O ataque à mesquita al-Rauda no Sinai na sexta-feira passada, durante o qual terroristas reivindicaram pelo menos 305 vidas, foi muito possivelmente a atrocidade terrorista mais mortal na história do Egito moderno e um dos maiores ataques terroristas de todo o mundo. Já que a mesquita era muito frequentada por muçulmanos ligados a uma ordem sufi, o massacre também trouxe à luz os meios profundamente falhos pelos quais o sufismo é discutido — tanto por aqueles que denigrem o sufismo quanto por aqueles que o admiram.
Grupos extremistas como o ISIS promovem a ideia de que o sufismo é uma forma heterodoxa do Islã, e vão além em declarar os sufis como alvos legítimos. Mas não é só os extremistas violentos que fomentam o mal entendimento da heterodoxia. Na Arábia Saudita, por exemplo, o príncipe coroado Muhammad bin Salmân declarou no domingo que “o maior perigo do terrorismo extremista é distorcer a reputação de nossa religião tolerante”— embora intolerância quanto ao sufismo é a pedra angular de muito da abordagem salafista purista que sustenta o sistema religioso saudita.
Não quer dizer que todos que se autodescrevem como “salafistas” declaram que o sufismo deveria ser recebido com violência. Muitos, senão a maioria, nega essa centralidade dentro do Islã sunita. Certamente a vasta maior parte do sistema religioso saudita concorda com tal tipo de crença, que é um grande desafio que o príncipe deverá tratar se ele estiver falando sério sobre sua promessa de divulgar o Islã “moderado”.
O nascimento do movimento salafista purista (que muitos descrevem pejorativamente como o “wahhâbismo”) viu pregadores inspirados pela mensagem do personagem do século XVIII Muhammad bin ‘Abd al-Wahhâb atacando o sufismo em larga escala de uma maneira sem precedentes. Enquanto se apresentam como os ortodoxos, esses tipos de salafistas puristas estão na verdade engajados numa abordagem heterodoxa. Muitos desses personagens têm que ignorar ou reescrever pedaços enormes da história islâmica para poderem apresentar o sufismo e os sufis de acordo com a ótica deles.
Ahmad bin Taimiyya (1263-1328), uma autoridade comumente citada pelos salafistas, por exemplo, foi registradamente um membro da ordem sufi de ‘Abd al-Qâdir al-Jîlâni. As afiliações sufis de muitas autoridades medievais foram apagadas da história em muitas edições modernas de seus textos publicados por gráficas salafistas. Apesar disso, não há virtualmente nenhuma figura muçulmana proeminente que lance o sufismo fora da história islâmica. Quando os seguidores de Ibn ‘Abd al-Wahhâb tentaram fazer isso descrevendo os sufis como fora da fé, foram eles mesmos descritos pela maioria esmagadora dos sábios muçulmanos sunitas como endossando um tipo de heterodoxia por causa de sua intolerância e revisionismo.
Enquanto alguns que enquadram os sufis como heterodoxos o fazem com intenção maliciosa, muitos fãs do sufismo no ocidente parecem concordar que os sufis são heterodoxos — é só um tipo de heterodoxia que eles preferem do que a corrente normativa do pensamento islâmico, que eles parecem pensar que é diferente do sufismo. Ironicamente a natureza bem intencionada dessa perspectiva desinformada ecoa a falácia que os extremistas promovem.
E é uma falácia extraordinária. Até bem recentemente seria impensável para estudantes de comunidades islâmicas considerarem sufismo como algo além de uma parte integral duma educação islâmica holística. O essencial da teologia, prática e espiritualidade — isto é, o sufismo — eram considerados como elementos básicos e centrais até mesmo da instrução islâmica primária. E figuras religiosas conhecidas por seu comprometimento ao sufismo não eram consideradas a minoria; seriam com folga a norma. De fato o próprio rótulo de uma “minoria sufi” egípcia sendo bradado desde o ataque à mesquita é algo peculiar: o sufismo não é uma seita — é integral ao Islã sunita corrente e majoritário.
O sufismo nunca traiu a ortodoxia islâmica; se algo, é a ortodoxia islâmica na sua forma mais pura.
O sufi mais famoso do Ocidente, como mostrado na lista de mais vendidos da Amazon, é Rumi, o poeta persa extraordinário. Outra figura renomada é Ibn ‘Arabi, um espanhol do século XII. Mas poucos no Ocidente parecem perceber que tais figuras, que são sem dúvida sufis, eram bem integrados à corrente majoritária islâmica. Rumi, por exemplo, era um autor de fatwas e um especialista num rito ortodoxo da lei islâmica sunita (a escola hanafi); Ibn ‘Arabi era ainda mais exímio nas práticas legais sunitas, ao ponto de que ele era descrito por muitas autoridades medievais como sendo capaz de formar sua própria escola de lei.
Isso não quer dizer que os sufis nunca foram marcados por críticas pelos sábios muçulmanos tradicionais — eles foram sim. Tais críticas foram publicadas pelos próprios sábios sufis, muito como o que juristas experientes criticaram como tentativas mal feitas em jurisprudência e muitos teólogos especialistas criticaram como incursões amadoras em teologia. Um crítico moderno, um sufi famoso de Comoros, disse: “Se fôssemos sufis melhores, todos os outros não pensariam que somos algo além de bons muçulmanos.”
Outro mito é de que os sufis seriam geralmente apolíticos ou evadiriam de qualquer atividade marcial. Historicamente esse certamente não foi o caso. Figuras sufis como Abu al-Hasan al-Shâdhili e Ibn ‘Abd al-Salâm (o último um jurista famoso de seu tempo) estavam na liderança de campanhas para defender o Egito dos exércitos do Rei Luís da França. O esforço líbio contra a ocupação fascista italiana foi liderado por sufis da ordem sanusi, incluindo o famoso ‘Omar al-Mukhtar. Shaikh ‘Abd al-Qâdir al-Jazâ’iri foi um militante oponente da invasão francesa da Argélia no século XIX, enquanto o Imâm Shamil do Cáucaso lutou contra a incursão russa em sua própria terra. Mas enquanto eles acreditavam mais que certamente nesse empenho marcial, e o chamavam de jihâd, foi um jihâd que significou que os semelhantes de al-Jazâ’iri lutaram para proteger cristãos; um jihâd que significou que al-Mukhtar se recusou a tratar mal os prisioneiros de guerra; em outras palavras, um jihâd que é limitado ao entendimento da corrente majoritária do Islã sunita.
Essa tendência ativista entre os sufis permanece existindo hoje. Na minha própria pesquisa em anos, cruzei o caminho com professores de textos sufis como o Shaikh Seraj Hendricks da África do Sul e o Shaikh Emad Effat no Egito. O primeiro foi detido por ativismo contra o apartheid, enquanto o último foi morto no meio dos protestos do fim de 2011. Isso para não dizer nada sobre o número de membros das ordens sufis da Síria que participaram da insurgência revolucionária síria contra o regime de al-Asad, assim como contra o ISIS. Também é verdade que algumas figuras sufis se empenharam em apoiar ativamente autocratas e governos repressivos — os quais outros sufis criticaram pelo que eles enxergaram como inconsistência. Tal crítica tem tudo a ver com o que tais figuras sufis veem como ortopraxia na Tradição islâmica.
É muito fácil tachar os sufis como um grupo quase-sectário que seria de alguma forma desligado do Islã. O sufismo nunca traiu a orotodoxia islâmica; se algo, é a ortodoxia islâmica na sua forma mais pura. Tanto os que denigrem os sufis, como o ISIS e o sistema religioso saudita, quanto aqueles que admiram os sufis, como ocidentais amantes de Rumi, fariam bem em reconhecer isso finalmente. De outro modo, arriscamo-nos todos em trair a história islâmica.
Fonte: https://www.theatlantic.com/international/archive/2017/11/airbrushing-sufi-muslims-out-of-modern-islam/546794/
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