A POBREZA DO FANATISMO
“Sangue não é argumento”, como Shakespeare observou. Tristemente, as fileiras de muçulmanos hoje estão inchadas com aqueles que discordam. O World Trade Center, símbolo das finanças globais de ontem, hoje se tornou um monumento para a falha do Islã global de controlar aqueles que creem que o Ocidente pode ser intimidado a mudar suas maneiras rebeldes quanto ao Oriente. Não há uma desculpa real à mão. Simplesmente não é suficiente protestar, como muitos fizeram, sobre “o que vai, volta” e protestar que a aquiescência de Washington sobre as políticas israelenses de limpeza étnica seria o gerador inevitável de tal ódio. É de fato verdade – como Shabbir Akhtar notou – que a impotência pode corromper tão insistentemente como o poder. Mas compreender não é sancionar ou mesmo enfatizar. Tomar vidas inocentes para alcançar um objetivo é característica da ética utilitária secular mais extrema e se põe como o polo oposto das restrições morais absolutas requeridas pela religião.
Havia um tempo, não faz muito, quando os “ultras” eram poucos, formando só uma pequena verruga na face da tentativa mundial de revivificar o Islã. Tristemente não podemos mais nos aproveitar do luxo de ignorá-los. O extremo se expandiu e o caminho do meio, que daria lugar a isso, está em todos os lugares deslocado e confuso. E esse enfraquecimento do caminho do meio foi aproveitado pelo exemplo profético, que é por sua vez acelerado pelo opróbrio que os extremistas trazem não simplesmente sobre eles mesmos, mas sobre muçulmanos comprometidos em todo lugar. Pois aqui, como em todo lugar, as preferências da mídia trabalharam firmemente contra nós. David Koresh poderia transmitir sua mensagem bíblica inconvencional do Rancho Apocalipse sem a imagem do cristianismo ou mesmo sua ala dos adventistas ser de forma alguma manchada. Mas quando um grupo islâmico inconvencional bombardeia turistas suecos no Cairo, a porcaria é instantaneamente espalhada sobre os “muçulmanos militantes” em todo lugar.
Se essas coisas continuarem, o movimento islâmico cessará de formar uma convocação autêntica para uma renovação cultural e espiritual, e existirá como pouco mais do que uma matriz estilhaçada de facções maníacas. O prospecto de tal apavorante e humilhante fim para a história duma religião que outrora já superou todas as outras em sua capacidade para tolerar debate e dissidência é agora uma possibilidade real. A experiência integral do trabalho islâmico pelos últimos quinze anos tem sido uma de radicalização crescente, dirigida pela falha percebida das instituições islâmicas tradicionais e movimentos islâmicos mais antigos para guiar os povos muçulmanos para a terra prometida valiosa mas tão quimérica do “Estado Islâmico”.
Se essa catástrofe final é para ser evitada, a corrente principal terá que recuperar a iniciativa. Mas para isso acontecer, devemos começar por confessar que a crítica radical da moderação tem sua força. O movimento islâmico tem sido mal sucedido faz tempo. Devemos nos perguntar como um homem como Nasser, um açougueiro, soldado fracassado e demagogo cínico, pode ter dominado um país tão essencial como o Egito, apesar da vacuidade de suas crenças, enquanto a Irmandade Muçulmana, com seus prolíferos milhões de membros, teria falhado, e falhado continuamente, por seis décadas. A acusação radical duma falha na metodologia não pode falhar em causar o efeito desejado em tal contexto de inadequação funesta e prolongada.
É nesse contexto – surpreendente talvez mas inescapavelmente – que devemos apresentar nosso caso para a renovação da vida espiritual dentro do Islã. Se é em algum momento para prosperar, na “renovação islâmica” deve ser feita para se ver que se está em crise e que seus recursos mentais se provam insuficientes para condizer com as necessidades contemporâneas. A resposta para isso deve ser baseada num ato de muhâsaba (autoexame) coletivo, em termos que transcendem o “neoislã” ideologizado dos revivalistas, e retornar a uma dialética muçulmana mais clássica e nativa.
Sintomático da doença é o fato de que, entre todas as explicações oferecidas para a crise do movimento islâmico, a única interpretação islâmica autêntica, isto é, que Deus não deveria estar prestando Seu suporte, está conspicuamente ausente. É verdade que frequentemente ouvimos o versículo alcorânico que afirma que “Deus não muda a condição de um povo até eles que mudem a sua própria condição.” Mas nunca parece que esse princípio é inteligentemente captado. Presume-se que o texto sagrado está aqui fazendo nada além de promover uma reforma moral individual como uma precondição para o sucesso social coletivo. Nada poderia ser mais desastroso, entretanto, do que medir tal reforma moral contra a medida do fiqh sem se importar se as virtudes adquiridas tem-nas sido através da conformidade (uma tarefa relativamente simples) ou se procedem espontaneamente dum realinhamento genuíno da alma. O versículo fala de uma mudança espiritual especificamente, uma transformação da nafs (ego) dos crentes – não uma mudança moral. E como o Profeta Abençoado nunca cansou de nos lembrar, há pouco valor na conformidade às regras externas a não ser que essa conformidade seja espelhada e engendrada por uma disposição do coração reta e genuína. “Ninguém entrará no Jardim por suas obras,” como ele o exprimiu. Enquanto isso, o julgamento profundo e obras – a tendência geral do Islã revivalista moderno (devemos evitar a termo batido e problemático “fundamentalismo”), fixado em manifestações visíveis de moralidade, falhou em endereçar a questão subjacente de para que serve a revelação. Pois é um absurdo teológico sugerir que a preocupação final de Deus é com a nossa capacidade de conformarmos com um padrão complexo de regras. Sua preocupação antes é que sejamos restaurados, através dos nossos trabalhos e da Sua graça, para aquele estado de pureza e equilíbrio com o qual nascemos. As regras são um meio vital para esse fim, e são facilitadas para isso. Mas elas não tomam seu lugar.
Para esse ponto, o Alcorão Sagrado implementa uma metáfora impactante. Na Sûrat Ibrâhîm, versículos 24 a 26, lemos:
“Não viram como Deus cunhou uma semelhança: uma boa palavra como uma boa árvore, cuja raiz é firme, com seus galhos no céu? Dá-nos seus frutos todo o tempo, pela permissão de seu Senhor. Assim Deus cunha semelhanças para os homens, que talvez eles possam refletir. E a semelhança duma má palavra é aquela duma má árvore que foi arrancada pela raiz da terra, que não possui estabilidade.”
De acordo com os sábios de tafsîr (exegese), a referência aqui é às “palavras” (kalimât) de fé e de não fé. A primeira é ilustrada como um crescimento natural, cuja florescência de aquisição moral e intelectual é nutrida por raízes firmes, que por outro lado denota a base da fé: a qualidade das provas que se recebe e a certeza da consciência genuína de Deus que sozinha significa que se é firmemente aterrado na realidade da existência. Os frutos então obtidos – os benefícios palpáveis da vida religiosa – são permanentes (“todo o tempo”), e não são a realização própria dum homem, pois eles somente vêm “com a permissão de seu Senhor”. Assim é a vida genuína da fé. O contraste é então traçado com a única alternativa: kufr, que não é aterrado na realidade mas na ilusão, e daí “não possui estabilidade”.
Essa passagem, remanescente de algumas das categorizações binárias dos tipos humanos apresentados antes na Sûrat al-Baqara, precisamente encapsula a relação entre fé e obras, a hierarquia que existe entre elas e o equilíbrio sustentável entre nutrição e fruição, entre tomar e dar, que a verdadeira fé deve manter.
É contra esse critério que devemos julgar a qualidade do dos estilos de fé “ativistas” contemporâneos. É o “ultra” jovem, com sua raiva intensa que pode às vezes torná-lo passível de desordens nervosas e sua fixação em um escopo relativamente estreito de assuntos e preocupações, real e firmemente enraizado, e frutífero, no mesmo sentido descrito pela imagem alcorânica?
Deixe me frisar a resposta com um exemplo tirado da minha própria experiência.
Costumava conhecer, até que bem, um líder do grupo “islâmico” radical Jamâ’at Islâmiyya, na universidade egípcia de Assiut. Seu nome era Hamdi. Deixou uma barba luxuosa, ficava frequentemente escovando seus dentes com seu miswâk e gastava seu tempo pregando o ódio aos cristãos coptas, um número dos quais foi realmente atacado e espancado como resultado de suas khutbas (sermões). Ele tinha centenas de seguidores; de fato, Assiut hoje permanece sendo uma cidadela de ativismo estilo wahhâbi linha-dura.
A moral da história é que uns cinco anos depois, essa conhecida a Providência de novo me trouxe cara a cara com o Shaikh Hamdi. Dessa vez, ocorrendo de encontrá-lo numa rua do Cairo, quase falho em reconhecê-lo. A barba se foi. Estava de calça e suéter. Mais assombroso ainda era que ele estava andando com uma jovem ocidental porventura australiana, com quem, como timidamente ele me contou, pretendia se casar. Conversei com ele, e ficou claro que ele não era mais nem mesmo um muçulmano o mínimo praticante, não rezava mais e que sua ambição na vida era partir do Egito, viver na Austrália e fazer dinheiro. O que era extraordinário era que suas experiências no ativismo islâmico não deixaram qualquer impressão nele – era de novo o mesmo jovem egípcio comum e distraído que tinha sido antes da sua conversão ao “Islã radical”.
Esse fenômeno, que podemos rotular de “estafa salafista”, é uma característica reconhecida em muitas culturas islâmicas. Um entusiasmo inicial, adquirido geralmente por volta dos vinte anos, perdendo o gás duns sete a dez anos depois. Prisão e tortura – a sina frequente do radical islâmico – pode servir para prolongar o compromisso, mas no fim a maioria desses “neomuçulmanos” recaem, aparentemente nem melhor nem pior por sua experiência no universo sectário da mentalidade salafista.
Esse efemeridade do ativismo extremista deveria ser tão suspeito quanto o seu conteúdo. A fé islâmica autêntica simplesmente não deveria ser tão frágil; como o Alcorão diz, sua raiz é esperada que “esteja firme”. Deve-se concluir que das duas árvores retratadas na imagem alcorânica, o extremismo salafista se parece com a segunda ao invés da primeira. Enfim, os Sahâba não foram conhecidos por um compromisso transitório: sua devoção e piedade permaneceram incomparavelmente puras até que morressem.
O que atrai jovens muçulmanos a esse tipo ativismo efêmero, porém feroz? Não se deve aderir a teorias sociais deterministas para perceber a importância da condição quase universal de insegurança que as sociedades islâmicas estão experimentando agora. O mundo islâmico está passando por um período de transição de grande devastação. Um história de mudança econômica e científica que na Europa levou quinhentos anos está sendo, no mundo islâmico, espremida num par de gerações. Por exemplo, só trinta e cinco anos atrás a capital da Arábia Saudita era um aglomerado de cabanas de lama, como tinha sido por milhares de anos. A Riade de hoje é uma megacidade de alta tecnologia de torres de vidro, máquinas de Coca-Cola e Cadillacs deslizantes. Esse é um caso extremo, mas até certo ponto o deslocamento da modernidade é comum em toda sociedade islâmica, exceto, talvez, em um punhado dos povos tribais mais remotos.
Tal período de transição, com suas forças centrífugas que não permitem nada de permanecer constante, tornam os seres humanos muito inseguros. Eles procuram algo no qual possam se segurar, que lhes dará identidade. No nosso caso, esse algo é geralmente o Islã. E porque eles estão sendo propelidos para esse senso de insegurança psíquico, em vez dos processos mais normais de conversão e fé, carecem dalgo das virtudes religiosas naturais, que são adquiridas pelo contacto com uma tradição contínua e que nunca pode ser aprendida dum livro.
Facilmente se visualiza como isso funciona. Um jovem árabe, parte de uma família gigante, competindo por empregos escassos, incapaz de se casar porque é pobre, talvez um imigrante de uma cidade rapidamente em expansão, sente-se como um homem perdido num deserto sem placas de sinalização. Numa manhã ele pega uma cópia do Sayyid Qutb duma banca e “nasce de novo” ali mesmo. Isso era o que ele precisava: certeza instantânea, uma moldura na qual interpretar a paisagem diante dele, para resolver os problemas e tensões da vida e, ainda mais delicioso, um modo de se sentir superior e no controle. Ele adere a um grupo e, ansioso de reter sua certeza recém encontrada, aceita a proposta geral que todos os outros grupos estão errados.
Isso, claro, não é como a conversão religiosa islâmica deveria funcionar. Deveria haver um processo de maturação intelectual, acionado pela presença de uma pessoa ou lugar muito santos. Tauba, na sua forma tradicional, produz um perspectiva de alegria, contentamento e uma afeição profunda pelos outros. O tipo moderno de tauba, entretanto, nascida da insegurança, muitas vezes produz pessoas cuja fé é, apesar de sua intensidade aparente, passível de desvanecer como veio. Privada de nutrição real, a alma do ativista só pode acabar ficando faminta e emaciada, até que por fim morre.
O ATIVISMO POR DENTRO
Como poderíamos responder a essa desordem? Devemos começar lembrando para que o Islã serve. Como notamos antes, nosso dîn não é, afinal, um manual de regras que, quando meticulosamente seguido, se torna um passaporte para o paraíso. Em vez disso, é um pacote de tecnologia social, intelectual e espiritual cujo propósito é purificar o coração humano. No Alcorão, o Senhor diz que no Dia do Juízo nada será de qualquer uso para nós, exceto um coração sadio (qalbun salîm). E num hadîth famoso, o Profeta (s.a.w.s.) disse que:
“Verdadeiramente no corpo há um pedaço de carne. Se está sadio, o corpo todo está sadio. Se está corrupto, o corpo todo está corrupto. Verdadeiramente, esse é o coração.”
Consciente do seu mandamento, sob o qual todos os outros mandamentos do Islã estão subordinados, e o que por si mesmo sozinho lhes dá significado, os sábios islâmicos trabalharam numa ciência, um ‘ilm (ciência), de analisar os “estados” do coração e os métodos de trazê-la à essa condição de saúde. Na plenitude do tempo, a ciência adquire o nome tasawwuf, em português “sufismo” – rótulo tradicional pelo que poderíamos mais inteligentemente chamar de “psicologia islâmica”.
Nesse ponto, muitos horrores aumentaram e objeções bem ensaiadas foram proclamadas. É vital se entender que o sufismo mais comum não é e nunca foi um sistema doutrinário ou uma escola de pensamento – um madhhab. É, pelo contrário, um padrão de intuições e práticas que se operam dentro de vários madhâhib islâmicos; em outras palavras, não é um madhhab, é um ‘ilm. E como a maior parte dos outros ‘ulûm islâmicos, não era conhecido pelo nome, ou em sua forma desenvolvida mais tardia, na época do Profeta (s.a.w.s.) ou de seus Companheiros. Isso não o torna menos legítimo. Há muitas ciências islâmicas que só tomaram forma muitos anos depois da época profética: usûl al-fiqh, por exemplo, ou as inúmeras disciplinas técnicas de hadîth.
Agora isso, claro, nos leva à área muito mal entendida de sunna e bid’a, duas noções que são brandidas como instrumentos brutos por muitos ativistas contemporâneos, mas são muitas vezes grosseiramente mal entendidas. Na tese orientalista clássica é claro que o Islã, como uma “religião semita semiárida”, falhou em incorporar os mecanismos para seu próprio desenvolvimento, e isso se petrificou com a morte de seu fundador. Isso, entretanto, é um absurdo enraizado no determinismo étnico dos historiadores do século dezenove que moldaram as visões dos primeiros sintetizadores orientalistas (Muir, Le Bon, Renan, Caetani). Islã, como a religião designada para o Fim dos Tempos, tem de fato se provado eminentemente adaptável às rápidas mudanças de condições que caracterizam esse estágio final e mais “entrópico” da história.
O que é bid’a, de acordo com as definições clássicas da lei islâmica? Todos nós conhecemos o famoso hadîth:
“Cuidado com os assuntos recentemente iniciados, pois todo assunto recentemente iniciado é inovação, toda inovação é desvio, e todo desvio está no Inferno.”
Isso quer dizer que tudo que foi introduzido no Islã que não era conhecido pela primeira geração de muçulmanos é para se rejeitar? Os ‘ulamâ’ clássicos não aceitam tal interpretação literalista.
Deixem-nos tomar uma definição do Imâm al-Shâfi’i, uma autoridade universalmente aceita no Islã sunita. O Imâm al-Shâfi’i escreve:
Há dois tipos de assuntos introduzidos (muhdathât). Um é aquele que contradiz um texto do Alcorão ou da Sunna, ou um relato dois primeiros muçulmanos (athar), ou o consenso (ijmâ’) dos muçulmanos: esse é uma “inovação de desvio” (bid’at dalâla). O segundo tipo é aquele que é em si mesmo bom e não implica em contradições de nenhuma dessas autoridades: é uma “inovação não repreensiva” (bid’a ghair madhmûma).
Essa distinção básica entre formas aceitáveis e inaceitáveis de bid’a é reconhecida pela maioria esmagadora dos ‘ulamâ’ clássicos. Entre alguns, por exemplo para al-’Izz ibn ‘Abd al-Salâm (um da meia dúzia de grandes mujtahids da história islâmica), inovações caem nas quatro classificações axiológicas da Sharî’a: o obrigatório (wajib), o recomendável (mandûb), o permissível (mubâh), o desrecomendável (makrûh) e o proibido (harâm).[6]
Sob a categoria de “inovações obrigatórias”, Ibn ‘Abd al-Salâm nos dá os seguintes exemplos: registrar o Alcorão e as leis do Islã por escrito num tempo em que se temia que poderia ser perdido, estudar gramática árabe para resolver controvérsias sobre o Alcorão e desenvolver uma teologia filosófica (kalâm) para refutar os mu’tazilitas.
Categoria dois são “inovações recomendáveis”. Sob esse título os ‘ulamâ’ listam tais atividades como construir madrassas, escrever livros sobre assuntos islâmicos que trazem benefícios e estudos aprofundados de linguística árabe.
Categoria três é “permissível” ou “inovações neutras”, inclusive atividades mundanas tais como peneirar farinha e construir casas de vários estilos não conhecidos em Medina.
Categoria quatro são “inovações repreensíveis”. Inclui contravenções como exagerar na decoração de mesquitas ou do Alcorão.
Categoria cinco são “inovações proibidas”. Inclui impostos ilegais, dar juízos para aqueles desqualificados de os ter e crenças e práticas sectárias que explicitamente contravêm os princípios conhecidos do Alcorão e da Sunna.
A classificação acima dos tipos de bid’a é normal na literatura de Sharî’a clássica, sendo aceita pelas quatro escolas de fiqh ortodoxo. Haveria somente duas exceções significativas para esse entendimento na história do pensamento islâmico: a Escola Dhâhiri como articulada por Ibn Hazm, e uma ala do Madhhab Hanbali, representada por Ibn Taimiyya, que vai contra a ijmâ’ clássica nesse assunto, e as alegações de que todas as formas de inovações, boas ou más, são não islâmicas.
Por que isso, então, que tantos muçulmanos agora creem que inovação de qualquer forma é inaceitável no Islã? Um fator já foi assinalado: os complexos mentais lançados pela insegurança, que inclina as pessoas a se confortarem em interpretações absolutistas e literalistas. Outro jaz na influência da madhhab neo-hanbali bem financiada chamada wahhâbismo, cujos líderes são famosos por sua rejeição de toda possibilidade de desenvolvimento.
Em todo caso, armado com essa consciência mais sofisticada e clássica da capacidade do Islã de reconhecer e assimilar as novidades, podemos entender como a civilização islâmica foi capaz de produzir tão rápido as disciplinas acadêmicas novas para lidar com os novos problemas assim que iam surgindo.
Psicologia islâmica é característica dos novos ‘ulûm que, embora presente de forma latente e implícita no Alcorão, foi primeiramente sistematizada na cultura islâmica durante o período abássida. Dado a importância que o Alcorão tem para que se obtenha um “coração sadio”, não nos surpreenderíamos ao descobrir que a influência da psicologia islâmica foi massiva e totalmente penetrante. Nos anos formativos dos quatro primeiros séculos do Islã, no tempo em que as grandes obras de tafsîr, hadîth, gramática e assim por diante foram estabelecidas, os ‘ulamâ’ também aplicaram suas mentes para esse problema de al-qalb al-salîm. Isso foi primeiramente visível quando, seguindo o exemplo dos Tâbi’în, muitos dos primeiros ascetas, tais como Sufyân ibn Uyaina, Sufyân al-Thauri e ‘Abdallah ibn al-Mubârak focaram suas preocupações explicitamente na arte de purificar o coração. Os métodos que eles recomendavam eram frequentemente jejuar e a reza noturna, retiros periódicos e uma preocupação com murâbata: serviço como lutadores voluntários nos castelos de fronteira da Ásia Menor.
Esse tipo de orientação piedosa não era pelo menos sistemática durante esse período. Era uma categoria solta abarcando todos os muçulmanos que buscavam a salvação através das virtudes proféticas de renúncia, sinceridade e devoção profunda à revelação. Esses homens e mulheres eram frequentemente referidos como al-bakkâ’ûn: ‘os carpideiros’, por causa de seu medo do Dia do Julgamento, ou como zuhhâd, ascetas, ou ‘ubbâd, ‘adoradores perpétuos’.
Pelo século terceiro, entretanto, começamos a encontrar escritos que podem ser entendidos como pertencentes a uma escola devocional distinta. O luxo e materialismo crescentes da sociedade urbana abássida estimularam muitos muçulmanos para fazer campanha por uma restauração da simplicidade da era profética. Pureza de coração, compaixão pelos outros e uma constante lembrança de Deus eram as características definitivas dessa tendência. Encontramos referências ao método dos muhâsaba: autoexame para detectar impurezas de intenção. Também enfatizada era a riyâda: autodisciplina.
Por esse tempo também os principais contornos da psicologia alcorânica foram trabalhados. A criatura humana, percebeu-se, é feita de quatro partes constituintes: o corpo (jism), a mente (aql), o espírito (rûh) e o ego (nafs). Os dois primeiros precisam de poucos comentários. Menos familiar (pelo menos para pessoas de educação moderna) são a terceira e quarta categorias.
O espírito é a rûh, aquela essência subjacente do indivíduo humano que sobrevive à morte. É difícil compreender isso racionalmente, sendo parte da inspiração divina, como o Alcorão disse:
“E eles lhe perguntam sobre o espírito; diga: o espírito é o comando do meu Senhor. E você recebeu do conhecimento somente um pouco.”
De acordo com os primeiros psicólogos muçulmanos, a rûh é uma realidade não material que permeia o corpo humano inteiro, mas é centrada no coração, o qalb. Representa aquela parte do homem que não é deste mundo, e que o conecta com seu Criador, e que, se ele tiver sorte, o capacita a ver Deus no outro mundo. Quando nascemos, essa rûh é intacta e pura. Assim que somos iniciados nas distrações do mundo, entretanto, é coberta com a “ferrugem” da qual o Alcorão fala. Essa ferrugem é feita de duas coisas: pecado e distração. Quando, através do processo de autodisciplina, essas são banidas, então o adorador é preservado do pecado e é focado integralmente na presença imediata e realidade de Deus, a ferrugem é dissolvida e a rûh mais uma vez é livre. O coração está sadio; e a salvação e a aproximação de Deus são alcançadas.
Isso soa bastante simples. Entretanto, os primeiros muçulmanos ensinaram que tais coisas preciosas vêm somente a um preço apropriado. Limpar os estábulos de Áugias do coração é um desafio dos mais excruciantes. Conformidade externa à regras da religião é bastante simples; mas é só o primeiro passo. Muito mais exigente é a política conhecida como mujâhada: o combate diário contra o ego baixo, a nafs. Como o Alcorão diz:
“Quanto àquele que teme estar diante de seu Senhor e proíbe sua nafs de seus desejos, o Céu será seu lugar de refúgio.”
Daí o mandamento sufi:
“Abata seu ego com as facas da mujâhada.”
Uma vez que a nafs é controlada, então o coração está limpo e as virtudes procedem dele fácil e naturalmente.
Porque seu objetivo é nada mais do que a salvação, essa ciência islâmica vital tem sido consistentemente exposta pelos grandes sábios do Islã clássico. Enquanto hoje há muitos muçulmanos, influenciados seja por agendas wahhâbis ou orientalistas, que creem que o sufismo sempre levou uma existência um tanto marginal no Islã, a realidade é que a maioria esmagadora dos sábios clássicos estiveram ativamente envolvidos com o sufismo.
Os antigos sábios shâfi’is de Khurasân: al-Hakîm al-Nisaburi, Ibn Furak, al-Qushairi e al-Baihâqi eram todos sufis que formavam elos com a tradição acadêmica mais rica do Islã abássida, que culminou na realização do Imâm Hujjat al-Islâm al-Ghazzâli. Al-Ghazzâli mesmo, autor de uns trezentos livros, incluindo as refutações definitivas da filosofia árabe e dos ismaelitas, três livros grandes de fiqh shâfi’i, a mais famosa brochura de usûl al-fiqh, duas obras de lógica e vários tratados teológicos, também nos deixou com a afirmação clássica do sufismo ortodoxo: Ihyâ’ ‘Ulûm al-Dîn, um livro sobre o qual o Imâm al-Nawawi comentou:
“Se os livros de Islã se perderem todos, exceto o Ihyâ’, seria suficiente para substituí-los todos.”
O Imâm al-Nawawi mesmo escreveu dois livros que registram sua dívida com o sufismo, um chamado Bustân al-’ rifîn (“Jardim dos Gnósticos”) e outro chamado al-Maqâsid (publicado recentemente em tradução inglesa, Sunna Books, Evanston Il. trad. Nûh Hâ Mîm Keller).
Entre os mâlikis o sufismo também era popular. Al-Sawi, al-Dardir, al-Laqqani e ‘Abd al-Wahhâb al-Baghdâdi eram todos expoentes do sufismo. O jurista mâliki do Cairo, ‘Abd al-Wahhâb al-Sha’râni define o sufismo como segue:
“O caminho dos sufis é construído sobre o Alcorão e a Sunna, e é baseado em viver de acordo com as morais dos profetas e dos purificados. Não pode ser culpado, a não ser que viole uma declaração explícita do Alcorão, Sunna ou Ijmâ’. Se não contradiz nenhuma dessas fontes, então nenhum pretexto permanece para condená-lo, exceto a própria opinião baixa dos outros, ou interpretar o que eles fazem como ostentação, o que é proibido. Ninguém nega os estados dos sufis exceto alguém ignorante do caminho em que está.”
Para o sufismo hanbali não é necessário buscar mais longe do que as figuras reverentes de ’Abdallah al-Ansâri, ‘Abd al-Qâdir al-Jîlâni, Ibn al-Jauzi e Ibn Rajab.
De fato, virtualmente todos os grandes luminares do Islã medieval: al-Suyûti, Ibn Hâjar al-’Asqalâni, al-’Aini, Ibn Khaldûn, al-Subki, Ibn Hâjar al-Haithami; escritores de tafsîr como al-Baidawi, al-Sawi, Abu al-Su’ud, al-Baghawi e Ibn Kathîr; escritores de ‘aqîda tais como al-Taftazani, al-Nasafi, al-Râzi: todos escreveram apoiando o sufismo. Muitos, de fato, compuseram obras independentes de inspiração sufi. Os ‘ulamâ’ das grandes dinastias da história islâmica, incluindo os otomanos e os moghuls, eram profundamente infundidos com a perspectiva sufi, enxergando-a como uma das ciências islâmicas mais centrais e indispensáveis.
Mais confirmações da legitimidade islâmica do sufismo é suprida pelo entusiasmo de seus expoentes por levarem o Islã além das fronteiras do mundo islâmico. A processo de islamização na Índia, África Negra e Sudeste da Ásia foi levada grandemente pelas mãos de professores sufis itinerantes. Do mesmo modo, a obrigação islâmica do jihâd foi aplicada com zelo especial pelas ordens sufis. Todos os grandes jihadistas do século dezenove: ‘Uthmân dan Fodio (da Terra dos Hauçás), al-Sanûsi (Líbia), ‘Abd al-Qâdir al-Jazâ’iri (Argélia), Imâm Shamil (Daguestão) e os líderes da Rebelião Padre (Sumatra) eram praticantes ativos do sufismo, escrevendo extensivamente sobre ele durante suas campanhas. Nada é mais longe da realidade, de fato, do que a alegação de que o sufismo representa uma forma mais tranquila e não militante do Islã.
Com isso tudo, confrontamos um paradoxo. Por que será, se o sufismo tem sido tão respeitado como uma parte da vida intelectual e política dos muçulmanos por toda a história que há, hoje em dia, vozes iradas levantadas contra ele? Há duas razões fundamentais aqui.
Primeiro, há aqui de novo a influência permeante da erudição orientalista, que pelo menos antes de 1922 quando Massignon escreveu seu “Essai sur les Origines de la Lexique Technique”, era da opinião que algo tão fértil e profundo como o sufismo nunca poderia ter nascido do solo essencialmente “estéril e legalista” do Islã. Obras orientalistas traduzidas para línguas dos muçulmanos foram influenciáveis sobre os muçulmanos modernistas – tais como Muhammad ‘Abduh e seus últimos escritos – que começaram a questionar a centralidade, ou mesmo a legitimidade do discurso sufi no Islã.
Segundo, há a emergência da da’wa wahhâbi. Quando Muhammad ibn ‘Abd al-Wahhâb uns duzentos anos atrás se juntou com a tribo Sa’ûd e atacou os clãs vizinhos, ele o fez sob o sinal de uma versão essencialmente neokharijita do Islã. Embora ele tenha invocado Ibn Taimiyya, tinha reservas até mesmo sobre ele. Pois Ibn Taimiyya mesmo, embora crítico dos excessos de certos grupos sufis, foi comprometido a um ramo do sufismo majoritário. É claro, por exemplo, na obra de Ibn Taimiyya Sharh Futûh al-Ghaib, um comentário sobre alguns pontos técnicos das Revelações do Invisível, uma obra chave pelo santo do século sexto de Bagdá, ‘Abd al-Qâdir al-Jîlâni. Por toda a obra Ibn Taimiyya mostra ele mesmo como discípulo leal de al-Jîlâni, a quem ele sempre se refere como shaikhunâ (“nosso professor”). Essa filiação qâdiri é confirmada na literatura mais recente da Tarîqa Qâdiriyya, que registra Ibn Taimiyya como um elo chave da silsila, a corrente de transmissão dos ensinamentos qâdiris.
Ibn ‘Abd al-Wahhâb, entretanto, foi além disso. Criado no ermo de Najd na Arábia Central, teve pouco acesso à erudição islâmica majoritária. De fato, quando sua da’wa apareceu e se tornou notória, os sábios e muftis do dia aplicaram a isso o famoso Hadîth de Najd:
Ibn ‘Umar relata que o Profeta (s.a.w.s.) disse: “Ó Deus, abençoe-nos na nossa Síria; Ó Deus, abençoe-nos no nosso Iêmen.” Aqueles presentes disseram: “E no nosso Najd, Ó Mensageiro de Deus!”, mas ele disse: “Ó Deus, abençoe-nos na nossa Síria; Ó Deus, abençoe-nos no nosso Iêmen.” Aqueles presentes disseram: “E no nosso Najd, Ó Mensageiro de Deus!” Ibn ‘Umar disse que ele pensou que ele disse numa terceira ocasião: “Terremotos e dissensões (fitna) estão ali, e dali se erguerá o chifre do diabo.”
E é significante que quase que único das terras do Islã, o Najd nunca produziu sábios de qualquer reputação.
A da’wa baseada no Najd dos wahhâbis, entretanto, começou a ser ouvida mais alto seguindo a explosão da riqueza do petróleo saudita. Muitos, até mesmo a maioria das editoras islâmicas no Cairo e em Beirute são agora subsidiadas por organizações wahhâbis, que as impedem de publicar obras tradicionais sobre o sufismo, e removem passagens em outras obras consideradas inaceitáveis pela doutrina wahhâbi.
A natureza neokharijita do wahhâbismo o torna intolerante com todas as outras formas de expressão islâmica. Entretanto, porque ele não tem qualquer fiqh coerente por si mesmo – rejeita os madhâhib ortodoxos – e tem somente a ‘aqîda mais básica e primitivamente antropomorfista, tem uma tendência fluida e semelhante à ameba de produzir divisões e subdivisões entre aqueles que a professam. Não mais os grupos islâmicos estão essencialmente unidos por um madhhab consistente e a ‘aqîda ash’ariyya [ou mâturîdiyya]. Em vez disso, eles estão todos tentando derivar a sharî’a e a ‘aqîda do Alcorão e da Sunna por si mesmos. O resultado é o estado assombroso de divisão e conflito que desfigura a condição salafista moderna.
Neste momento crítico da nossa história, a Umma tem somente uma esperança realista para sobreviver, e é restaurar o “caminho do meio”, definido por aquele consenso clássico sofisticado que foi elaborado por dolorosos séculos de debate e erudição. Esse consenso sozinho tem a capacidade demonstrativa de prover uma base para a unidade. Mas só pode ser recuperado quando melhorarmos o estado dos nossos corações e o encher com as virtudes islâmicas da afeição, respeito, tolerância e reconciliação. Essa reforma interna, que é a competência tradicional do sufismo, é uma pré-condição para a restauração da unidade no movimento islâmico. É provável que a alternativa seja uma falha contínua e agonizante.
Fonte: https://masud.co.uk/islamic-spirituality-the-forgotten-revolution/
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