Há alguns meses atrás, eu escrevi que, enquanto muçulmano americano:
“Apoio o direito dos casais do mesmo sexo de terem casamentos civis de acordo com a lei dos EUA. O Islã não aprova atos sexuais entre pessoas do mesmo sexo, mas eu não acredito que as tradições sociais e religiosas de qualquer grupo devem ditar que tipo de contratos ou uniões aqueles de outras crenças podem se envolver. Quero preservar meu direito de ter o meu contrato de casamento sob a shariah com minha esposa reconhecido pela lei dos EUA, embora eu saiba que muitos americanos consideram a concepção de casamento do Islã como desagradável. Eu não vejo o desejo dos casais homossexuais com qualquer diferença.’’
Na no quase ataque de síndrome do túnel do carpo que induziu indignação após esta parte, muitos muçulmanos objetaram que eu estava ‘’concordando com o erro’’ ao invés de proibi-lo. Minha resposta foi que a shariah sempre, até certo ponto, permitiu práticas que o Islã condena como repreensíveis entre minorias religiosas (ahl al-dhimma) vivendo sob governo muçulmano, práticas que governantes muçulmanos poderiam facilmente ter banido (ao menos no papel). Eu escrevi:
‘’Na civilização islâmica clássica, autoridades muçulmanas permitiam que zoroastristas se envolvessem em casamentos incestuosos de irmão com irmã, que os judeus cobrassem juros, e os cristãos fabricarem vinho e criassem porcos.’’
Porque os eruditos que construíram o sistema da shariah poderiam facilmente ter proibido tais práticas entre os seus súditos, mas não o fizeram, a shariah efetivamente facilitou-as. Se estudiosos e governantes muçulmanos permitiram práticas que consideravam condenáveis e estavam em condições de arranca-las pela raiz, a fortiori ( min Bab al-Awla ), uma minoria muçulmana sem poder de regular a conduta daqueles ao seu redor, como a nossa, no Ocidente, pode tolerar os direitos dos outros a práticas condenáveis.
Alguns estudiosos objetaram que eu estava me envolvendo em raciocínio analógico falacioso (qiyas ), uma vez que práticas tais como beber vinho, a usura e casamentos incestuosos entre familiares imediatos foram especificamente permitidos pelas respectivas religiões acima mencionadas, enquanto o liwat (sodomia) não foi permitido por qualquer escritura revelada (pelo menos como muçulmanos as entendem). Isso parece um bom argumento no inicio, mas quanto mais fundo se adentra nele, mais ele se desfaz. Neste texto, eu vou examinar este argumento como parte de uma tentativa de responder à pergunta: Até que ponto os muçulmanos podem tolerar o repreensível? Ou, apresentando isso como uma grande questão frente aos muçulmanos: Como nós muçulmanos nos orientamos pelas práticas e crenças dos não-muçulmanos ao nosso redor?
As fontes fundamentais da lei e doutrina islâmica (o Alcorão, a Sunnah e as primeiras práticas e interpretações da comunidade muçulmana) fornecem nossa instrução, assim como o raciocínio de juristas muçulmanos posteriores. As normas inteiramente aperfeiçoadas derivadas pelas escolas de lei islâmicas podem ter sido desenvolvidas quando os muçulmanos eram a classe dominante na fase inicial do califado, e o Profeta ﷺ pode ter expedido éditos sobre o tratamento de não muçulmanos quando ele era o líder reconhecido e juiz-chefe de Medina, mas mesmo em Medina (Yathrib) os muçulmanos foram por muitos anos uma minoria entre uma população majoritariamente judia.
Mesmo com a expansão em poder e território do Estado muçulmano baseado em Medina durante os últimos anos da vida do Profeta, ele continuava apenas um jogador marginal numa região dominada pelos poderosos impérios Persa e Bizantino. Na famosa ‘’Constituição de Medina’’, o Profetaﷺ acordou com as principais tribos de Medina (pagãs e muçulmanas) assim como com muitos clãs judaicos menores, de que eles eram todos ‘’uma ummah (comunidade)’’ que fariam guerra e paz unida sob o comando do Profeta. Apesar do documento nunca mencionar especificamente o direito dos não-muçulmanos em Medina de praticarem sua religião livremente, não havia necessidade de. Eles simplesmente foram aceitos como eram na ‘’uma comunidade’’, sem menção até mesmo de pagarem qualquer imposto especial.
Com a expansão do Estado muçulmano para o norte e sul da Arábia, o Alcorão revela o dever do imposto jizya para os cristãos e judeus que passariam a estar sob governo muçulmano (Alcorão 9:29, isto foi posteriormente estendido para incluir todas as outras comunidades religiosas que os muçulmanos encontrassem, começando com o profeta tratando os zoroastrianos similarmente como tratava os ahl al-kitab (povo do livro) mencionados no Alcorão). O Profeta ﷺ chegou a acordos específicos com várias comunidades não-muçulmanas, seja após derrota-los em guerra ou através do reconhecimento de suserania muçulmana. Após o Profeta ﷺ derrota-los em batalha, os judeus da cidade-oásis de Kahybar concordaram em pagar uma porção de sua colheita de tâmaras para Medina em troca da permissão de permanecerem em sua cidade. Os cristãos de Ayla (atual Aqaba na Jordânia) pagavam tributo para o Estado muçulmano em troca de proteção, assim como fizeram os cristãos da antiga cidade de Najran no sul da Arábia. O Profeta ﷺ também aceitou o pagamento de jizya dos zoroastrianos da cidade de Hajar na Arábia oriental em troca do direito de continuarem vivendo sob domínio muçulmano.
Oque é importante notar aqui é que, em permitir que estes não-muçulmanos continuassem praticando suas religiões sob governo muçulmano, o Profeta ﷺ estava ”permitindo o repreensível”. Embora saibamos de um tratado que sobreviveu de forma confiável, aquele com os cristãos de Najran, no qual o Profeta lhes prometeu que as suas igrejas e clero seria garantida a proteção pelos muçulmanos, a maioria dos detalhes da lei islâmica sobre esta questão vem dos vários tratados feitos pelo califa Omar (coletivamente referidos como ”O Pacto de Omar”). Estes garantem a proteção da vida, propriedade, locais de adoração e símbolos sagrados dos não-muçulmanos em torca do pagamento de jizya.
A única instância que conhecemos da vida do Profeta ﷺ em que limites foram colocados no que era permitido para os não-muçulmanos vem em seu tratado com os cristãos de Najran. Ele os proibia de se envolverem em riba (usura, juros), Mais limites vem do material do tratado do Pacto de Omar. Diversas versões do Pacto de Omar incluem a clausula que proíbe os cristãos de venderem vinho. Esses tratados são diferentes de cidade para cidade, no entanto, muitas vezes por razões óbvias: em cidades como Damasco e Bukhara, os muçulmanos se estabeleceram no coração da cidade, lado a lado com cristãos, judeus, budistas, etc. Em muitos lugares, tais como Kufa, Fustat (posteriormente Cairo) e Isfahan, muçulmanos construíram suas próprias cidades, quer como campos militares ou campos estabelecidos fora dos centros urbanos.
Isso significava que seus súditos muçulmanos viveriam aparte deles. De acordo com o entendimento do Imam Ash-Shaf’i das leis que regulamentam os não muçulmanos, só era proibida a venda de vinho (ou qualquer coisa que o Islã houvesse proibido) para os muçulmanos. Se não-muçulmanos vivessem em áreas separadas eles poderiam ter suas próprias procissões , consumir vinho e criar porcos. Estranhamente, a questão da riba não surge muitas vezes em discussões legais muçulmanas. A maioria dos juristas muçulmanos escreveram que os muçulmanos devem evitar transações comerciais com os não-muçulmanos se essas atividades fossem trazê-los para a proximidade com o uso de juros.
Em geral, no entanto, estudiosos muçulmanos tiveram uma abordagem de “não sei, nem quero saber’’ com as práticas condenáveis de não-muçulmanos. Eles queriam minimo envolvimento. O Imam Ash-Shafi’i escreveu, ‘’Não devemos supervisionar as transações entre você e seus correligionários ou outros incrédulos, nem indagar sobre elas, enquanto vocês estiverem satisfeitos.’’ Estudiosos muçulmanos se dividiram em dois campos sobre como juízes muçulmanos deveriam lidar com não-muçulmanos que viessem para suas cortes intentando resolver disputas. Isto não era uma ocorrência incomum, como mostram evidencias do século X do Egito e Bagdá. Um campo, mais associado com as escolas shaf’i e hanbali, não reconhecia a validade de leis não-muçulmanas em face da shariah; contratos não-muçulmanos, etc. só seriam reconhecidos na medida em que eles estivessem de acordo com a shariah.
O Imam Shafi’i escreveu para um não muçulmano que veio a uma corte muçulmana que eles seriam tratados de acordo com ‘’nossa lei’’. De acordo com ele, um juiz muçulmano não deveria reconhecer os direitos de propriedade de um cristão sobre um porco ou barril de vinho, desde que estes itens são proibidos e sem valor no Islã. O segundo campo, mais associado com as escolas hanafi e maliki, tomou uma abordagem mais subjetiva; porque cristãos e judeus tratavam itens como vinho como propriedade com valor para eles. Muçulmanos deveriam reconhecer seu status de propriedade. Então se um muçulmano destruísse o barril de vinho de um cristão, o muçulmano seria responsável por compensar o cristão pelo dano causado. Mesmo o campo mais rigoroso teve de aceitar a inevitabilidade realista desta abordagem subjetiva. Por exemplo, um muçulmano foi autorizado a se envolver em uma parceria comercial com os não-muçulmanos, mesmo que a riqueza dos não-muçulmanos fosse adquirida com a venda de vinho, porcos ou riba (usura), uma vez que acreditassem (os não-muçulmanos) que isto era permitido para eles mesmos.
Embora o regime para não-muçulmanos lhes permitissem manter os seus próprios tribunais e as suas próprias leis, estados muçulmanos iriam intervir em determinadas circunstâncias. Se houvesse uma disputa entre um muçulmano e um não-muçulmano ou se um não-muçulmano se envolvesse em alguma ameaça à ordem pública, então o caso seria tratado por um tribunal islâmico.
Os estudiosos muçulmanos que elaboraram a shariah permitiram uma acomodação notável para as crenças e práticas de minorias religiosas. Eles fizeram isso porque suas fontes autorizadas, o Alcorão e a Sunnah do Profeta, permitiram que não-muçulmanos mantivessem as suas religiões sob o domínio muçulmano. Em geral, os não-muçulmanos foram autorizados a se envolverem em práticas que os muçulmanos consideravam condenáveis desde de que: 1) esta prática ou crença fosse realmente parte de sua religião; e 2) não chegasse a contrariar a sua própria religião. Por exemplo, os cristãos tinham de ser permitidos beber vinho porque isso formava uma parte crucial do seu serviço da igreja. Mas nem os cristãos nem judeus poderiam envolver-se em fornicação e adultério, uma vez que tais atos foram proibidos em suas religiões. Assim, o profeta ordenou que judeus em Medina fossem executados por zina (adultério), não com base na lei islâmica, mas sim com base na torá.12 Roubo e assassinato não deveriam ser permitidos entre não-muçulmanos porque eles eram proibidos em todas as leis que muçulmanos conheciam.
Esta noção de crimes condenados por todas as religiões beira o noção de um errado universal. Algumas escolas do pensamento muçulmano, como os mu’tazila, afirmaram que havia certo e errado numa moral universal que era cognoscível pela razão humana- por exemplo, o assassinato. Alguns dos primeiros sunitas consideraram certo e errado como sendo óbvio para a mente humana, mas o que viria se tornar a maior escola da teologia do islamismo sunita, a escola ash’ari, considerou que o certo e o errado não eram características inerentes a um ato, mas em vez eram determinados unicamente por Deus. Então, o assassinato não era universalmente errado em si, e sim apenas errado na medida em que Deus proibiu-o em todas as leis que Ele revelou. Estudiosos ash’ari reconheceram que os seres humanos, como espécie, compartilhavam certas reações ou características. Por exemplo, rosas cheiram bem para nós e nós tendemos a amar a nossa família imediata. Mas estes não são fatos morais mais do que um cão gostar de ossos é.
O que isto implica para a negociação dos muçulmanos com as minorias religiosas foi que não havia nenhum teste moral universal para a aprovação ou desaprovação de suas práticas. Como veremos, havia uma noção mínima de direitos humanos que não pode ser violada, mas em geral a shariah permitiu práticas religiosas se elas fossem permitidas pela religião em questão, mesmo que horrorizasse as sensibilidades muçulmanas.
O que tem sido invocado no Ocidente como uma arquetípica prática religiosa ‘bárbara’ é a queima de viúvas entre os hindus. Conhecida desde os tempos coloniais britânicas como sati (tecnicamente, o termo refere-se à própria viúva, uma vez que palavra significa “mulher virtuosa”. As palavras mais comuns para a prática incluem sahagamana, ‘indo junto’). Desde que o exército de Alexandre, o Grande encontrou o costume na Índia, o sati tem fascinado e horrorizado pela primeira vez os gregos e, em seguida, os cristãos europeus. Foi regularmente sensacionalizado por viajantes europeus para a Índia da década de 1500 em diante até que os britânicos finalmente proibiram o costume em 1829, em parte devido aos esforços de organizações cristãs de sensibilização para sati no Grã-Bretanha.13 No famoso caso da Suprema Corte dos Estados Unidos Reynolds v . Estados Unidos (1878), que estabeleceu a regra de que, enquanto o governo não pode restringir a crença religiosa, ele pode restringir ações “, uma esposa [que] acredita religiosamente que era seu dever para queimar-se sobre a pira funerária de seu marido morto” era o exemplo clássico de por que o governo deve ser autorizado a intervir na prática religiosa.
Tem havido muito debate sobre se o sati tem raízes autênticas no hinduísmo, mas este não é o assunto em mãos. A suposição padrão sobre o sati é que a viúva escolhe incinerar-se após a morte de seu marido, quer ao seu lado na mesma pira ou separadamente. No entanto, é também claro a partir de descrições dos viajantes europeus que, por vezes, as viúvas foram queimadas contra a sua vontade ou impedidas de mudar de ideia no último momento. Autoridades britânicas que testemunharam casos de sati desde o início da administração britânica na Índia no fim dos anos 1700, por vezes, observavam que a viúva parecia estar sedada ou intoxicada de modo a não protestar. Após a primeira tentativa para regular o sati para ter certeza que só foi feito voluntariamente, os britânicos finalmente concluíram que a única forma de evitar abusos era proibir o ato completamente.
Isto atende bem com as perspectivas morais dos oficiais britânicos. O governador que proibiu o sati descreveu-o como um “rito desumano e ímpio“, que era “revoltante aos sentimentos da razão humana” e não podia ser tolerado pelo ” governo de uma nação civilizada.” A repulsa moral britânica com o sati não era simplesmente porque que poderia ser involuntário; Ao contrário de sociedades como a Roma antiga ou o Japão, o suicídio era uma afronta moral e tabu social na Europa Ocidental. Desde o século XIII, que tinha sido um crime grave na Inglaterra. Aqueles que se matavam haviam cometido “um dos crimes mais hediondos dos quais se pode ser culpado” e foram negados enterros normais. Até 1823, alguém na Grã-Bretanha quem se suicidasse perdia todos os seus bens para a coroa.14
Mas os estados muçulmanos que governaram partes ou a maior parte da Índia desde o século XIII nunca tinham proibido o sati. Embora eu não tenha encontrado qualquer estudioso muçulmano discutindo a questão jurídica do sati, sabemos do famoso alim marroquino e viajante Ibn Battuta, que passou anos em Deli nos 1330 de que a Delhi do sultão Muhammad ibn Tughluq (d. 1351) permitia que viúvas fizessem o sati, se elas primeiro procurassem a permissão do governador muçulmano. O próprio Ibn Battuta testemunhou três instâncias de sati, descrevendo como as viúvas eram participantes ativas em cerimônias extensas e elaboradas. Embora ele observe que as viúvas hindus viviam “vidas miseráveis” e enfrentavam censura social, se não realizassem o sati, ele confirma que não era requerido.
Nós temos muito mais informações sobre a política dos muçulmanos no Império Mughal, que governaram o norte da Índia a partir de por volta de 1526 até (oficialmente) 1857. Desde o tempo de Akbar, o Grande (1556-1605) através do imperador Aurangzeb (1658- 1707), sabemos por quem viajou pela Índia e de historiadores mughais que o sati foi permitido com algumas restrições.
Em primeiro lugar, como dos sultões de Delhi, a viúva tinha que receber permissão de tanto do chefe polícia da (fawjdar), do governador da província ou do próprio imperador, dependendo da localização. De acordo com seu biógrafo muito admirado autorizado, Akbar garantiu que em cada província e distrito houvessem funcionários encarregados de garantir que os rituais do sati fossem puramente voluntarios. Um viajante italiano, Pietra della Valle (d. 1652), afirma que as viúvas ou famílias que quisessem realizar o sati tinham que pagar uma licença.17 Outro viajante descreveu como esta taxa considerável, que ele percebeu como suborno, realmente resultou na diminuição do número de famílias que buscavam praticar o sati.
Em segundo lugar, as autoridades mughais foram instruídos pelos imperadores para tentar dissuadir a viúva de seu curso de ação. William Hawkins (d. por volta de 1613), um agente da Companhia Britânica das Índias Orientais que visitou a corte do imperador Jahangir (r. 1605-1627), observou que ele testemunhou muitas vezes o próprio imperador oferecendo a viúvas todos os tipos de apoio financeiro e social em um esforço para dissuadi-la. Mas se ela insistisse no sati, Hawkins escreveu, em seguida, o imperador “dava a sua licença para que ela fosse levada ao fogo, onde ela queimaria viva com o marido morto.” 19 O funcionário da empresa holandesa East India Francisco Pelsaert (d. 1630 ) viu um governador local, que “incitou muitos argumentos sólidos para mostrar que o que ela se propôs a fazer era um pecado, e apenas a inspiração do diabo para garantir sua morte voluntária; e, porque ela era uma mulher jovem e bonita de cerca de 18 anos de idade, ele pressionou-a fortemente para dissuadi-la, se possível, de seu compromisso, e até mesmo ofereceu-lhe 500 rúpias anuais, enquanto ela vivesse. “Ela recusou seus pedidos, no entanto , e quando ele finalmente concedeu a permissão dela, ela se retirou alegremente.20
O médico francês François Bernier (d. 1688), que realmente trabalhou por um tempo a serviço de altos funcionários mughais, escreve que as viúvas necessitavam da permissão do governador da província “, e ele nunca concedia até que ele se certificasse de que ela não iria ser desviada de sua finalidade:. para alcançar este fim desejável, o governador razoava com a viúva e a fazia atraentes promessas … “Se os seus esforços iniciais falhassem, Bernier recorda que o governador iria em seguida, enviar a viúva com suas próprias esposas para que elas pudessem tentar convencê-la. Uma vez Bernier mesmo foi enviado para pleitear com uma viúva de um amigo. Ele pediu a ela para pensar em seus filhos pequenos e lhe disse que o governador havia prometido seus dois filhos pensões vitalícias se ela mudasse de idéia sobre o sati. Apenas por pensar sobre o que aconteceria com suas crianças órfãs, se ela se matasse, ele foi capaz de convencê-la a desistir de sua missão.21
Os governantes mughais também introduziram uma série de restrições sobre o sati. Em 1587, o imperador Akbar emitiu um decreto de que os hindus não poderiam proibir viúvas de se casar novamente, e um novo marido deveria ser encontrado por uma viúva imediatamente para evitar que outras pessoas insistissem que ela fosse queimada, e que uma viúva que fosse muito jovem para ter realmente consumado seu casamento com o marido não poderia ser queimado. Em 1591 Akbar emitiu outro decreto proibindo qualquer viúva hindu de ser queimado contra sua vontade.22
Não temos qualquer discussão explícita de por que os governantes mughais permitiam que o sati ocorresse, mas os seus motivos são facilmente deduzidos. Um deles era o princípio da shariah sobre liberdade religiosa dos dhimmis. O édito de 1591 de Akbar proibia o sati forçado, mas também instruiu governadores que, “se uma mulher hindu desejasse ser queimado com o marido, eles não devem impedi-la.” Haviam também preocupações politicas e politicamente pragmáticas. Ao contrário de áreas como a Síria ou o Iraque, onde os muçulmanos formavam a grande maioria da população até 1000 CE, os muçulmanos eram e sempre foram uma minoria no Sul da Ásia (um senso de 1875 realizado pelos britânicos contavam os muçulmanos como cerca de 25% da população) . Bernier, que tinha vasta experiência com a administração mughal, explica que Jahangir permitiu práticas como o sati “que não desejando, ou não ousando, perturbar [os hindus] no livre exercício de sua religião.” 23 Um visitante otomano na Índia durante o reinado do pai de Akbar, Humayun (d. 1556), observou como havia uma crença generalizada de que, se os muçulmanos interferissem no sati, então. o destino decretaria o fim de seu reinado.24 Bernier, que era um crítico obsessivo da classe clerical hindu brâmane, a quem ele via como corrupta e gananciosa, explica que o seu poder significava que não se poderia encontrar nenhum funcionário mughal “que não temesse as consequências de contribuir para a preservação de uma mulher dedicada à queimar na pira, ou quem iria se aventurar para proporcionar um asilo para alguém que escapasse das garras dos brâmanes. “25
Observadores europeus repetidamente observaram que o sati ocorreu muito menos frequentemente sob o domínio mughal, que anteriormente, embora ainda não se saiba como eles sabiam disso.26 Há um debate entre os estudiosos modernos sobre se o Estado mughal sempre categoricamente proibiu o sati. Um viajante italiano informou que Aurangzeb proibiu o sati em 1663, mas a maioria dos estudiosos modernos negam que isso ocorreu ou explicam que só aplicado a satis forçados. Embora a prática continuasse mesmo depois de 1663, numerosos viajantes britânicos observaram que quase tinha diminuído completamente na Índia até o final do reinado de Aurangzeb.27
Políticas muçulmanas no sentido do sati nos dizem muito sobre a perspectiva da shariah em práticas condenáveis e os seus limites. Cada descrição que temos dos satis feitos sob domínio muçulmano retratam a viúva como alerta e interagindo, então não há nenhuma evidência de que elas fossem sedadas. Ao contrário, os governantes muçulmanos requeriam encontros face-a-face com as viúvas para ouvir os seus pedidos. Se uma viúva queria queimar-se e não seria convencida do contrário, os governantes muçulmanos adeririam aos seus desejos.
Que temos provas de que os mughais proibiram o sati forçado também é instrutivo. O que provavelmente está por trás desta proibição é a noção huquq al-‘ibad (literalmente, ‘os direitos dos servos de Deus “, ou seja, seres humanos), que foi, essencialmente, um conceito de direitos humanos desenvolvidos por juristas muçulmanos quase um milênio antes do primeiro vislumbre desta noção no pensamento ocidental. Estes eram os direitos à integridade física (em outras palavras, contra a morte injusta ou lesão), propriedade e dignidade para seres humanos simplesmente em virtude de serem seres humanos, independentemente da sua religião.28 Enquanto a shariah pudesse aceitar um não-muçulmano se matar por motivos religiosos, matar um outro não-muçulmano contra a sua vontade era uma transgressão do direito humano da pessoa e não podia ser tolerada.
Se há qualquer tabu moral universal na sociedade humana, este é o contra incesto entre familiares imediatos.29 Bem, quase universal. Algumas famílias reais como os havaianos e os egípcios antigos, praticavam casamentos entre irmãos e irmãs (e é claro, os Targaryens também). E isso era permissível, se não amplamente praticado, na religião zoroastrista do antigo Irã. Este tipo de casamento, chamado de xvetodah no persa pahlevi, inclui casamentos entre irmãos e irmãs, pais e filhas e mães com filhos, e servem para fazer a procriação possível em circunstancias incomuns. Isso continuo permissível no zoroastrianismo até os anos 1400 (depois, foi limitado para casamentos entre primos).30
Os casamentos xvetodah eram provavelmente muito raros, mas deixaram uma forte impressão em estudiosos muçulmanos. Ele provou ser um caso extremo para testar os seus princípios da lei que regem as minorias não-muçulmanas. Uma escola de pensamento (representado por uma opinião de Imam Ahmad Ibn Hanbal) considerou que isso não deve ser permitido para zoroastristas, citando uma decisão de 643 do califa Omar de que “todos aqueles casados com mahrams (pessoas cujo casamento é proíbido) entre os zoroastristas devem ser separados.” 31 A opinião da maioria, no entanto, permitiu o casamento xvetodah enquanto zoroastristas não viessem para cortes muçulmanas para este tipo de casamento a ser julgado (esta foi a opinião das escolas Shafi’i, Hanafi e Hanbali). Aqueles que ocupassem esta posição responderam à evidência da decisão de Omar, observando que não era bem conhecido o suficiente para ser vinculativo e que rompia com comandos do Profeta em alguns aspectos (por exemplo, descreveia Omar recusando-se a aceitar a jizya de zoroastristas quando o Profeta tinha feito isso). Por outro lado, o Profeta tinha enviado ‘Ala’ ibn al-Hadrami para chegar a acordos com as comunidades zoroastristas no nordeste da Arábia e afirmaram sua prática de casamento lá.32
Estudiosos muçulmanos que não permitiram o casamento incestuoso entre os zoroastristas desafiaram aqueles que o fizeram, perguntando se eles iriam em seguida, permitir a sodomia e fornicação entre os não-muçulmanos também. Não, seus adversários responderam, já que a sodomia e fornicação eram falhas generalizadas na sociedade humana, enquanto o incesto da família imediata era uma prática rara que só é permitida na lei zoroastriana. Mais importante, e crucialmente para a nossa discussão nos EUA, a maioria respondeu que a shariah tinha afirmado o direito dos não-muçulmanos para continuar a engajar-se em incredulidade (kufr), o que era muito pior do que um pecado de que incesto.33
Então, onde é que isto nos deixa em termos de como muçulmanos aqui devem orientar-se sobre a questão do casamento gay? O Alcorão e a Sunnah do Profeta permitem que não-muçulmanos que vivam sob regime islâmico continuem praticando suas religiões. Os acordos que os primeiros muçulmanos fizeram com seus súditos não-muçulmanos, muitas vezes lhes permitiu continuar práticas como criação de porcos e fazer vinho e juristas muçulmanos logo estenderam esse guarda-chuva de tolerância a outras práticas condenáveis no Islã, como riba (juros) e até mesmo para casamentos incestuosos entre familiares imediatos. Embora isso não sente-se facilmente com estudiosos muçulmanos, eles tiveram de reconhecer a peça mais poderosa de provas ante deles: Deus tinha claramente permitido muçulmanos a tolerarem e até mesmo protegerem os não-muçulmanos que vivem sob o seu domínio, comunidades que haviam rejeitado o Islã geração após geração mesmo depois de gerações de estudiosos muçulmanos tendo fornecido-lhes com explicações claras sobre os princípios do Islã. Então Deus e Seu profeta tinha permitido que o kufr continuasse sob a égide do domínio muçulmano, e, a partir da perspectiva de juristas muçulmanos, não havia nada mais vil do que negar Deus e Seu Mensageiro.
Alguns estudiosos muçulmanos criticaram meu artigo anterior, porque, afirmaram que o liwat (sodomia) não é análogo ao sati ou casamento xvetodah. Os dois últimos foram especificamente permitido pelas religiões que a shariah tolera. O liwat, entretanto, não foi permitido por nenhuma religião revelada. Mas essa objeção não se sustenta, uma vez que nem tem qualquer religião revelada considerada a negação dos verdadeiros mensageiros de Deus como permitida (pelo menos não do ponto de vista muçulmano de revelações divinas). No entanto, a shariah sempre permitiu e efetivamente foi conivente com isto.
Ordenar o bem e proibir o mal é um dever para os muçulmanos em geral, mas não sem limites ou apreciação por contexto. Não há dúvidas de que o liwat (sodomia) é um grave pecado no Islã e, portanto, claramente uma erro a ser condenado. Mas isso não dita a política muçulmana ou comportamento para com aqueles que possam praticá-lo. Como o estudioso mughal que se extraviou em hábitos hedonistas disse enquanto repreendia a policia do mercado que tinha subido por cima do muro de sua casa para interromper sua festa, “Eu posso ter cometido um pecado, mas vocês cometeram três”: tinham procurado o que ele estava fazendo em sua casa (tajassus), subido sobre o muro e entrado em sua casa, tudo sem permissão. A shariah, de fato proíbe desnecessariamente descobrir erros na esfera privada, e a polícia deixou a casa do estudioso envergonhada (o estudioso posteriormente reformou-se, al-hamdulillah).
Só por que se reconhece que existem espaços protegidos onde atividades repreensíveis acontecem, isso não significa que se esta aprovando tais atos. E só por que a shariah permite que não-muçulmanos se envolvam em práticas que o Islã, e muitas outros sistemas morais condenam como repreensíveis, isto não significa que a shariah os aprova. A afirmação da livre escolha de um partido para se envolver em um erro não implica na aprovação do mesmo. Isto apenas reconhece algo que o Alcorão, a Sunnah do Profeta e estudiosos muçulmanos desde o os primeiros tempos tem afirmado: que sociedades humanas são muito diversas para que nós forcemos mesmo os mais bem guiados sistemas de lei ou moralidade em todos. O máximo que alguém pode fazer é frear os excessos, e prevenir indivíduos de privarem outros de direitos básicos que eles desfrutam apesar de suas identidades confessionais.
Fonte: https://almadinainstitute.org/blog/incest-widow-burning-how-much-can-muslims-stomach/
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