Sobre a validade de todas as religiões no pensamento de ibn Al-’Arabi e Emir ‘Abd al-Qadir: uma carta para ‘Abd al-Matin
©Nuh Ha Mim Keller 1996
Querido ‘Abd al-Matin
Em nome de Allah, o Clemente, o Misericordioso
as-Salaamu ‘alaykum wa rahmatu Llahi wa barakatuh.
Obrigado por sua pergunta à respeito da noção da “validade universal” de todas as religiões e sua relação com o Sufismo de Sheikh Muhyiddin Ibn Arabi e Emir Abdul Qadir al-Jaza’iri. Eu não tenho todos os livros em inglês que você mencionou e que atribuem essa noção a eles, mas creio que algum tipo de resposta pode ser dada com base nos livros que vi em inglês, e no Islam Tradicional da maneira que aprendi de meus sheikhs em fiqh e Sufismo.
Tentarei tocar em algumas considerações gerais sobre a universalidade da mensagem dos profetas (a paz esteja sobre eles), a finalidade do Islam, a validade das religiões não islâmicas, e as posições de Ibn Arabi e Emir Abdul Qadir versus a de alguns de seus intérpretes modernos. Alguns dos materiais inclusos foram esboçados de notas de Tariqa, e alguns de uma carta do ano passado para Cristãos na Ucrânia.
Allah enviou à humanidade e aos jinns (gênios) Seus mensageiros proféticos (a paz esteja sobre eles), que eram confiáveis, inteligentes, verdadeiros e que transmitiram suas mensagens de forma completa.
Ele os protegeu do pecado e de todo traço físico impróprio para eles, embora, como seres humanos,eles comeram, beberam, dormiram e casaram. Eles foram os melhores de todos os seres criados; e o mais elevado deles foi aquele que Allah escolheu como selo final da profecia, nosso profeta Muhammad (Allah o abençoe e dê paz).
Embora a Lei Sagrada do Profeta (Allah o abençoe e dê paz) tenha suplantado todas as leis religiosas válidas anteriores, era idêntica a elas em crença, tal como tawhid ou “unicidade de Deus”, e assim por diante; sendo este um fato que o Profeta (Allah o abençoe e dê paz) salientou, dizendo: “Que nenhum de vocês diga ‘eu sou superior a (o profeta) Jonas’” (Bukhari, 4.193: 3412), pois a iluminação do tawhid de Jonas (que a paz esteja sobre ele)–sob a escuridão da tempestade, do mar e do estômago do peixe– não foi menos importante que a iluminação do tawhid do Profeta no zênite de seu sucesso como líder espiritual de toda a Arábia (Allah o abençoe e dê paz). A luz das mensagens deles era uma, no sentido de que o Alcorão diz: “Nós não diferenciamos entre nenhum de Seus mensageiros” (2:285), mostrando assim que as religiões anteriores eram as mesmas em crença, e, embora diferentes em provisões de obras, e agora ab-rogadas pela revelação final, foram válidas em seus próprios tempos.
Quanto aos dias de hoje, apenas o Islam é válido ou aceitável, agora que Allah o enviou para todos os homens, pois o Profeta (Allah o abençoe e dê paz) disse:
“Por Aquele em cujas mãos está a alma de Muhammad, qualquer pessoa desta Comunidade, qualquer judeu ou cristão que ouve a meu respeito e morre sem crer naquilo com o que eu fui enviado será um habitante do inferno.” (al-Baghawi: sharh al-sunna 1.104).
Esse hadith foi também relatado por Muslim em seu Sahih, por ‘Abd al-Razzaq em seu Musannaf, e outros. É uma evidência rigorosamente autenticada (sahih) que clarifica a palavra de Allah na Surata Al ‘Imram:
“Quem procurar uma religião que não seja o Islam, nunca terá isso aceito, e será daqueles que sem dúvida falharam na próxima vida.” (Alcorão 3:85)
Isso está em muitos outros versos e hadiths. Que o Islam é a única religião que permanece válida ou aceitável é necessariamente fato conhecido como parte de nossa religião; crer em algo diferente disso é descrença (kufr) e coloca a pessoa fora do Islam, como nota o Imam Nawawi:
“Alguém que não acredita que, quem seguir outra religião além do Islam é um descrente (como os Cristãos), duvida que essa pessoa seja uma descrente, ou considera seu secto como válido, é ele mesmo um descrente (kafir), mesmo se ele manifesta o Islam e crê nele” (Rawda al-talibin, 10.70)
Essa não é a posição apenas da escola de jurisprudência Shafi’i, representada por Nawawi, mas é também a posição registrada de todas as outras três escolas Sunni: Hanafi (Ibn ‘Abidin: Radd al-muhtar 3.287), Maliki (al-Dardir: al-Sharh al-saghir, 4.435), e Hanbali (al-Bahuti: Kashshaf al-qina’, 6.170). Aqueles que conhecem a literatura de fiqh notarão que cada um destes trabalhos corresponde à fatwa mais importante nestas escolas. Os sábios da Lei Sagrada são unânimes sobre a ab-rogação das outras religiões pelo Islam, porque essa é a posição do próprio Islam. Só resta ao muçulmano sincero se submeter, e, em conexão a isso, Ibn Arabi disse:
Cuidado para que você nunca diga algo que não se conforme com a pura Lei Sagrada. Saiba que o mais alto estágio das pessoas perfeitas (rijal) é a Lei Sagrada de Muhammad (Allah o abençoe e dê paz). E saiba que o esotérico que contradiz o exotérico é uma fraude” (al-Burahni: al-Hall al-sadid, 32)
2. Ibn Arabi e as Religiões Contemporâneas Não Islâmicas
Quanto à ab-rogação de todas as religiões pelo Islam, muitos de nós conhecemos muçulmanos que acreditam no oposto do Islam ortodoxo, talvez por conta [de estarem] em um ambiente literário e intelectual no qual toda e qualquer noção sobre este mundo e o próximo possa ser expressada, no qual a novidade é muito estimada e a tradição tem pouca autoridade. Muitos até buscaram apoio para sua preferência emotiva pela validade de outras religiões nos livros de Sufis famosos, que estão longe de terem tais crenças, como Ibn Arabi ou Abdul Qadir al-Jaza’iri. Em um trabalho recente, por exemplo, intitulado “Mundos Imaginais: ‘Ibn Arabi e o Problema da Diversidade Religiosa”, o professor William Chittick diz:
“O Sheikh [Muhyiddin Ibn Arabi] algumas vezes critica distorções específicas ou mal entendidos no veio corânico, mas ele não chega à conclusão que muitos muçulmanos chegaram–que a vinda do Islam ab-rogou (naskh) as religiões reveladas anteriormente. Ao invés disso, ele diz, o Islam é como o Sol e as outras religiões como as estrelas. Assim como as estrelas permanecem quando o Sol nasce, também as outras religiões permanecem válidas quando o Islam aparece. Pode-se acrescentar um ponto que talvez Ibn Arabi também aceite: o que aparece como um Sol de um ponto de vista pode ser visto como uma estrela de outro ponto de vista. À respeito da ab-rogação, o Sheikh escreve:
“Todas as religiões reveladas (shara’i) são luzes. Dentre elas, a religião revelada de Muhammad é como a luz do Sol junto às luzes das estrelas. Quando o Sol aparece, as luzes das estrelas se ocultam, e são incluídas na luz do Sol. A ocultação delas é como a ab-rogação das outras religiões reveladas que têm lugar através da religião revelada de Muhammad. Ainda assim, elas de fato existem, assim como a existência da luz das estrelas é realizada. Isso explica porque a nós é requerido, em nossa religião inclusiva, ter fé na verdade de todos os mensageiros e de todas as religiões reveladas. Elas não são consideradas nulas (batil) por ab-rogação–essa é a opinião do ignorante. ([al-Futuhat al-Makkiya,] III 153.12[16])
“Se os pronunciamentos do Sheikh sobre as outras religiões às vezes falha em reconhecer sua validade no tempo dele, uma razão pode ser que, como a maioria dos outros muçulmanos vivendo em terras islâmicas ocidentais, ele tenha tido pouco contato real com cristãos ou judeus em seu ambiente, para não falar dos seguidores de religiões mais longínquas. Ele provavelmente nunca encontrou um representante santo de nenhuma dessas tradições, e quase certamente nunca leu nada sobre estas duas religiões, exceto o que estava escrito em fontes islâmicas. Desta forma não há razão para que ele tivesse aceitado a validade destas religiões exceto em princípio. Mas esta é uma importante qualificação. Manter a excelência particular do Alcorão e a superioridade de Muhammad sobre todos os outros profetas não é o mesmo que negar a validade universal da revelação ou a necessidade de revelações que aparecem em expressões particulares.”
(Religious Diversity, 12526)
A declaração de Chittick acima, de que Ibn Arabi “não chega à conclusão que muitos muçulmanos chegaram–que a vinda do Islam ab-rogou (naskh) as religiões reveladas anteriormente” é falsa, e poderia ter sido corrigida por uma tradução completa da passagem que ele citou da Futuhat:
“As leis religiosas (shara’i) todas são luzes, e a lei de Muhammad (Allah o abençoe e dê paz), dentre elas, é como a luz do Sol junto às luzes das estrelas. Se o Sol aparece, as luzes das estrelas não são mais vistas, e são absorvidas na luz do Sol. O desaparecimento de suas luzes se assemelha ao exemplo do que, das leis religiosas, foi ab-rogado (nusikha) por sua lei (Allah o abençoe e dê paz), apesar de ainda existirem, assim como as luzes das estrelas ainda existem. Por isso a nós é requerido, por nossa lei universal, acreditar em em todos os mensageiros proféticos (rusul), que todas as suas leis são verdade, e que não se tornaram falsidade ao ser ab-rogadas: esta é a imaginação do ignorante: Assim, todos os caminhos retornam para o caminho do Profeta (Allah o abençoe e dê paz): se os mensageiros proféticos estivessem vivo no tempo dele, o seguiriam, assim como suas leis religiosas seguiram a lei dele.
Pois a ele foi dada a Compreensão da Palavra (Jawami’ al-Kalim), e dado [o verso corânico] Allah lhe dará uma vitória invencível (Alcorão, 48:3). O invencível [al-‘aziz, que também significa raro, querido, precioso, inatingível] é aquele que é buscado, mas não pode ser alcançado. Quando os mensageiros proféticos tentaram alcançá-lo, ele provou-se impossível a eles de ser alcançado, por conta do fato de ele [ser favorecido sobre eles por] ter sido enviado para todo o mundo (bi’thatihi al-‘amma), de Allah ter dado a ele tanto a Compreensão da Palavra (jawami a-Kalim) como a suprema posição de possuir a Estação Louvável (al-Maqam al-Mahmud) no próximo mundo, e pelo fato de Allah ter feito sua nação (Umma) ‘a melhor nação que já foi trazida para as pessoas’ (Alcorão 3:110). A nação de cada mensageiro é medida com a estação de seu profeta, então percebam isso” (al-Futuhat al-Makkiyya, III 153.1220)
A passagem, quando lida cuidadosamente, é meramente uma afirmação de que os mensageiros de Allah (a paz esteja sobre eles) eram verdadeiros, e tudo o que eles trouxeram era verdade, algo em que todo muçulmano acredita. Ela sugere ainda que tudo o que as leis (shara’i significa nada além disso) deles continham não apenas foi ab-rogado, mas doravante está implicitamente contido na nova revelação, no sentido de que “suas leis religiosas seguiram a lei dele.” Um exemplo familiar citado pelos ulemás (sábios da lei) é a lei de talião, “olho por olho, dente por dente”, que era obrigatória na lei religiosa de Moisés (a paz esteja sobre ele), e foi subsequentemente proibida pela lei religiosa de Jesus (a paz esteja sobre ele), na qual “dar a outra face” era obrigatório. E, finalmente, ambas foram suplantadas pela lei de Muhammad (Allah o abençoe e dê paz), que permite às vítimas aplicarem a retaliação (qisas) por danos físicos que forem puramente intencionais, mas na qual é religiosamente superior não retaliar, mas perdoar. Esta é a absorção da luz das estrelas na do Sol, assim como “das leis religiosas, foi ab-rogado (nusikha) por sua lei (Allah o abençoe e dê paz), apesar de ainda existirem, assim como as luzes das estrelas ainda existem.” Este é o sentido no qual Ibn al-’Arabi interpreta o termo “Abrangência da Palavra” (Jawami’ al-Kalim) aqui.
O que a passagem não diz é que as religiões não islâmicas são válidas agora que o Profeta (Allah o abençoe e dê paz) foi enviado com o Islam. A omissão do Professor Chittick da segunda parte da passagem (o que é claramente pontuado no final pelas palavras “então, saibam disso”) é bastante intrigante, pois ela é altamente material para o tópico, e, em espírito e letra (por causa do “ter sido enviado para todo o mundo” (bi’thatihi al-’amma)) claramente contradiz a sugestão do professor de que Ibn al-’Arabi não acredita que a vinda do Islam ab-rogou (naskh) as religiões previamente reveladas. A falsidade desta noção é clara para qualquer um que lê a segunda parte e sabe o que a expressão bi’thatihi al-’amma significa, por tê-la lido em diferentes contextos de outros trabalhos das ciências islâmicas tradicionais que formaram a educação de Ibn al-’Arabi.
De fato, a pessoa procura em vão nos trabalhos de Ibn al-’Arabi a crença da validade das atuais religiões não islâmicas, pois isso é kufr (descrença), como o Imam Nawawi e outros Imams mencionados acima unanimemente concordam. O Islam Tradicional certamente não aceita a sugestão de que:
“É verdade que muitos muçulmanos acreditam que a universalidade da guia pertence apenas aos tempos pré corânicos, mas outros discordam; não existe aqui uma interpretação ‘ortodoxa’ que os muçulmanos devem aceitar.” (Religious Diversity, 124)
Ortodoxia existe, é unanimemente aceita por todos os eruditos muçulmanos, e nós transmitimos as palavras de Nawawi acima de que acreditar em algo diferente disso é descrença. Sobre o “outros discordam”, é verdade, mas é uma noção que esperou catorze séculos de conhecimento islâmico até o presente século para ser promovida inicialmente no Cairo na década de 30 pelo francês convertido ao Islam Rene Guenon, depois por seu discípulo Frithjof Schuon, e por escritores que o seguiram. Quem mais disse isso antes? E, se ninguém disse, e todos os outros consideram kufr, em qual base isso deve ser aceito?
3. Emir ‘Abd al-Qadir e o Cristianismo
Meu ponto aqui é de que: uma coisa seria se eles tivessem dito isso sob seus próprios auspícios, mas projetar suas visões em grandes muçulmanos do passado é um erro que deve ser corrigido. Outro exemplo é encontrado em “Islam and the Destiny of Man”, no qual Charles le Gai Eaton (as reticências são dele) diz:
“De acordo com o grande mujahid (guerreiro no caminho de Allah), o Emir Abdul Qadir, nosso Deus e o Deus de todas as comunidades opostas à nossa são, em verdade, Um Deus … apesar da variedade de Suas manifestações … Ele manifestou a Si Mesmo ao povo de Muhammad além de todas as formas, enquanto manifestou a Si Mesmo em todas as formas … Para os cristãos Ele manifestou a Si Mesmo na forma de Cristo … e para os adoradores de qualquer forma que possa haver … na própria forma desta coisa; pois, nenhum adorador de um objeto finito o adora por ele mesmo. O que ele adora é a epifania na forma dos atributos do verdadeiro Deus … Ainda assim, aquilo que todos os adoradores adoram é um e o mesmo. O erro deles consiste apenas no ato de determinar isso de maneira limitativa.
[Citado do Mawqif 236 do Mawaqif de Abdul-Qadir (tradução francesa por M. Chodkiewicz, publicada pela Editions du Seuil, Paris, 1982).]
Abdul Qadir lutou com os cristãos que invadiram sua terra, Argélia, porque ele era muçulmano. Exilado em Damasco, ele protegeu os cristãos contra um massacre, colocando-os em sua própria casa, porque ele compreendeu. Aqueles que o pretendessem desafiar ou acusá-lo de heresia teriam que estar preparados para enfrentar sua espada e aceitar a morte por sua lâmina, pois homens pequenos arriscam seus pescoços quando desafiam os grandes” (Islam and the Destiny of Man, 53)
A passagem citada do Mawaqif é interessante, não apenas porque as tesouras parecem ter sido mais duras do que a espada no trabalho em cima dela, mas porque a referência sugere que ela foi traduzida do árabe para o francês e então para o inglês, algo que sugere uma jornada distante das palavras originais do autor. Eu não sei quem organizou o original francês, mas a passagem acima não foi tirada do Mawqif 236 do Mawaqif em árabe que eu tenho, que foi impresso em 1329/1911 em Damasco à partir da cópia do Sheikh `Abd al-Razzaq al-Bitar, um manuscrito que foi lido pelo próprio Abd al-Qadir e possui ajustes feitos de seu próprio punho nas margens. A ideia, entretanto, é familiar. É mencionada em vários lugares no Mawaqif e também no Capítulo do Hajj, próximo do fim do primeiro volume do Futuhat de Ibn Arabi, quem Abdul Qadir segue de perto. Ibn Arabi sente que, mesmo que Deus deposite os idólatras no inferno eternamente (se um admoestador profético não tiver sido enviado a eles, pois de outra maneira eles não são responsáveis por realizar ou se afastar de nada), a adoração deles não é totalmente despropositada, e que todos, seja cristão, judeu, adorador do fogo ou idólatra, considera aquilo que eles adoram como sendo o Divino (no árabe al-llah, “a Deidade), e não adoram aquilo que adoram, exceto por essa razão, em cujo sentido “seu Senhor ordenou que vocês não devem adorar outro senão Ele” (Alcorão, 17:23). “Ordenou”, segundo Abdul Qadir, significa “causou”; a saber, que Allah, em virtude deste motivo, deste nome (a-llah), e da prerrogativa de Seu “ciúme”, frequentemente responde às súplicas desses adoradores e supre suas necessidades; embora, como dito antes, a adoração deles não é válida, porque ela não se conforma com o tawhid absoluto trazido pelos profetas, a paz esteja sobre eles, que ensinaram que Allah é absoluto em manifestação, e não é limitado por nenhuma forma criada.
Não importa qual seja a religião, então, para o Emir Abdul Qadir, Allah não pode ser “adorado” no sentido restritivo do ímpeto básico do adorador para o Divino. Mas isso não significa que a adoração é aceitável ou válida sob os olhos de Allah. Quem quer que confunda essas duas coisas, como a passagem acima faz, causa violência a Abdul Qadir. Ele diz:
“Uma vez que as manifestações d’Aquele a Quem a adoração se dirige por sua própria natureza são múltiplas, também o são as seitas e crenças. O objetivo da adoração é exaltar com reverência, e a modéstia e humildade de cada adorador são unicamente transmitidas a alguém capaz de causar dano ou benefício, dar ou negar, conferir o sustento, rebaixar ou elevar, e esses atributos não são, de fato, de ninguém exceto apenas um, que é Allah o Mais Alto, e Ele é absolutamente além da percepção (ghayb mutlaq).
Assim, todo aquele que adora uma forma, seja ela o sol, uma estrela, o fogo, a luz, a escuridão, a natureza, um ídolo, um fantasma, um jinn ou outra qualquer, sustenta que a forma por ele adorada é a d’Aquele a Quem a adoração se dirige por sua própria natureza, e atribui àquela forma as qualidades da Divindade (al-Ilah) — as qualidades de beneficiar, prejudicar e assim por diante. Tal pessoa estaria correta, de certa maneira, se apenas ela não tivesse tornado-O finito e condicional, pois nenhum adorador intenciona, ao adorar a forma que adora, nada senão a Realidade Merecedora de adoração, que é Allah o Altíssimo, e isso foi o que Allah decretou (Corão, 17:23) e causou. Porém, eles se provaram ignorantes da manifestação absoluta desta Realidade, imaculada pela condicionalidade ou limitação, e se provaram ignorantes da Realidade em termos de fato, embora eles não a conhecessem em termos gerais, sendo este conhecimento inerentemente possuído” (al-Mawaqif, 1.33:8).
Qual é a consequência de eles se provaram “ignorantes da Realidade em termos de fato?” Isto significa que todo adorador, quer ele associe algo a Allah ou não, é aceitável para Allah? Abdul Qadir responde a esta pergunta em outra seção do Mawaqif, em sua exegese das palavras dos idólatras de Meca citados por Allah na surata al-An’am: “Se Allah não quisesse, nós não teríamos associado nada a Ele, nem nossos pais, e nós não teríamos proibido nada” (Alcorão, 6:148):
“Isto é verdade pretendida como falsidade, isto é:
‘Se Allah quisesse que nós não associássemos outros a Ele, nós não os teríamos associado a Ele; e se Allah não quisesse que nós proibíssemos nada, nós não o teríamos feito, pois nada que nós fazemos acontece exceto que Ele queira’. Isto é verdade; mas a maneira que esta verdade é pretendida como falsidade é que eles afirmam que tudo o que Allah quis para Seus servos é aceito e desejável por Ele. “E isto é uma falsidade, pois Allah Todo Poderoso deseja para Seus servos aquilo que Ele sabe deles pré-eternamente. E aquilo que Ele sabe deles pré- eternamente é o que é acarretado pelo que eles mais verdadeiramente são, aquilo que eles buscam através de sua disposição primal, seja o bem ou o mal, o puro monoteísmo (tawhid) ou a descrença (kufr), pois Sua vontade é sujeita a Seu conhecimento, e Seu conhecimento é sujeito a aquilo que Ele sabe, e aquilo que Ele sabe inclui tanto a pessoa guiada como a perdida, o afirmador do puro monoteísmo (muwahhid) e o associador de outros junto a Ele (mushrik), o desventurado e o salvo, o verdadeiro e o mentiroso. Os seres que Ele, o Mais Elevado, criou, são os sítios da manifestação (madhahir) de Seus nomes, e há aqueles dos Seus nomes que implicam beleza e misericórdia, estes sendo a cota daqueles que são salvos, as ‘Pessoas da Mão Direita’; e há outros deles que implicam rigor e subjugação, estes sendo a cota daqueles que são desventurados, as ‘Pessoas da Mão Esquerda’.
“Assim sendo, Allah querer algo não é sinal do amor e aceitação d’Ele por este algo, pois Ele não aceita descrença por parte de Seus servos (Alcorão, 39:7), embora Ele determinou a descrença de muitos deles. Sua Vontade é apenas um sinal de Seu conhecimento eterno sem início daquilo que Ele iria determinar pela eternidade sem fim. Se tudo que Ele determinasse para Seus servos fosse bondade, isto implicaria que (o ato de) Ele enviar mensageiros proféticos e apontar suas leis seria fútil, pois eles vieram com comandos e proibições e explicaram a realidade dos da Mão Direita e dos da Mão Esquerda, como dito por Ele: ‘Deles (humanidade) há os desventurados e os salvos” (Alcorão, 11:105) (al-Mawaqif, 1.46970: 236).
Assim, no nível de criação e destino, tudo é a vontade de Deus, e, em um determinado sentido, todas as religiões, de acordo com o ponto de vista de Abdul Qadir, são “adoração” da Deidade. Mas no nível de validade e salvação, apenas a adoração que se conforma com o que os profetas (que a paz esteja sobre eles) trouxeram é aceitável para Allah.
4. Vontade Divina Versus Aceitação Divina
Na primeira passagem do Mawaqif que traduzi acima, Abdul Qadir explica que o mushrik que associa outros com Allah está, em um sentido, “adorando” a Deus pelo fato de que ele imputa atributos da Deidade ao objeto de sua adoração, que ele só o adora por causa deles, embora ele tenha se provado “ignorante da Realidade [Merecedora de Adoração] em termos de fato (al-Mawaqif, 1.33: 8). Na segunda passagem citada, Abdul Qadir faz um contraste entre a vontade de Deus em criar o mushrik e sua “adoração” e a aceitação de Allah, que não se aplica a nenhum dos dois, pois ele menciona “tanto a pessoa guiada como a perdida, o afirmador do puro monoteísmo (muwahhid) e o associador de outros junto a Ele (mushrik), o desventurado e o salvo, o verdadeiro e o mentiroso” (al-Mawaqif, 1.469: 236). Há poucas dúvidas aqui sobre quem é quem: o muwahhid está salvo, o mushrik está perdido. Qualquer exceção que seja tomada no uso de do termo “adoração” acima, uma coisa que ela certamente não implica é a validade e aceitação de Deus para todas as formas desta adoração. Em toda a discussão, Emir Abdul Qadir segue de perto Ibn Arabi, que diz:
“Allah diz que ‘seu Senhor decretou que vocês não devem adorar a outro exceto Ele’ (Alcorão, 17:23), ou seja, determinou, e por Sua causa os deuses foram adorados, pois ninguém é pretendido pela adoração de nenhum adorador exceto Deus, uma vez que nada é adorado por sua própria causa exceto Allah. Aquele que associa outros com Allah (mushrik), mas comete o erro de estabelecer por si uma adoração de maneira particular que não foi dada a ele por Deus, é também amaldiçoado por isso (fa shaqiya li dhalik). Eles dizem, sobre aqueles que associam algo com Ele, ‘Nós apenas os adoramos para que eles nos aproximassem de Allah’ (Alcorão 39:3), dessa forma O reconhecendo” (al-Futuhat al-Makkiyya, I 405.3133).
É difícil concordar completamente com a interpretação de Ibn Arabi e Abdul Qadir de “Seu Senhor decretou” (qada Rabbuka) como significando “Seu Senhor determinou” (hakama, i.e. provocou), em oposição ao significado de “amara” ou “comandou”, que é interpretação dos outros exegetas, pois o segundo sentido é atestado pelo restante do verso:
“[Seu Senhor decretou que vocês não devem adorar outro senão Ele] e que mostrem bondade a seus pais (Alcorão 7:23),
no qual, se “decretou” (qada) significasse “determinou” (hakama), isso implicaria que todos os comportamentos [existentes] no mundo criado em relação aos pais fossem denominados como “bondade”, o que não é o caso.
Ibn Arabi atribui sua interpretação a “kashf” ou “intuição espiritual” (al-Futuhat al-Makkiyya, III 117.8) ao invés de linguística ou outra evidência exegética convencional–uma compreensão privada em que poucos leitores ordinários podem seguí-lo–, mas em qualquer caso suas palavras explícitas “e então é amaldiçoado por isso (fa shaqiya li dhalik)” deixa poucas dúvidas sobre a aceitabilidade, em seus olhos, de tal adoração. Se houver dúvida, o mesmo pensamento pode ser encontrado em muitas outras passagens da Futuhat, como a descrição dos quatro grupos que nunca irão deixar o fogo do inferno, o segundo sendo aqueles que associam outros com Allah (al-mushrikun), um mushrik sendo alguém que a “afirma a existência de Allah, sendo incapaz de negá-la, mas Satanás o faz associar outros além de Allah em Sua divindade” (ibid., I 302.9), pecado que, ele observa em outra sessão, está “dentre aquelas enormidades que nunca são perdoadas” (ibid., 749.16).
O resultado destes textos é que Ibn Arabi, assim como Abdul Qadir (e virtualmente qualquer outro muçulmano), claramente distingue entre a vontade divina, que pertine a qualquer coisa criada, e a aceitação divina, que pertine apenas às coisas que a Lei Sagrada considera boas. Isso nos traz para nosso ponto inicial, a palavra de Allah na surata Al ‘Imran, que
“Quem quer que busque outra religião se não o Islam nunca a terá aceita, e será daqueles que realmente falharam na próxima vida” (Alcorão 3:85).
5. O Destino dos Não-Muçulmanos na Vida Após a Morte
A razão pela qual os escritores contemporâneos afetados pelos escritos de Guenon e Schuon, como Chittick e Gai Eaton (ou Martin Lings, Titus Burckhardt, etc.) parecem desejar a validade universal de todas as religiões, a qualquer preço, mesmo ao ponto de atribuir isso a mestres como Muhyiddin Ibn Arabi (“em princípio”) ou Emir Abdul Qadir (“ele protegeu os Cristãos contra um massacre levando-os para sua própria casa porque ele compreendeu” [como se outros sábios considerasse halal massacrá-los]) parece ser a impalatabilidade emotiva [da ideia] de os seguidores das outras religiões irem para o inferno. Onde está a misericórdia? Allah iria colocar alguém no inferno meramente por adorar em outra religião que não o Islam? Esta pergunta é respondida pelo Islam tradicional de acordo com duas possibilidades:
(1) Há algumas pessoas que não foram alcançadas pela mensagem do Profeta do Islam (que Allah o abençoe e dê paz) de que devemos adorar apenas o Deus Único, não associando nada a Ele. Estas pessoas são inocentes e não serão punidas, não importa o que elas façam. Allah diz na surata al-Isra’,
“Nós não punimos até que tenhamos enviado um Mensageiro” (Alcorão, 17:15).
Isso inclui, por exemplo, Cristãos e outros que viveram no período depois da propagação do mito da divindade de Jesus, até o tempo do profeta Muhammad (que Allah o abençoe e dê paz), que renovou o chamado para o monoteísmo puro.
O grande sábio do Islam, Imam Ghazali, inclui nesta categoria aqueles que só foram alcançados com uma imagem distorcida do Mensageiro do Islam (que Allah o abençoe e dê paz), presumivelmente incluindo aí muitas pessoas no ocidente atual que não sabem nada à respeito da religião de Allah, apenas histórias de jornais sobre Ayatollahs e homens bomba muçulmanos malucos. Está dentro da capacidade destas pessoas acreditar? Na visão de Ghazali, tais pessoas estão escusadas até depois que elas tenham tido uma oportunidade de saber a verdade sem distorção sobre o Islam (Ghazali: “Faysal al-tafriqa,” Majmu’a rasa’il al-Imam al-Ghazali, 3.96). Isso, claro, não altera nossa obrigação, como muçulmanos, de alcançá-las com a da’wa.
(2) Um segundo grupo de pessoas consiste naqueles que viram as costas à divina mensagem do Islam, rejeitando o comando de fazer sua adoração apenas a Deus, seja por cegamente imitar a religião de seus ancestrais, ou por outra razão. Estas são pessoas a quem Deus enviou um mensageiro profético e alcançou com Sua mensagem, e a quem Ele deu audição e um intelecto capazes de compreender, mas que, depois de tudo isso, persistem em associar outros com Allah, seja por de fato adorar outro, ou por rejeitar as leis trazidas por Seu mensageiro (que Allah o abençoe e dê paz), que associam seus próprios costumes com a prerrogativa d’Ele de ser adorado como Ele direciona. Tais pessoas violaram os direitos de Deus e aceitaram ir para o inferno, que é precisamente sobre o que Seus mensageiros os alertaram, então elas não têm desculpa:
“Em verdade, Allah não perdoa que ninguém seja associado a Ele, mas perdoa aquilo que é menos que isso para quem Ele quiser” (Alcorão 4:48).
Em ambos os casos a Misericórdia de Allah existe, embora, para os não muçulmanos que não foram alcançados pela mensagem é uma questão de anistia, não uma confirmação da validade de suas religiões. É válido entender a diferença entre essas duas coisas, pois o destino eterno de uma pessoa depende disso.
6. O Absoluto e Relativo
Uma pergunta final surge aqui; a saber, que, uma vez que Allah é Único e Absoluto, e todas as formas (presumivelmente incluindo as religiosas) são relativas, por que Ele não pode transcender as formas dadas na Revelação Islâmica; ou seja, se Ele pode fazer qualquer coisa, por que seria impossível para Ele simplesmente “perdoar a todos”?
A resposta envolve o conceito de al-wajib al-’aradi ou o o “contingentemente necessário”, que é parte da aqida (princípios da fé) islâmica tradicional, e, assim sendo, bem conhecido por sábios como Ibn Arabi e Abdul Qadir, mas talvez não seja familiar para muitos muçulmanos contemporâneos. Ele está, indiscutivelmente, dentre os pontos mais importantes que uma pessoa pode aprender de trabalhos clássicos de aqida.
O possível e o impossível para Allah, o Altíssimo, envolve o atributo divino de qudra ou onipotência, “o que Ele pode fazer”. Este atributo, por sua vez, se relaciona com o intrinsecamente possível, não com o que é intrinsecamente impossível, pois, como Allah diz,
“Em verdade Allah tem poder sobre todas as coisas” (Alcorão 20:29), “coisas” sendo algo que em princípio pode existir. Por exemplo, se uma pessoa pergunta: “pode Allah criar um círculo quadrado?” A resposta é que Sua Onipotência não se relaciona com isso, pois um círculo quadrado não se refere a nada que em princípio possa existir: aquele que fala isso não tem uma distinta ideia do que quer dizer, e sim está meramente usando palavras desordenadas.
Similarmente, se uma pessoa perguntasse, “Allah pode dar fim à Sua própria existência?” A resposta é que a Onipotência Divina não se relaciona com isso; é intrinsecamente impossível (mustahil dhati), pois a Natureza Divina necessariamente implica as Perfeições Divinas, dos quais o Ser é um. É impossível que Allah deixe de possuir esta perfeição ou qualquer outra, pois, de outra forma, Ele não seria Deus.
Há, portanto, coisas que são necessariamente verdadeiras para Deus (que Ele não pode não ser), e seus opostos, coisas que são necessariamente impossíveis para Deus. Nos termos da pergunta acima, a escolha de perdoar todos, ou seja, simplesmente suspender as implicações dos versos alcorânicos e hadiths que indicam que algumas classes de pessoas jamais deixará o inferno, não é intrinsecamente impossível (mustahil dhati) para Allah, naquilo que não envolva algo inerentemente impossível como o círculo quadrado, ou negue algo inerentemente verdade pela própria natureza do Divino. Então, por que nenhum sábio islâmico nunca pensou nisso? Porque para a ortodoxia islâmica, existe uma outra classe de ambos, o necessário e o impossível, com a qual o atributo divino de Onipotência (qudra) não tem relação; a saber, aquilo que é necessário ou impossível porque, embora não a priori, se tornou necessário ou impossível por estar conectado com o conhecimento (‘ilm) de Allah e Seu atributo de fala eterno e sem início, e na informação que Ele nos dá disso.
Por exemplo, Abu Lahab nasceu aparentemente com as mesmas chances que qualquer um em ouvir a mensagem do Profeta (que Allah o abençoe e dê paz), entrar no Islam e alcançar o Paraíso. Porém, quando ele perseguiu os muçulmanos, a surata al-Masad (Alcorão 111) foi subsequentemente revelada, e Allah manifestou seu atributo de conhecimento eterno e sem início de que Abu Lahab era das pessoas do inferno. Embora inicialmente este resultado fosse meramente contingente e possível, quando a Palavra eterna de Allah se conectou com ele, fez dele necessário, final e irrevogável, pois Allah apenas informa o que está em Seu conhecimento, e Seu conhecimento apenas se conforma com o que realmente é, sendo por isso que ninguém altera as palavras de Allah (Alcorão 6:34), pois, de outra forma, Suas palavras iriam expressar ignorância, um atributo impossível para Deus, ou mentiras, que igualmente contradizem a natureza do Divino.
Abu Lahab é assim necessariamente das pessoas do inferno, necessário não logicamente ou inerentemente, mas contingencialmente necessário, por causa do evento contingente em que Allah nos informou à respeito. Tudo o que Allah nos informou pertence a esta classe de coisas, e a onipotência divina (qudra) não se relaciona ao contrário delas, pois Sua Palavra deve ser realizada exatamente como Ele disse, e é impossível que qualquer parte dela seja nulificada.
É por isso que, para Sufis como Ibn Arabi e Emir Abdul Qadir, a lei revelada, em um sentido, participa do Divino, pois ela retorna ao atributo de fala de Allah, no Alcorão, e na revelação não recitada da sunna do Profeta (que Allah o abençoe e dê paz), que que é o ato de inspiração de Allah-ambos inseparáveis, em princípio, da entidade de Allah. Para tais Sufis, a sharia é a haqiqa, e esta é, no fim das contas, a posição do próprio Islam. Para responder nossa pergunta acima, a primeira premissa de que apenas Allah é absoluto, e todas as formas são relativas, é claramente errada, e contradita pela existência múltipla das determinações de Allah, que, embora contingencialmente necessárias (wajib aradi), ao invés de inerentemente, são não menos absolutas que o próprio Divino.
Permaneço seu irmão,
Nuh Ha Mim Keller
Wa Assalamu aleikum wa Rahmatullahi wa barakatuh
Fonte: https://www.masud.co.uk/ISLAM/nuh/amat.htm
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