Quando falamos em escravidão, muitos associam esta palavra diretamente ao tráfego de pessoas pelo transatlântico ocorrido entre os séculos XV e XIX.
Os escravizados eram quase exclusivamente de pessoas negras, que foram trazidas em massa para o continente americano para compor a base da cadeia produtiva da economia em atividades insalubres e muitas vezes eram torturadas, humilhadas e mortas.
As condições para elas serem libertadas eram difíceis, a mobilidade social para os escravizados e seus descendentes eram escassas, e até hoje isso acarreta em impactos na população negra pelo mundo inteiro.
O Islam proíbe isso. Este tipo de definição de escravidão não possui nenhum paralelo com o que foi estabelecido no Alcorão, na Sunnah e nem sequer com as relações de servidão praticadas historicamente nos países islâmicos.
Este texto não defende a volta de nenhum tipo de modelo de servidão, apenas pretende distinguir a percepção islâmica sobre o assunto daquilo que normalmente se compreende como escravidão, utilizando exemplos teológicos e históricos para embasar.
A seguir, veremos que uma sociedade sem escravos está mais próxima do que a Sharia define como ideal do que o contrário.
O Islam não estabeleceu nenhuma forma de servidão, tampouco escravidão. Essas estruturas sempre existiram em todo mundo ao longo da maior parte da história humana, e na sociedade árabe pagã não era diferente.
Na era politeísta, os escravos não desfrutavam de muitos dispositivos para alcançar a alforria, era comum a prostituição forçada das mulheres e não havia incentivo para emancipação dos escravizados.
Nos relatos do princípio da revelação islâmica, há registros de grande violência contra os escravos.
Sumayyah bint Khayyat era uma mulher escravizada e foi a primeira mártir da religião islâmica. Ela foi morta com um golpe de lança desferido por Abu Jahl, um dos grandes opositores do Islam, que queria obrigar a mulher a deixar de ser muçulmana.
Bilal ibn Rabah também era um homem escravizado que foi submetido a severas torturas. Seu tutor Umayya ibn Khalaf tentou obrigá-lo a abandonar o Islam colocando uma enorme pedra em seu peito, fazendo com que ele fosse esmagado.
Bilal foi libertado por Abu Bakr, um dos primeiros muçulmanos e mais leais companheiros do Profeta Muhammad.
A religião islâmica rompeu significativamente com os conceitos anteriores que havia sobre a escravidão.
O Alcorão não utiliza o termo riqq (escravidão), mas sim “ma malakat aymanukum” (“aqueles sob a custódia de sua mão direita”).
Com isso, a religião atribuiu a responsabilidade de proteger a dignidade daqueles que estavam sob custódia.
Com o advento da religião islâmica, a única forma de alguém se tornar escravo, em sentido prático, era por meio de uma derrota na guerra ou quando alguém era filho de cativos, o que restringia significativamente as formas de fomentar este comércio.
A tradição profética proíbe a venda de pessoas livres:
“O Profeta disse: ‘Allah disse: Eu serei o oponente de três pessoas no Dia do Juízo: [...] aquele que vende uma pessoa livre e consome o preço.’” (Sahih al-Bukhari, 2227; Sahih Muslim, 1658)
O fundamento para permitir a captura de prisioneiros de guerra não era religioso, mas social, pois naquela época e em vários séculos subsequentes, não havia prisão, as alternativas eram a servidão ou a morte.
Além disso, a maioria das relações sociais ainda não eram baseadas no lucro. Isso é algo que ocorreu apenas com o advento do capitalismo moderno, já no final do século 19.
Na antiguidade, libertar os cativos e permitir que eles voltassem para o seu país era o mesmo que dar a eles uma segunda chance para se reerguer e tentar iniciar uma nova guerra. Ou seja, era uma ameaça à própria integridade.
Entretanto, a revelação islâmica estabeleceu um código moral para que os escravizados fossem reintegrados à sociedade ao invés de serem submetidos à brutalidade.
Uma das marcas das sociedades escravagistas era vestir os escravos com roupas inferiores, alimentá-los com comidas pouco nobres e dar atividades braçais ou que não eram consideradas dignas para pessoas de alto prestígio social.
O Islam rompeu com essa lógica, pois a servidão, apesar de ser uma pena de guerra, não colocava a pessoa em condição de inferioridade humana e nem removia a sua dignidade.
Portanto, a religião prescreveu reiteradamente que a conduta com os servos fosse de inclusão na sociedade e no seio familiar. Desta forma, o tutor e as demais pessoas veriam-no como um semelhante:
O Profeta Muhammad disse: “Os vossos escravos são vossos irmãos. Alimentai-os com o que comeis e vestí-los com o que vestis. Não os sobrecarreguem de tarefas; e se o fizerem, ajudem-nos.” (Sahih al-Bukhari, 30; Sahih Muslim, 1661)
Não era sequer permitido tratar os servos de um modo depreciativo ou que o colocassem em posição de inferioridade humana, o que reforça a igualdade dos seres perante a religião:
O Profeta Muhammad disse: “Não digam: ‘Meu escravo’ ou ‘Minha escrava.’ Digam: ‘Meu jovem’ ou ‘Minha jovem.’” (Sahih Muslim, 2249)
O servo não deveria trabalhar de modo incansável e nem se sentar distante da mesa do seu tutor.
Isso era algo impensável nas sociedades escravagistas, pois os escravos não tinham direitos relacionados ao trabalho, muito menos habitavam nos espaços de convivência de seus senhores.
E a lei islâmica ainda diz que mesmo se o servo não se achasse digno de ficar na presença de seu tutor, ele deveria o encorajá-lo:
“Ouvi Abu Hurairah dizer: ‘O Mensageiro de Allah disse: “Quando o servo de qualquer um de vocês lhe trouxer comida, que o faça sentar-se ao seu lado e comer com ele, e se ele recusar, que lhe dê um pouco.” (Sunan Ibn Majah 3289)
Caso alguém tratasse mal um servo e agredisse-o, a pessoa seria obrigada a libertá-lo:
O Profeta Muhammad disse: “Quem bater em seu escravo ou o punir sem justificativa, o resgate será libertá-lo.” (Sahih Muslim, 1657)
Ou seja, está claro que a religião promoveu a igualdade e a integração não apenas de modo superficial.
Tratava-se de dar a alguém, que era um inimigo de uma sociedade islâmica e que queria matar os muçulmanos que nela viviam, a oportunidade de socializá-los.
No Islam, o concubinato refere-se a uma relação legal e regulamentada entre um homem e uma mulher que se encontra sob sua posse legítima.
O Alcorão se refere às concubinas do mesmo modo que se refere aos servos comuns, ou seja, "o que as suas mãos direitas possuem", indicando igualmente que os tutores tinham responsabilidades sobre elas.
Os direitos dessas mulheres são análogos aos de uma esposa, e os filhos delas eram considerados legítimos.
A submissão de uma mulher ao concubinato se dava pela mesma forma da servidão convencional, isto é, através de capturas por meio de guerras.
Assim como os servos comuns eram inseridos dentro da família, o mesmo acontecia com as concubinas, que passavam a ter o status semelhante ao de uma esposa.
Essas mulheres, no entanto, tinham mais direitos do que os demais servos, a fim de garantir que elas não fossem abusadas sexualmente, se tornassem prostitutas, e também para que elas tivessem sua maternidade resguardada caso tivessem filhos.
As concubinas possuíam os mesmo direitos de um servo comum. Além disso, há outras coisas que as distinguiam dos demais.
Se uma concubina tivesse um filho de seu senhor, ela adquiria o status de Umm Walad (mãe de filho). Nesse caso, ela não poderia ser vendida e seria automaticamente libertada após a morte do senhor.
“Quem tiver relações com sua escrava e ela der à luz, ela se tornará livre após sua morte.” (Sunan Ibn Majah, 2515)
Na era pagã, era comum que os senhores de escravos usassem as suas escravas como prostitutas para lucrar com elas.
Essas práticas foram abolidas após a revelação islâmica, pois isso aquilo que não é digno para uma pessoa livre também não é para um servo.
“E não forçai as vossas escravas à prostituição, se elas quiserem manter-se castas, buscando os bens transitórios da vida terrena. E quem as obrigar, por certo, Allah, depois de elas serem obrigadas, é Perdoador, Misericordioso.” (Alcorão 24:33)
É estabelecido que os filhos das concubinas eram considerados filhos legítimos. Eles recebiam o nome do pai, tinham direito à educação, moradia, alimentação e vestuário da mesma forma que os filhos nascidos de uma esposa.
Este filho já nascia como pessoa livre e não podia ser escravizado. Caso o pai morresse, ele teria direito a receber herança.
Desde o início da revelação, o Alcorão enalteceu a alforria de escravos como um dos atos mais nobres.
Em diversos versículos, libertar um escravo é descrito como uma expiação de pecados e um caminho para se aproximar de Allah.
Por exemplo, o Alcorão afirma:
“E o que te fará entender o que é a ascensão? É libertar um escravo.” (90:12-13).
A libertação de escravos não era apenas recomendada, mas frequentemente mandatória como forma de compensação por ações erradas, como o homicídio involuntário (Alcorão 4:92) ou a quebra de votos (Alcorão 5:89).
Esse incentivo constante refletia o objetivo de reduzir gradualmente a presença da escravidão na sociedade.
Além disso, o Islam introduziu o conceito de mukatibat, um contrato que permitia aos escravos negociarem sua liberdade com seus senhores.
O Alcorão afirma:
“E aqueles de vossos escravos que desejarem um contrato de libertação, concedei-o a eles, se souberdes que neles há algum bem, e dai-lhes do que Allah vos concedeu.” (24:33).
O escravo podia solicitar ao seu senhor a celebração do contrato de mukatibat. O senhor tinha a responsabilidade religiosa de aceitar caso o escravo demonstrasse capacidade de cumprir os termos.
Para isso era acordado um valor específico com o senhor e pagar em prestações ou de uma vez. O valor era baseado em um consenso, e o senhor não podia exigir um montante excessivo.
Uma vez que o escravo cumprisse os termos do contrato, ele era libertado imediatamente, tornando-se um cidadão livre com todos os direitos e deveres da sociedade islâmica.
O Profeta Muhammad também reforçou esse princípio em sua prática e ensinamentos. Ele libertou muitos escravos e encorajou seus companheiros a fazerem o mesmo. Em um hadith, ele disse:
“Quem libertar um escravo, Allah libertará cada parte de seu corpo do Inferno em troca de cada parte do corpo do escravo.” (Sahih al-Bukhari, 2517).
Ao longo da história islâmica, os muçulmanos frequentemente se empenharam em comunidade para libertar escravos, considerando essa prática uma grande virtude e de justiça social.
A libertação de escravos era vista não apenas como uma responsabilidade individual, mas também como um dever comunitário, promovido ativamente por líderes religiosos, governantes e cidadãos comuns.
O objetivo final sempre foi a emancipação, demonstrando que o Islam via a escravidão como uma prática temporária e sujeita à erradicação gradual, em contraste com sistemas baseados em exploração.
Os exemplos práticos da servidão no mundo islâmico mostram que ela se tratava de algo distante da realidade da escravidão americana.
Uma diferença marcante é que o sistema servil não era baseado em etnias, havendo pessoas de diversas partes do mundo, o que afastou estigmas raciais como os que ocorreram com a população afrodescendente das Américas.
No mundo islâmico, a escravidão não servia como base econômica centralizada; em vez disso, os escravos eram frequentemente empregados em funções domésticas, administrativas e militares.
Isso garantiu considerável mobilidade social a essas pessoas. Um exemplo significativo é o sistema devshirme do Império Otomano, que recrutava meninos cristãos para servirem como soldados e burocratas.
Esses escravos eram treinados nas melhores instituições do império, como o Enderûn, onde recebiam educação abrangente, incluindo ciência, literatura e administração.
Muitos deles ascenderam ao topo da hierarquia, como Rüstem Pasha, um ex-escravo croata que se tornou Grão-Vizir e genro do sultão Suleiman, o Magnífico.
Exemplos semelhantes surgem aos montes. Os mamelucos eram escravos militares que governaram o Egito e a Síria por séculos.
Eles começaram como soldados escravizados, mas tornaram-se a classe dominante, com seus líderes assumindo o título de sultão.
Além deles, o ex-escravo etíope, Malik Ambar, tornou-se um dos líderes militares e políticos mais poderosos do Sultanato de Ahmadnagar, sendo um mestre em táticas de guerrilha e administração.
Uma anedota famosa envolve o califa abássida Al-Mamun, filho de uma concubina, que foi desafiado por um dervixe.
O dervixe argumentou que, como o califa era filho de uma escrava comprada com fundos públicos, ele deveria ser visto como "escravo do povo". Esse relato ilustra a complexa relação entre status social e escravidão.
Essa diferença pode ser observada até os dias de hoje, pois os descendentes dos escravizados nos países islâmicos nunca criaram nenhum tipo de mobilização por reparação histórica como os movimentos nativos e negros americanos.
Além disso, vale destacar que, atualmente, nenhum país islâmico permite, por lei, alguma forma de escravidão.
O Islam rompeu com a lógica que fundamentou a escravidão, criando dispositivo para coibir a violência, incentivar a integração dos servos, e permitir a mobilidade social dessas pessoas.
Os servos eram cativos de guerra ou descendentes desses. Isto significa que eram indivíduos que provocaram guerras contra reinos e países islâmicos.
Deste modo, a servidão de acordo com a Sharia, era para época uma espécie de progressão de pena, que aos poucos reintegrava a pessoa na sociedade.
Até mesmo para as atuais sociedades livres é difícil ver tamanha integração tal qual ocorria nas sociedades islâmicas antigas.
Por exemplo, é incomum ver um funcionário vestir roupas ou comer comidas tão boas quanto as de seu patrão. Além disso, os filhos de um funcionário e de um empregador, quase nunca possuem acesso às mesmas condições e oportunidades.
Mesmo com este tratamento, a escravidão e a servidão nunca foram indispensáveis para o mundo islâmico, e a alforria sempre foi incentivada.
Portanto, as atuais sociedades que coíbem a escravidão estão mais de acordo com a Sharia do que as sociedades antigas que empregavam-na.
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