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“Educação do Coração”: A Revivificação do Sufismo na Bósnia-Herzegovina – Zora Kostadinova

Num dia quente do verão de junho de 2015, cheguei em Sarajevo, a capital da Bósnia-Herzegovina, para conduzir a pesquisa de campo da minha dissertação de doutorado, que trata, de maneira abrangente, dos assuntos relacionados à revivificação do Sufismo. Em específico, estava interessada na construção ética do eu nas diversas práticas rituais religiosas. Na minha pesquisa, perguntei às pessoas porque decidiram praticar o Sufismo em vez de outras formas da prática islâmica. A pergunta da pesquisa era contextualizada dentro do legado da guerra da Bósnia (1992-1995) e da queda do socialismo estatal da Iugoslávia. 

Depois de me dar as boas-vindas, o taxista me perguntou o motivo da minha visita. Respondi que viera para estudar o Sufismo e perguntei a ele se sabia alguma coisa a respeito. Surpreso com a minha pergunta, respondeu: “Bem, não sei muito sobre os sufis. São eles que se furam com agulhas?” Então olhou para mim e fez outra pergunta: “São eles que fazem o hukt?” – “Hukt” é uma adulteração da palavra Hu (Ele), o pronome da Presença Divina. Na Bósnia, esse neologismo é usado por uma geração de pessoas que não têm conhecimento de que a palavra Hu é um pronome que se refere a Deus. Julgam que é Hu seja uma palavra aleatória criada pelos dervixes que se entregam ao transe. Ele se desculpou por não saber e me disse que alguns bósnios têm consciência da sua tradição dervixe.

Nosso percurso passava perto do Centro Skenderija, uma edificação iugoslava da década de 1960. O centro contém quadras esportivas, um auditório, galerias de arte contemporânea, lojas e restaurantes. Ali também ficava o centro da juventude, que foi queimado em maio de 1992 durante o ataque dos sérvios e croatas à Bósnia. Até 1935, Skenderija era onde se encontrava um dos ramos da segunda maior congregação sufi de Sarajevo. O centro foi construído pelo governante da Bósnia, Iskender Pasa Beylerbeyi de Rumélia em 1499 e também deriva seu nome dele. Ele continha onze lojas, uma musarfihana (alojamentos de hóspedes) e uma imaret (cozinha). Esse fato, por si só, originou uma das perguntas da pesquisa: como um dos centros sufis mais bem estabelecidos dos Balcãs até o começo do século XX pôde ser esquecido assim?

Os Legados

O Sufismo chegou na Bósnia com a conquista otomana de 1463. Ao lado do Sultão Mehmed Fatih, que liderava a campanha, estavam dois estimados sheikhs Sufis, Ayni-Dede e Shamsi-Dede. Eles foram os primeiros missionários a difundirem o Islam em Sarajevo e estabeleceram uma Khorasani em Oglavak, perto de Fojnica, na Bósnia central. Nesse local, no final do século XVIII, Husein-baba Zukić, o Sheykh e Pir do ramo bósnio da tariqa Naqshibandia, construiu um centro de congregação sufi (tekke).

O papel dos dervixes e dos sheikhs é bastante reconhecido no processo de islamização da Bósnia, mas as tekkes, como instituições religiosas, também desempenhavam papel importante na organização da vida social. Além de contribuir com a educação islâmica correta dos convertidos bósnios e também com músicas devocionais, como ilahije (músicas de reverência), e poesia, elas também tinham influência e autoridade sobre as associações de trabalhadores da Bósnia. Mais recentemente, a obra de Ines Asceric Tood demonstrou o quão profundamente o etos sufi penetrava a sociedade muçulmana da Bósnia durante os dois primeiros séculos do domínio otomano, a fase mais intensa de conversões ao Islam. Os dervixes fundavam cidades e contribuíam com a vida socioeconômica e política do país. Mesmo o etos dos sindicatos, que eram liderados pelas Irmandades de Futuwwa (do cavalheirismo), era intimamente ligado aos ensinamentos e aos ideais do Sufismo. Os métodos e processos de aperfeiçoar as habilidades nos ofícios se assemelhavam aos métodos de purificação da alma no Sufismo. As Irmandades de Futuwwa tinham contato direto com tariqas Sufis. Muitas das pessoas com quem tive contato vieram a me contar que os dervixes, no passado, eram homens de ofício e, por sinal, muito proficientes. Apesar de haver tensões entre as autoridades otomanas e algumas irmandades Sufis, no geral, os otomanos buscavam obter o auxílio dos Sheikhs sufis na execução das suas políticas imperiais e tentavam manter as boas relações com eles, devido ao grande número de pessoas que os seguiam e ao apoio social que podiam proporcionar. 

Ainda assim, essa eminência sociopolítica e cultural decaiu rapidamente após o Congresso de Berlim em 1878, quando a Bósnia-Herzegovina foi colocada sob a administração do Império Habsburgo. Impacientes para assegurar a cooperação dos muçulmanos e, ao mesmo tempo, limitar os vínculos de dependência para com Istambul, os Habsburgos implementaram uma nova hierarquia de ulamás sunitas com a instituição da Comunidade Islâmica, em 1882. Nomeado pelo estado, um novo Mufti Geral, o reis-ul-ulema, era incumbido de selecionar os sheikhs das tekkes. A Comunidade Islâmica estabeleceu uma Assembleia de Waqf (que regulava financeiramente as doações religiosas), a qual enfraqueceu a independência financeira das tekkes, e adotou sua primeira constituição em 1930. Essa constituição alegava que as práticas Sufis eram “crenças e tendências panteístas.” Depois da Segunda Guerra Mundial, a recém-formada República Socialista da Iugoslávia confirmou a legitimidade da Comunidade Islâmica, o que fez com que ela continuasse sendo considerada o único órgão gestor da vida islâmica em toda a Federação Iugoslava. Como conclui o antropólogo Ger Dujzings, o conflito entre as irmandades sufis e a Comunidade Islâmica se desenrolou como um conflito entre ortodoxia e heterodoxia. Em 1952, a Comunidade Islâmica, em aliança com o Partido Comunista da Iugoslávia, introduziu uma proibição geral das práticas sufis no país, sob o pretexto de que elas eram “corruptas e supersticiosas” e “um desvio do Islam tradicional”. Ela confiscava as doações (waqf) dirigidas aos Sufis e proibiu as atividades nas tekkes nas décadas de 1950 e 1960. A proibição só foi abrandada mais perto do final da década de 1970.

Tudo isso teve muitas consequências estruturais, afetando tanto a transmissão das funções de liderança (silsilah) quanto o cultivo do conhecimento divino, além daquilo que apresento na minha tese: a redução do espaço dedicado à prática do dhikr ritual (a recordação de Allah). O antropólogo Tone Bringa diz que, quando as ordens sufis operavam sem restrições, o dhikr era um elemento inalienável do Islam na Bósnia e era praticado por todos os muçulmanos comuns. Foram feitos esforços para a integração das irmandades sufis na estrutura da Comunidade Islâmica, mas essa integração não viria a se completar até depois da guerra, em 1995.

O Sufismo Hoje

Embora o Sufismo ainda não tenha se revitalizado completamente na Bósnia – segundo o sociólogo Milan Vukomanović, em parte por causa da perda das gerações antigas dos sheikhs de elite e da perda da transmissão da silsilah, e também por causa das questões estruturais relacionadas à Comunidade Islâmica – o Sufismo é hoje opção importante para a espiritualidade individual. O Antropólogo David Henig escreve bastante sobre a revivificação sufi do ponto de vista das instituições. Como os antropólogos que estudaram casos de revivificação religiosa nos espaços previamente soviéticos, Henig classifica a revivificação sufi contemporânea no grupo dos “contextos históricos subversivos” do “ateísmo marxista-leninista.” Ele a descreve como uma “forma emergente de organização da prática e do conhecimento divino que têm profunda ligação com processos históricos e políticos – da opressão do povo pelo socialismo estatal e da libertação que vem no período pós-socialista.” Com essa abordagem, ele demonstra como essa organização emergente pós-socialista do conhecimento divino sufi tem uma natureza improvisada, que ele chama de momentos criativos. O momento criativo se apresenta em todos os aspectos da revivificação sufi. Abrange desde a maneira com que a silsilah (cadeia de sucessão) é renovada, passando pela restauração e construção de tekkes, pelo reestabelecimento do vínculo com congregações dervixes globais e transnacionais, até a exploração da natureza e da dinâmica do conhecimento divino dos Sufis. Henig propõe que a integração gradativa com as estruturas da Comunidade Islâmica reabilitou o Sufismo por completo como tradição autêntica da Bósnia. Os sheikhs sufis apoiam a cooperação com a Comunidade Islâmica na coordenação de atividades religiosas conjuntas. Entre essas atividades está a realização de peregrinações locais – algumas delas haviam sido banidas na Iugoslávia. No entanto, como Henig nos recorda, essas práticas conjuntas não estão livres de disputas. Os litígios normalmente giram em torno da renegociação, da administração e do gerenciamento de espaços sagrados, como os diversos locais de peregrinação. É um conflito onde tanto as comunidades sufis antigas e novas quanto a Comunidade Islâmica reivindicam uma espécie de direito de jurisdição sobre os locais.

Henig relaciona esses litígios às mudanças em curso na questão da negociação da identidade do Islam na Bósnia, na medida em que grupos diversos competem pela influência em constantes discussões – a tradição islâmica é uma tradição discursiva. Enquanto todos esses fatores representam os aspectos mais institucionais da revivificação sufi, os textos atuais não tratam do que significa ser dervixe e de como é a experiência de fazer parte de uma irmandade sufi. Na minha dissertação, procuro fornecer dados etnográficos sobre a revivificação da experiência sufi.

“Momentos Criativos”

Aqui me aproprio da metáfora dos momentos criativos de Henig e a aplico na minha análise da revivificação do Sufismo como o momento criativo da formação ética do eu. Apesar das tekkes terem sido fechadas e suas atividades, banidas, houve alguma continuidade da tradição durante o período iugoslavo, principalmente nos ramos da tariqa Naqshibandia e nas tekkes Qadiris, cujo famoso Sheikh carismático Fejzullah Hadzibajrić – conhecido também por ser o primeiro tradutor do Mesnevi de Rumi para o idioma bósnio – procurou por décadas convencer a Comunidade Islâmica a restaurar as ordens sufis sob a sua jurisdição. A minha experiência de campo indica que, com o fechamento das tekkes como instituições da fé, a Comunidade Islâmica, com o apoio do Partido Comunista, foi causa direta da diminuição dos meios práticos da experiência da fé – o ato de se tornar um bom muçulmano, a incorporação da melhora do caráter. Essa construção do eu incorporada no dhikr abarca uma maneira muito específica dos muçulmanos de verem a si mesmos como crentes e a forma com que eles praticam sua fé e suas adorações (‘ibadat). As pessoas com quem conversei muitas vezes disseram: “O dhikr limpa o coração. Quando repetimos os belos Nomes de Allah, buscamos ser bons muçulmanos – refletir as características (sifats) de Allah no modo com que levamos nossa vida.” A queda das tekkes  como instituições, pode-se dizer, é a ascensão de um Islam reformador que, além de ser legado dos movimentos e correntes que se formaram no século XIX, é legado também da modernidade europeia, que chegou na Bósnia com o Império Habsburgo e se apresentou na região na forma de novas instituições e cargos religiosos.

A revivificação do Sufismo demonstra que este processo incorporado da construção do eu voltou a ser realizado, principalmente no contexto dos traumas e das experiências da guerra. É devido a essa dinâmica que os grupos sufis contemporâneos, como fontes autênticas da herança e da tradição, atraem os praticantes. Pois o Sufismo também é fonte de lideranças autênticas e transmitidas. Os sheikhs sufis são muito considerados pelos seus seguidores e são vistos como modelos da ética islâmica. E o mais importante, o Sufismo proporciona aos praticantes a prática do dhikr, onde a purificação do coração espiritual (qalb em árabe) é intimamente ligada com o ser que sofre, cujo objetivo é purificar o coração da dert (dor, em turco) no caminho de aproximação a Allah.

Como tradição autêntica da Bósnia, o Sufismo serve de âncora e plataforma para recuperação de uma certa prática islâmica que não foi corrompida nem politizada pelo comunismo iugoslavo. A minha pesquisa enfoca o processo de se tornar um bom muçulmano, não somente como um ato de cuidado consigo mesmo, mas também como ato de responsabilidade social. Assim, a aquisição do adab (da boa conduta apropriada), a obtenção do conhecimento da própria tradição e a geração de novos laços com as pessoas, como laços familiares, são parte importante da construção ética do eu. Na mesma medida em que tudo isso auxilia a própria pessoa, tudo isso também a auxilia a vivência com as outras pessoas, num contexto de sociedade pós-guerra. Muitos com quem conversei descrevem a quebra permanente dos laços sociais como um dos legados mais nocivos da guerra, mas também falam da reatação desses mesmos laços. No entanto, a mudança social mais abrangente é vista não somente como algo possível, mas algo dependente do ato da restauração de si mesmo. Pensando nisso, muitas vezes me lembrei do versículo do Alcorão: “Ele jamais mudará as condições que concedeu a um povo, a menos que este mude o que tem em seu íntimo.” (13:11). As tekkes são vistas como uma mudança inaugural desta mudança ética. O sheikh da Tariqa Naqshibandi com quem trabalhei me disse certa vez: “Hoje em dia, entre as muitas instituições de educação islâmica, não há nenhuma que lide com o coração. As tekkes educam o coração.” Proponho que, dentro desta educação do coração, esteja o processo de transcendência de si.

O Adab Sufi e o Eu Transcendente

As ´pesquisas etnográficas que buscam compreender o papel da transcendência no cuidado do eu podem enriquecer os estudos que seguem a linha de questionamento de Tala Asad: que a formação do eu se resume à pratica com disciplina. O que é esquecido nesta linha de pensamento, segundo propõem Paola Abenante e Fabio Vicini, é: “Deus e a relação que os crentes estabelecem com Ele. Em termos gerais, … [os estudos] deixam de tratar das maneiras com as quais o transcendente se faz presente… enquanto os indivíduos buscam compreender e, por fim, transformar a si próprios.” Essa experiência diferencia o Islam sufi da Sarajevo contemporânea do Islam hanafi, ortodoxo, sunita e popular. Em primeiro lugar, a noção de irmandade que se forma na tekke enquanto lar de novas transformações éticas é uma experiência única. Em segundo lugar, o papel do sheikh como facilitador da transformação ética do eu por meio da terbijjet (o processo da educação) proporciona um jeito alternativo de se desenvolver o caráter nobre; processo que, como defende Paul Heck, é uma das ideias formidáveis do Islam, desde a revelação do Alcorão – e é uma herança ética maravilhosa e muito importante na religião, pois “a adesão à lei somente, sem a formação do caráter nobre, pode muito facilmente resultar em arrogância.”

O resultado da terbijjet do Sheikh é o edep (ou adab) – o comportamente belo/a conduta apropriada, como manifestação externa das formas internas de ser/saber, das quais emana todo o resto do que é relacionado à vida moralmente correta (ahlaq). Para as pessoas com quem conversei, o esforço pela obtenção do adab sufi é, inevitavelmente, um processo de abertura e de perpetuação dos espaços reservados à auto-transcendência. Dentro deste processo criativo de se tornar um edebli (de alcançar a conduta dervixe apropriada), podemos falar de praticar o Islam, onde a fé realizada do conhecimento divino e do adab sufi se torna uma prática que sacraliza os espaços públicos. O estudo etnográfico do adab sufi nos possibilita compreender novas ideias do Islam social – ideias que se originam na comunidade sufi, que busca o bem comum e a reforma moral das sociedades. No caso da Sarajevo pós-conflito, vale a pena entender que papel os religiosos podem desempenhar no tocante à civilidade urbana. Isso também leva os pesquisadores a recuperarem a tradição quando estudam a modernidade, de modo a contestar com clareza a visão eurocêntrica da modernidade e da esfera pública. Para as pessoas com quem trabalhei durante minha pesquisa, a integração da religião na esfera pública não era uma afirmação antimodernista. Pelo contrário, o adab sufi também defende os valores da modernidade com a sua tolerância e aceitação dos outros, abrindo espaço para a expressão das diferenças. Isso é algo muito importante num país de crenças plurais como a Bósnia. Grande parte da coexistência harmoniosa foi deliberadamente prejudicada durante a guerra.

É impossível separar a abordagem fenomenológica da experiência religiosa, de um lado, dos traumas culturais e pessoais da guerra, de outro. Dado esse fator, o Sufismo vem se tornando uma parte importante da renegociação da tradição islâmica no contexto pós-guerra e pós-socialista. O Sufismo também proporciona um solo fértil para o estudo dos aspectos subjetivos da experiência muçulmana em contextos históricos e socioculturais únicos, e o contexto da Bósnia-Herzegovina é um desses. O Sufismo na Bósnia demonstra tendências também visíveis em outras ordens sufis do mundo. Entre essas tendências está a do cultivo da fraternidade virtuosa e a noção religiosa de se fazer parte da comunidade (umma). E o Sufismo continuará sendo fator importante no processo de negociação entre a tradição e a modernidade na Bósnia-Herzegovina.


Fonte: https://www.themaydan.com/2018/01/education-heart-revival-Sufism-bosnia-herzegovina/

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