostra que 45% dos muçulmanos nos EUA dizem que a homossexualidade deve ser aceita pela sociedade (vs. apenas 36% dos protestantes evangélicos). Embora eu hesite em traçar esse recurso da comunidade muçulmana de alguma tensão na história islâmica, não é surpreendente que os muçulmanos tenham essa atitude. Na civilização islâmica clássica, autoridades muçulmanas permitiam que zoroastristas se envolvessem em casamentos incestuosos de irmão com irmã, que os judeus cobrassem juros, e que cristãos fabricarem vinho e criassem porcos. Juízes muçulmanos poderiam até mesmo ouvir tais processos introduzidos por não-muçulmanos, aplicando as leis de suas respectivas comunidades, em vez da shariah.
Rabinos do século X em Bagdá reconheciam que os judeus estabelecessem seus divórcios e registrassem suas propriedades em cortes muçulmanas, e estudiosos muçulmanos no século XIV em Damasco estabeleceram regras de como um juiz muçulmano deveria avaliar o valor do estoque de vinhos de um cristão (seja por seu valor em um contrato de venda ou de seu suco de uva equivalente).
Já no fim de seu Contrato Social , Rousseau afirma, “É impossível viver em paz com aqueles que consideramos condenados.” Traduzido para o nosso tempo, isso pode ser lido como “É impossível viver em paz com aqueles cujas identidades de núcleo você se recusa a validar’’. Esta é a premissa subjacente a uma escola de pensamento sobre a tolerância nas sociedades liberais (que você pode chamá-la de escola do “não julgar”). Na sua base, tanto em princípios (você pode realmente tratar os cidadãos como iguais, mesmo aqueles de quem você profundamente desaprova?), como prática em um sentido instrumental (ensinar as crianças que julgar os outros é errado é a melhor maneira de dar forma a uma sociedade pacífica). E esse pressuposto fornece a base para a posição de que qualquer reprovação moral ou religiosa da homossexualidade é um impedimento perigoso para a comunidade LGBT de receber direitos iguais e desfrutar de segurança numa sociedade.
Mas o governo de Rousseau também está simplesmente errado no contexto da sociedade americana. É falho, em princípio, porque restringe indevidamente a liberdade de consciência e de crença religiosa; não é incomum para as religiões ensinarem que não aderentes são condenados e equivocados, e é muito difícil manter a crença em um código de ética e as regras se você não pode desaprovar aqueles que violam pelo menos alguns deles. Em uma sociedade cheia com diversos pontos de vista opostos, às vezes polares sobre religião, política, estilo de vida, etc., forçar a aprovação uniforme ou validação mútua de todas as partes deixaria alguns sistemas de crenças, posições políticas ou visões de mundo estagnados.
O governo de Rousseau também é empiricamente errado no contexto americano. Americanos viveram e continuam a viver lado a lado com cidadãos cujas crenças e estilos de vida que deploramos. Como muçulmano, todos os dias eu encontro (na verdade, estou relacionado com) pessoas que pensam que é absurdo pensar em Deus, idiota acreditar no Islã, e bárbaro defender os valores islâmicos. Sendo um muçulmano crente é fundamental para a minha identidade, mas exigir que todos os outros considerem meus pontos de vista morais ou metafísicos válidos seria absurdo. Pode-se objetar que ser gay não é uma escolha, e ser religioso / muçulmano é. Mas ser religioso pode muito bem ser geneticamente determinado (podemos ter tanta certeza de que não é?).
Além disso, uma premissa central no argumento para o reconhecimento da identidade transgênero é que é a compreensão subjetiva de uma pessoa de sua própria identidade, e não as suas características biológicas objetivas que devem validar. Dizer que a minha religiosidade é menos central para a minha identidade do que a minha sexualidade é privilegiar uma concepção estreita de ambos os aspectos da identidade, e é precisamente essa imposição que o movimento LGBT se opõe. Nas sociedades pluralistas como os EUA, as pessoas têm drasticamente diferentes crenças e visões de mundo. Eles podem até considerar aqueles que não compartilham deles como moralmente deficiente ou até menos humanos (veja os atuais slogans da eleição presidencial ou invectivas de direita contra o presidente Obama durante os últimos 7 anos). Dada toda a diversidade de sistemas de crenças e cosmovisões, apoiadas pelos americanos, é totalmente irrealista propor eliminar todos os seus aspectos de desaprovação ou condenação. É muito mais viável enfatizar que a desaprovação moral ou condenação religiosa não pode ser permitida violar o Estado de Direito que nos protege.
Muitas vezes ouvimos a pergunta “Qual é o problema do Islã, que tantos muçulmanos são terroristas?” A resposta óbvia é: não há nada de errado com o Islã que faça com que os muçulmanos sejam terroristas, uma vez que o percentual dentre os 1,5 bilhões de muçulmanos do mundo que estão envolvidos no terrorismo é uma estatisticamente insignificante de 0,01% (arredondada). O ato horrendo de violência de Omar Mateen nos choca como um todo, mas ele era apenas uma pessoa.
Seu ato não mostra de qualquer maneira que as opiniões dos muçulmanos sobre a homossexualidade representam alguma ameaça real para a segurança da comunidade LGBT. Isso só faria sentido se assumirmos que o modo de Rousseau de governar como verdade e, assim o ocorrido na boate provaria isso. Porém, quantos outros atos de violência contra gays têm sido realizados por muçulmanos em nos EUA? Uma sondagem da Pew sobre pontos de vista dos muçulmanos americanos de 2011 mostrou que 45% deles sentia que a homossexualidade deveria ser desencorajada pela sociedade. Quando eu verifiquei para ver qual a percentagem de muçulmanos que possuem essa visão se envolveram em ataques violentos contra a comunidade LGBT, eu encontrei 0,0001% (arredondado).
Como um muçulmano americano, apoio o direito dos casais do mesmo sexo de terem casamentos civis de acordo com a lei dos EUA. O Islã não aprova atos sexuais entre pessoas do mesmo sexo, mas eu não acredito que as tradições sociais e religiosas de qualquer grupo devem ditar que tipo de contratos ou uniões aqueles de outras crenças podem se envolver. Quero preservar meu direito de ter o meu contrato de casamento sob a shariah com minha esposa reconhecido pela lei dos EUA, embora eu saiba que muitos americanos considerem a concepção de casamento do Islã como desagradável. Eu não vejo o desejo dos casais homossexuais com qualquer diferença.
Como os juízes muçulmanos do passado adjudicando casamentos zoroastristas incestuosos, reconhecer que vivemos numa sociedade moralmente e religiosamente pluralista não significa tolerar tudo feito nela. Eu acredito que é o direito de cada comunidade religiosa defender sua própria visão de decoro sexual. Como a Suprema Corte assegurou no histórico caso Obergefell vs. Hodges, “deve-se enfatizar que as religiões, e aqueles que aderem a doutrinas religiosas, podem continuar a defender com a máxima e sincera convicção de que, por preceitos divinos, o casamento entre pessoas do mesmo sexo não deve ser tolerado.’’ Este direito é tão importante e sagrado como o direito das minorias (sejam eles muçulmanos ou a comunidade gay) de envolverem-se em sindicatos e contratos livres das concepções de viés majoritário.
Como todos nós temos de lidar com o choque do crime sangrento de Omer Mateen em Orlando, devemos ter em mente o que foi verdadeiramente criminoso em suas ações. Muitos acham suas crenças religiosas revoltantes. Muitos acham sua homofobia perturbadora. Mas os americanos têm o direito de discordar sobre essas coisas. O crime cometido por Mateen não foi acreditar que Deus declarou que os atos homossexuais são pecaminosos. O crime que cometeu não foi odiar gays. O crime que cometeu (com todos os asteriscos para presunção de inocência, etc.) foi que ele intencionalmente, conscientemente e com a intenção maliciosa atirou, matou e executou a sangue frio 49 pessoas inocentes, ferindo dezenas de outros. Ele pode ter pensado que estava fazendo a obra de Deus, mas a shariah deixa claro desde o início do Islã que não é para os indivíduos tomarem a lei de Deus em suas próprias mãos. Mesmo se Mateen vivesse em alguma cidade muçulmana medieval, idealizada, governada pela sharia e livre de todos os males do mundo moderno, ele seria preso em correntes diante do Kadi (juiz) sob a acusação de assassinato em massa. Ás pessoas que ele matou não foi dado um julgamento ou mesmo foram formalmente acusadas dos crimes que ele imaginou que estivessem cometendo. E mesmo se tivessem sido julgadas, é altamente improvável que um juiz muçulmano tivesse visto neles culpa passível de um crime hudud. E seja qual fosse o veredito, seria apenas a autoridade legal reconhecida que poderia tê-los punido.
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