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Por que Allah permite o sofrimento e o mal? O que é o mal?

No Islam, muitas vezes o mal e o sofrimento são percepções limitadas de um problema, e podem ser até mesmo uma bênção vinda de Allah.
  • Para o Islam, tudo o que conhecemos provém de Allah, incluindo aquilo que consideramos como mal ou sofrimento.
  • No entanto, as coisas que definimos desta maneira estão ligadas ao nosso próprio julgamento moral limitado. Deus, por sua vez, não conhece limites.
  • O mal e o sofrimento são pedagógicos e motivam o fiel a superá-los e adquirir sabedoria. Mas, se ele opta pela desobediência, atrairá a desgraça sobre si.
  • O sofrimento é, inclusive, algo de que um servo obediente de Allah pode se beneficiar para se aproximar d’Ele.

Autor: Nuh Ha Mim Keller

Sheikh al Alawi disse: “Todo o universo é Luz e a única coisa que o escurece é a manifestação do eu nele“. O sheikh Abdul Rahman al Shaghouri, que conheceu o sheikh al Alawi e me contou isso, costumava ensinar que as noções que afetam nossos corações vêm de uma das seguintes quatro partes: noções de tawhid (ou a unidade absoluta do Divino) vêm do próprio Todo-Misericordioso; aquelas de fazer o bem vêm da presença dos anjos; as de luxúrias e desejos vêm do ego; e as dúvidas nas verdades eternas vêm do Diabo.

Agora, todas estas vêm, em última análise, da primeira, pois “Allah é o Criador de tudo” (Alcorão 13:16) e o Profeta disse: “Em verdade, os corações da humanidade, todos eles, estão entre dois dedos do Todo-Misericordioso como um único coração que Ele dirige para onde Ele deseja (Muslim (14), 4.2045: 2654. S). O Imam Ghazali entendeu a “mão” de Allah neste hadith como Sua onipotência, através da qual os impulsos de anjos e demônios, para fazer o bem ou o mal, movem os corações como “dois dedos”. Ele diz: “Allah realiza o que Ele faz [dentro dos corações] controlando anjos e demônios, estando ambos sob o poder de Sua onipotência em virar os corações, assim como seus dois dedos, por exemplo, estão totalmente sob seu controle ao virar objetos” (Ihya ulum al-din (4), 3,24).

A partir disso, podemos saber que a pergunta “Por que Allah permite o sofrimento?” é criada por Allah, embora colocada nos corações humanos como uma acusação contra Deus pelo Diabo, o inimigo declarado da humanidade, que jurou a Allah: “Em verdade, desencaminharei todos eles, exceto os Teus servos entre eles a quem Vós fizestes totalmente sinceros” (Alcorão 15: 39-40). Ou seja, os impulsos que surgem no coração são do lado infernal, mas somos responsáveis ​​por nossas próprias escolhas, pois a sinceridade implica livre arbítrio. Então, talvez a resposta mais reveladora a esta pergunta não esteja em palavras, mas nos ikhlas ou sinceridade para com o Divino, a única coisa que pode valer contra o Inimigo que colocou dúvidas nos corações das pessoas, como um teste de Allah.

1. Teodiceia

O problema do sofrimento é conhecido na filosofia europeia desde a época de Leibniz, que intitulou um livro em sua homenagem como Teodiceia. Este termo tem origem nas palavras gregas theos (Deus) e dik (justiça). O leitor encontrará poucas outras referências filosóficas abaixo, apesar dos muitos filósofos cristãos e judeus que trataram do problema, entre eles Agostinho, Maimônides, Tomás de Aquino, Spinoza, Hume, Mill e um bom número no século XX. Não há nenhum corpo literário comparável nas tradições taoísta, budista ou hindu, provavelmente porque a maioria de seus seguidores acredita na reencarnação e na lei inexorável do karma, que coloca a culpa do sofrimento diretamente em quem sofre devido a seus próprios crimes nesta vida ou em vidas anteriores. Nem recebeu muita atenção no Islam, porque, acredito, Allah antecipou as dúvidas do homem ao respondê-las no Alcorão e na sunna profética. Portanto, deixei inexploradas as respostas de filósofos e acadêmicos, para deixar o Divino falar por si, e elucidei a revelação sobre a questão como foi entendida por meu mentor Sheikh Abd al Rahman e outros estudiosos tradicionais, juntamente com meu senso comum sobre as lições da vida. Alguém me fez a pergunta acima e eu me limito aqui ao que um ser humano precisa saber sobre isso.

A força da pergunta, se a analisarmos logicamente, contém várias premissas:

(1) Deus é todo-poderoso.

(2) Deus é justo e bom.

(3) Alguém justo e bom não permitiria o sofrimento e o mal se pudesse evitá-los, mas ambos existem no mundo.

(4) Portanto, Deus não é onipotente ou não é justo e bom.

A conclusão é inválida não apenas porque as premissas são sutilmente erradas (conforme as maneiras que veremos abaixo) e contra-atacadas por muitos exemplos que forneceremos, mas também porque toda a resposta está na perfeição absoluta de Allah. A inferência acima presume que meras palavras podem explicar a sabedoria divina do sofrimento, embora só possa ser intuída pela luz de Allah refletida no coração. Isto é, embora as respostas comuns possam ser articuladas para dizer algo, penso que a resposta para “Por que Allah permite o sofrimento e o mal?” só pode ser intuída diretamente ao ser alguma coisa. A maneira como nosso sheikh ensinou a mudar o estado de alguém funcionava através de três estágios: conhecimento (ilm), prática (amal) e o estado espiritual resultante (hal). Palavras só podem ajudar a transmitir conhecimento, instar para que seja praticado e aludir ou denotar o estado resultante – mas esta resposta específica só pode surgir atravessando esses três estágios com nossas escolhas existenciais. Mas, ao elucidar verbalmente seus aspectos que são simples e disponíveis, talvez Allah ajude o leitor a viajar o resto do caminho e descobrir a resposta em seu próprio coração. Iremos tomá-los na ordem em que normalmente ocorrem.

2. Conhecimento do Divino

O conhecimento necessário para entender essa questão é o conhecimento de Allah, que abre Sua revelação dizendo: “Em Nome de Allah, Misericordioso e Compassivo”. De acordo com Ibn al Arabi, este primeiro verso é o predicado de um assunto omitido na elipse, como é frequente no Alcorão, e seu significado completo é “[A origem e a aparência do mundo são apenas] Em [ou seja, ‘Em virtude de, por causa de’] do Nome de Allah, Misericordioso e Compassivo ”(al Futuhat al Makkiyya (7), 1.102).

Essas palavras iniciais transmitem o segredo misterioso de todo ser criado: que sua realidade está no contexto mais amplo em que é articulado e tem sua existência. O Misericordioso (al Rahman) denota a penetração da misericórdia divina em tudo no cosmos, neste mundo e no próximo, trazendo-o da privação do não-ser para a perfeição do ser temporal. É uma misericórdia poderosa e a base ontológica de nossa servidão.

O Mais Compassivo (al Rahim) é uma forma intensiva do nome anterior que denota um salto qualitativo na magnitude dessa misericórdia por meio de uma teofania para se manifestar plenamente apenas no próximo mundo, além da morte, para os seres sencientes (alamin) que Allah ama, sejam da humanidade, gênios, anjos e quaisquer outros. Sua infinitude em grau é acompanhada por sua infinitude no tempo, ou melhor, atemporalidade, estendendo-se como o faz até a eternidade.

Como eles, embora finitos, ganham até o infinito? Ao serem transformados e refinados por um processo de elevar suas possibilidades por meio da pura graça e misericórdia do Divino, representado pelo versículo do Alcorão imediatamente após o primeiro “al Hamdu li Llahi Rabb al alamin” (“Todo o louvor é de Allah, Senhor do Universo”), a palavra Rabb, muito imperfeitamente traduzida aqui como “Senhor”, era originalmente um masdar, ou substantivo verbal na antiga língua árabe, que denotava educar, elevar ou enaltecer, no sentido específico de tomar algo no nível imperfeito que estava anteriormente e trazê-lo gradualmente ao nível de perfeição desejado; também conotando o amor, a ternura e a solicitude com que isso normalmente ocorre. Este substantivo verbal, como outros na língua árabe, veio lexicamente a ser aplicado ao seu agente por meio de hipérbole, em vista da incessante intensidade com que o agente [“doer”, em inglês], Allah, o faz – assim como, por exemplo, em inglês a palavra “justiça”, que denota um determinado curso de procedimento jurídico, passou a ser aplicada ao magistrado cuja profissão é exercê-la.

O Rabb al alamin ou “Senhor dos mundos dos seres” (ou senhor do Universo), neste sentido, eleva Seus servos ao direcionar suas vontades e vidas para os contextos maiores nos quais estão inseridos; longe do apego material, ou considerando-se coisas, ou ainda acreditando que estas trazem felicidade, para o significado das coisas. Para que servem as coisas?

Nosso sheikh sustentava que as coisas existentes eram preciosas (aziza) para Allah Altíssimo e eram a manifestação de Seus atributos, especialmente de Sua divina misericórdia e compaixão, como indica o versículo inicial do Alcorão. O Profeta disse: “Quando Allah criou a criação, Ele inscreveu em Seu escrito que vinculou a Si mesmo, sendo depositado próximo a Ele no próprio Trono:  “Em verdade, Minha misericórdia supera Minha ira” (Bukhari (2), 9.147: 7404. S). Portanto, há misericórdia divina e há ira divina, o primeiro sendo da beleza infinita de Allah (jamal), o último de Sua majestade ilimitada (jalal) e justiça. Ele diz: “Em meu castigo, ferirei quem eu quiser, enquanto Minha misericórdia abrange tudo: Eu devo inscrevê-lo para aqueles que mostram temor a Deus e pagam as esmolas, e que em Nossos sinais revelados são crentes de todo o coração” (Alcorão 7:156). Ou seja, Sua misericórdia é prescrita para aqueles que desejam ouvir e seguir.

Nós experimentamos o sofrimento e o mal. Mas seu significado não reside em fazer acusações contra Deus, mas sim na libertação destas ao atingir felicidade ilimitada com Ele. Deve ser alcançada não meramente por Iman ou “sabendo sobre Allah”, mas pelo “amal” ou “prática” apropriada para Sua divina autonomia, majestade e beleza, ou seja, pela servidão (ubudiyya). Pois onde há verdadeiro conhecimento do Mestre, há amor, e onde há amor, há serviço devoto.

3. Servidão

O significado das coisas existentes, de nossas vidas e nossas mortes está no universo de ações que elas possibilitam. Provavelmente, não é coincidência que os grandes temas da literatura inglesa, particularmente desde a ascensão do ateísmo entre os intelectuais no final do século XIX, tendem a se aglutinar em praticamente um único tema: a alienação do homem diante de sua própria falta de sentido. Isso é algo inimaginável para um servo de Allah, exceto patologicamente para aqueles que estão longe de Deus. Pois um servo só não tem sentido fora do contexto em que existe, o que ele é, no fundo, a saber, de seu Mestre, “que criou a morte e a vida para prová-los, quanto a qual de vocês se mostrará melhor nas obras” (Alcorão 67:1—2). As mais tremendas realidades pessoais que cada um de nós enfrenta, a própria vida e a morte, são um teste para algo além delas. A questão da teodiceia não pode ser respondida até que entendamos o que é.

O quadro completo diz muito mais que isso. Fique por um momento em sua imaginação no corredor de um edifício escolar, olhando para uma das salas com a porta aberta. No momento, ela está ocupada por um grupo de jovens adultos, cada um sentado nas mesas da escola, escrevendo em um maço de papéis, ocasionalmente olhando para o relógio da parede, mas sem olhar ou falar um com o outro. Eles estão escrevendo o mais rápido que podem. No entanto, esta é apenas uma impressão superficial, incompreensível para quem nunca ouviu falar de alunos fazendo uma prova. A realidade disso repousa no cenário maior ao seu redor. Estamos em uma faculdade de medicina, em uma universidade, no final do semestre. A realidade daqui, por sua vez, reside no papel das universidades em geral, na profissão de praticar a medicina no contexto social e histórico mais amplo em que a faculdade está inserida e em uma economia mundial que concentrou as energias remuneradas de muitos seres humanos sobre a empresa em que os alunos da sala estão embarcados.

Agora mesmo, um deles enrola os dedos da mão esquerda em torno do pulso direito e move para frente e para trás por um momento antes de continuar a escrever. Ele tem cãibras por escrever, mas sabe que desaparecerá após o exame, como o café que ele bebeu em excesso na semana anterior, as horas tardias que passou estudando com seus colegas na última noite e os hormônios do estresse ainda fluindo pelas veias. Que sentido pode haver com as dores que está sofrendo, até que entendamos que ele pretende ser médico?

Agora, as pessoas são de duas categorias no que diz respeito ao significado deste cenário e, na verdade, de qualquer coisa: aqueles que percebem seu significado e aqueles que não percebem. “Diga: ‘São iguais aqueles que sabem e os que não sabem?’” (Alcorão 39: 9). Por um lado, o kafir denota lexicamente tanto alguém que nega como um “descrente” e, não tangencialmente, um ingrato (literalmente “aquele que está encoberto” por seu próprio egoísmo, ignorância e apego às coisas) que considera as coisas como primárias, o próprio substrato da realidade, a permanência do mundo. Por outro, as ações são efêmeras para ele, desaparecendo em si mesmas, exceto como um meio para mais coisas, sejam elas imateriais, como fama, prestígio ou poder – ou materiais, como riqueza, roupas ou propriedade. Para o kafir, onde existe qualquer aspiração além de meramente maximizar a felicidade e o prazer e evitar tristeza e dor, o sentido da vida muitas vezes não é mais do que “equivaler a algo”. Certa vez, um adesivo de para-choque dizia: “Quem tiver mais brinquedos quando morrer, vence”.

Para o mumin ou crente, por outro lado, alguém que ergueu o olhar para os horizontes do infinito, a visão oposta prevalece: as ações, especificamente aquelas que são apenas para Deus, são o que é permanente neste mundo, enquanto as coisas são efêmeras. “Cada coisa está perecendo”, declara seu Criador, “exceto Sua face” (Alcorão 28:88) – face sendo uma metáfora árabe para o que é mais distinto de alguém, a própria pessoa; aqui, o Ser de Allah e, ​​por extensão, o que é feito pura e exclusivamente para Ele e ninguém mais.

O cosmos, no macrocosmo e microcosmo, a infinidade de sapiência e senciência, da experiência humana interna e externa, existe para transmitir e denotar a unidade (tawhid) do Divino. “Devemos mostrar-lhes Nossos sinais, nos horizontes e em si mesmos, até que fique claro para eles que [esta revelação] é a verdade” (Alcorão 41:53). O significado das coisas, portanto, está fora das coisas, assim como o significado de um símbolo está no que ele significa, pressagia e implica.

O que uma vida vivida em servidão a Allah revela ao servo é seu próprio contexto mais amplo. Quanto mais ele ascende em proximidade com o Divino, mais seus horizontes recuam. Algo passa a habitar no coração de um servo, deixado lá ao direcionar sua vontade a Allah em obra após obra, ano após ano, até que ele se torne de Allah, e Allah, em certo sentido, torne-Se seu. Esta relação é, provavelmente, tão única para cada um dos awliya quanto a singularidade do próprio Allah. Ele revela a cada um, em sua própria medida, a sabedoria e misericórdia de Allah na interface entre o servo e o mundo. O caminho daqueles que estão próximos de Allah não reside apenas em perceber que o mundo é ordenado pela teofania dos nomes de Allah, mas em enxergar nisso a perfeição divina. “Diga: “São os cegos e os que enxergam iguais?” (Alcorão 6:50).

4. O Contexto dos Nomes Divinos

O sheikh Abd al Rahman ensinou que os nomes divinos competem sobre as coisas existentes para manifestar suas implicações nelas. Considere o exemplo de um jovem de boa família, que cai em más companhias e muda para sua maneira de ver e fazer as coisas, sob a influência do nome al Khafid, “O que Rebaixa”, e finalmente al Mudhill, “O que Desonra”, até que chegue o dia em que ele não possa mais afundar e enoja até de si mesmo. O nome al Tawwab ou “O que Aceita o Arrependimento” é implantado, ele se lembra de como era, vê o que ele se tornou e se sente envergonhado diante de seu Criador, a quem se arrepende. Os dias e semanas o veem melhorar, sob as implicações de al Rafi “O que Exalta”. Ele busca melhor companhia, desconecta-se dos velhos hábitos ruins e passa para a esfera de al Wadud, “O Solícito e Terno”, para al Karim, “O Todo-Generoso” e assim por diante. As interações dos nomes e suas determinações são complexas e “interpenetrativas” [“interpenetratives”, em inglês]. O nome al Musawwir, por exemplo, “O Formador”, “O Modelador”, manifesta suas implicações em todos os existentes; enquanto al Warith, “O Herdeiro”, permanece depois que as implicações do primeiro foram retiradas de qualquer existente particular e ele foi aniquilado, apagado e disperso. O nome al Muqaddim, “O que Adianta”, faz um existente preceder o outro, nas obras, na categoria ou no tempo de aparecimento; enquanto al Muakhkhir, “O que Atrasa”, adia os existentes e eventos para depois de outros, ou os mantém para trás, ou os rebaixa. O nome al Wahhab, “O Doador”, dispensa Suas generosidades perpetuamente, livremente, universalmente e por nada em troca; enquanto al Mani, “O que Defende”, para, nega, verifica e evita ataques. O nome al Nafi, “O Beneficiário”, promove, ajuda e faz o bem a quem Ele deseja; enquanto al Darr, “O que Causa Danos”, causa danos, prejudica e arruína quem Ele deseja. O Profeta disse: “Na verdade, Allah tem noventa e nove nomes. Quem compreende todos eles entrará no paraíso” (Tirmidhi (19), 5.532: 3508. S). O crente, o santo, o arif e o conhecedor de Allah direta e experimentalmente – todos conhecem Allah em Suas manifestações e determinações, cada um de acordo com sua própria iluminação e consciência do Divino.

Eles são patentes no equilíbrio maravilhoso no mundo natural entre as espécies, cujos interesses estão inextricavelmente entrelaçados pela alimentação, parasitismo, simbiose e, talvez mais dramaticamente, predação. Na Ilha Royale, por exemplo, um santuário selvagem de quarenta e cinco milhas de comprimento separado por quatorze milhas de águas abertas do Lago Superior da costa de Ontário, não havia alces até 1908, quando vários deles nadaram através do canal para escapar dos lobos no continente. Em 1915, seu número havia aumentado para duzentos. A população, sem ser impedida por inimigos naturais, continuou aumentando continuamente até 1930, quando haviam comido tanto da vegetação da ilha que morriam de fome em massa, emaciados e doentes. Os cerca de oitocentos alces continuaram, miseravelmente famintos e doentes, até o inverno de 1948-49, quando uma matilha de cerca de vinte lobos cruzou o gelo e começou a atacar o rebanho. Eles logo foram reduzidos a cerca de seiscentos, ou trinta alces para cada lobo, que é o equilíbrio natural entre as duas espécies na natureza. A ferocidade externa dos lobos derrubando os alces individualmente e os comendo, o medo inevitável, o sangue e o sofrimento da presa nas presas do predador provaram ser uma misericórdia divina resultando na recuperação da espécie como um todo na ilha. Em poucos anos, o rebanho estava mais bem alimentado e mais saudável do que em qualquer época do meio século anterior em que vivia ali (The Seven Mysteries of Life (13), 474-75).

Aqui, o significado particular para a Teodiceia é que a perfeição deste mundo e do próximo reside na totalidade da miríade de modos, fatores e implicações interpenetrativos e interconectados desses nomes. Pois a “perfeição” de cada existente particular é apenas sobre os outros que, nessa medida, devem estar sujeitos a alguma privação, seja experimentada como dor, mal ou sofrimento. Um “bom emprego”, por exemplo, só existe em contraste com as formas menos recompensadoras pelas quais outras pessoas têm de ganhar a vida.

Além disso, uma certa complementaridade impregna os próprios termos em que a perfeição dos particulares é interpretada. Assim, o triunfo não tem sentido sem possibilidade de ruína, ou amizade sem possibilidade de inimizade, paz sem guerra, saúde sem doença, segurança sem perigo, poder sem humilhação ou vida sem morte. Assim, a privação e o mal existem para elucidar seu oposto, a felicidade e a perfeição humanas; não como qualquer “padrão absoluto” para medir o Divino, que antes os mede em sua totalidade. Servidão significa que se aceita que pertencem ao homem, não a Deus. Imam Juwayni, o sheikh de Ghazali nos princípios da fé, expressou isso, dizendo: “Não há bem nem mal nas ações de Allah Abençoado e Exaltado em relação à Sua divindade, pois todas as ações são iguais em relação a Ele, enquanto seus níveis, mas diferem em relação aos servos criados (al Aqida al Nizamiyya (11), 35-36).

Essa suprema soberania de Allah é, em última análise, a razão pela qual a Teodiceia, se discutida seriamente por religiosos de outras religiões, tem muito menos relevância para os muçulmanos. O ethos do Islam ou “submissão a Allah” não reduz a ordem do ser criado, com toda a sua complexidade, ao prazer ou dor, alegria ou sofrimento, bem ou mal, pois estes se referem a indivíduos criados. Em vez disso, reconhece que o universo é um contexto mais amplo, um teatro, uma sala de prova para as ações humanas espelharem os graus, sombras e nuances do amor ou da ira do Criador. A teofania do amor de Allah está na tawfiq humana ou “sucesso divinamente concedido” em obedecê-Lo. A teofania de Sua ira está no khidhlan humano ou no “abandono divino” de um servo ao seu próprio orgulho e loucura. Não há mistério sobre qual é qual, porque Allah nos enviou mensageiros para deixar isso claro, nos deu olhos e ouvidos para apreendermos sua mensagem, um intelecto para entendê-la e uma vida e morte para perceber isto. Agir de acordo com o que assim se sabe traz um hal iluminatório ou estado no qual a sabedoria do sofrimento e da privação é considerada como certa, porque o qurb, ou proximidade resultante, transmutou a experiência deles em tawfiq em vez de khidhlan.

5. Aceitação de Allah

Uma grande parte da tawfiq do homem é sabedoria, da qual Allah disse: “Ele dá sabedoria a quem Ele quer, e a quem é dada sabedoria foi dado um bem tremendo” (Alcorão 2: 269). Em sua aceitação comum, a sabedoria está associada a uma compreensão clarividente de assuntos que resistem à compreensão dos menos clarividentes. Os estudiosos do Islam definiram como “colocar uma coisa em seu verdadeiro lugar”, enquanto Ghazali chamou simplesmente de “aquilo que foi trazido pelo Mensageiro de Allah”. Certamente, reconhecer a sabedoria de Allah em tudo faz parte dessas definições e nisso está a chave para responder à pergunta “Por que Allah permite o sofrimento e o mal?”.

Se fizéssemos tal pergunta sobre um ser humano, seria uma indagação sobre um motivo, o que o moveu a permitir tais coisas. Mas Allah não é movido por nada, pela muito boa razão de que Ele já é perfeito, não admitindo qualquer aumento na perfeição de forma que buscá-la deva movê-lo a fazer algo. Sanusi menciona em seu célebre credo que a total dissimilaridade de Allah em relação às coisas criadas evita que Ele “tenha motivos, seja em ações ou decisões” (al Sanusiyya (1), 25). Então, “por que?” é logicamente sem sentido como uma investigação sobre as razões de Allah, embora seja significativo como uma investigação sobre os aspectos de Sua sabedoria divina que nossa própria sabedoria pode compreender. Mas se não compreendermos, o que acontecerá?

Sabedoria também significa aceitar Deus como Deus e o homem como homem. Nenhum homem pode abarcar mais do que uma parte infinitesimal do conhecimento do todo, que sozinha forneceria uma medida de sua perfeição e justiça. Sir Walter Scott relata que o imperador Napoleão certa vez sentiu que, como um conquistador do mundo, não seria difícil para ele dominar uma equipe de cavalos vigorosos presos a uma carruagem, embora normalmente fosse conduzido por um cocheiro. Ele subiu no assento e pegou o chicote, com a Imperatriz Josephine e outros abaixo como passageiros, e saiu conduzindo a carruagem, que capotou, sofrendo uma queda severa e perigosa. Sua única observação depois foi: “Acredito que todo homem deve se limitar ao seu próprio negócio” (Life of Napoleon (16), 9.238). Quanto à Teodiceia, o único ser capaz de julgar a perfeição de Deus em criar tudo é Deus. O homem é apenas uma parte e, por isso, pode conhecer apenas uma parte. Nossa própria experiência de vida nos ensina: “Nunca chame nada de infortúnio até que você tenha visto seu fim.” Aqui, um muçulmano diz: “Allah nos basta e é O Melhor em quem podemos confiar” (Alcorão 3: 173). Estas nunca foram pretendidas como meras palavras, mas também como um hal, nascido da proximidade de Allah que legou inteira confiança em Sua sabedoria.

Se todas essas conclusões se parecem com tantas heresias nos dias atuais, é apenas por causa do domínio sobre as mentes modernas da “falácia humanística”, apresentada pela primeira vez pelo sofista grego Protágoras, que disse: “O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto são, das coisas que não são, enquanto não são” (History of Philosophy (3), 1,87). Se, na verdade revelada, Deus é a medida do homem, no humanismo, como passou a ser entendido em nossa época, o homem é a medida de todo o conhecimento, de todos os valores e até de Deus. A este erro fundamental, levantado pelos dias modernos de um sofismo antigo a um ethos mundial, a revelação responde: “Pode ser que você não goste de algo, e isso é bom para você; ou talvez você goste de algo, e isso é ruim para você: e Allah sabe, enquanto você não sabe” (Alcorão 2: 216).

6. A Sabedoria Divina no Sofrimento e no Mal

A Teodiceia falha não apenas por causa da falácia humanística em tornar o infinito Divino análogo à limitação humana, mas também porque sua premissa crucial de que “Alguém justo e bom não permitiria o sofrimento e o mal se pudesse evitá-los” é contradita por muitos exemplos da sabedoria, justiça e bondade de Allah na criação que envolvem o sofrimento e o mal, dos quais os seguintes exemplos são mais claros apenas após uma pequena reflexão.

O próximo mundo

O valor de um sobre o infinito se aproxima de zero. Da mesma forma, o tempo que alguém passa neste mundo empalidece até a insignificância antes da eternidade, onde, no próximo mundo, cada um de nós perceberá que neste, “você pressagiava muito pouco” (Alcorão 23: 113). Allah colocou a história de cada ser humano em particular, a teofania criativa do Rahman ou Misericordioso, no contexto mais amplo do para sempre, a teofania especial do Rahim ou Todo-Compassivo para aqueles que eram Seus verdadeiros servos neste mundo. A eternidade da vida após a morte fornece a verdadeira medida e contexto dos sofrimentos transitórios desta vida, que são efêmeros em comparação.

Rumi alude a esta “resposta global” ao sofrimento em sua parábola da muda no meio do inverno sem folhas, estremecendo e murmurando para si mesma sobre a miséria do vento cortante e frio, incapaz de pensar porque Deus faria tal coisa. A resposta finalmente chega na forma da primavera, quente e verdejante. Na trajetória da vida de um crente e após a morte, quando chega a primavera, dura para sempre.

O Abismo Entre o Aqui e o Futuro

O significado das alegrias e sofrimentos neste mundo se diminuirá a nada antes do próximo, não apenas quantitativamente, por causa de sua eternidade, mas também qualitativamente por causa de sua natureza. O Profeta disse:

A pessoa que teve a vida mais agradável neste mundo, entre todas as pessoas do inferno, será convocada no Dia da Ressurreição e totalmente mergulhada no fogo do inferno, então perguntada: “Ó ser humano, você já viu algo de bom; você já sentiu uma única alegria?” e ele dirá: “Não, por Deus, meu Senhor”. E o sofredor mais miserável neste mundo, de qualquer povo do paraíso, será convocado e totalmente mergulhado no paraíso, então indagado: “Ó ser humano, você já viu algo ruim? Você já experimentou uma única miséria?” e ele dirá, “Não, por Deus, meu Senhor: eu nunca vi nenhum mal ou sofri uma única miséria” (Muslim (14), 4.2162: 2807. S).

Eles não estão mentindo, mas o que seu testemunho significa é que nada neste mundo pode ser chamado de “alegria” ou “miséria” em comparação com o próximo.

Alegria e sofrimento como sinais

Obviamente, as alegrias e sofrimentos deste mundo se empalidecem diante da eternidade, são tremendamente evocativos nos corações humanos das realidades do paraíso e do inferno. Abu Ali al Rudhabari costumava dizer: “O que Ele manifestou de Suas bênçãos indica o que Ele ainda esconde de Sua generosidade”. A experiência daqueles com marifa neste mundo é apenas um antegozo da incomensurabilidade da visão beatífica de Deus no próximo. Por sua vez, a doença é uma provação angustiante, especialmente psicologicamente, uma vez que a maioria de nós tende a se identificar intimamente com nosso corpo. Ainda assim, por meio de sua dor e angústia, compreendemos quão pouco poderíamos suportar o sofrimento sem fim, ensinando-nos a implorar a Allah que nos livre do fogo do inferno, servindo assim como meio de nossa libertação. Como Ibn Ata Illah disse: “Sempre que Ele afrouxar a sua língua com um pedido, saiba que Ele quer conceder a você” (Hikam (8), 37: 102).

Oração

O ponto central da adoração é suplicar ao Adorado. “Diga: ‘Meu Senhor nem mesmo se preocuparia com você se não fosse por sua súplica’” (Alcorão 25:77). Ao contrário de amigos, parentes e virtualmente todos os outros, Allah adora ser perguntado e não gosta de não ser. O Profeta disse: “Verdadeiramente, súplica é o que é adoração”, então ele recitou: “E seu Senhor diz: “Invoca-Me e Eu responderei: Na verdade, aqueles que são muito arrogantes para Me adorar entrarão inevitavelmente no inferno, totalmente humilhados” [40:60] (Ahmad (9), 4.271: 18.386. S). Além disso, como disse o Pobre Ricardo, “O perigo é o molho para as orações”: se não fosse pelos problemas, medos, inadequações e dores que o homem enfrenta, ele permaneceria afastado da porta da generosidade Divina e perderia uma enorme parte da adoração que o beneficia neste mundo e no próximo.

Triunfo sobre o sofrimento

Embora bem capaz de fazer isso, Allah não criou toda a humanidade no paraíso, mas antes desejou consumar sua felicidade perfeita e infinita com o conhecimento de que por Sua graça, eles triunfaram sobre todo sofrimento, limitação e mal para sempre. “Allah promete solenemente aos crentes, homens e mulheres, luxuriantes bosques do paraíso sob os quais correm os rios, permanecendo neles; e superando belas habitações nos bosques luxuriantes do Éden: E o mero prazer supremo de Allah é ainda muito maior. Esse é o poderoso triunfo” (Alcorão 9:72). Ele poderia ter criado todas as almas em uma praia como mariscos, alimentando-se com um filtro de um mar infinito e pacífico. Mas fazer isso seria sem nenhum desafio, sofrimento, purificação ou luta, ou qualquer uma das outras realidades que convêm à humanidade distinta que Allah fez de nossa dotação especial.

Liberdade

Muito do sofrimento e do mal neste mundo vem da desumanidade do homem para com o homem, que Allah não aceita, mas pune, às vezes neste mundo e às vezes no próximo. O homem não tem desculpa para isso,pois recebeu mensageiros que nos ensinam decência e bondade. Mas o dom do homem de ser capaz de decidir e escolher como tratar seu próximo, para o bem ou para o mal, é sua liberdade, uma perfeição que Allah em Sua sabedoria concedeu a cada um de nós.

A Exaltação da Escolha Humana

Allah elevou os riscos da existência humana de uma só vez ao valor mais alto possível e ao perigo mais terrível possível pelo fato do Dia do Julgamento, com suas consequências eternas. Embora a vida e as obras do homem sejam finitas, suas consequências são infinitas porque a determinação do homem, uma vez que ele se decidiu, é como ele pretende agir para sempre, se for capaz. O ateu endurecido que rejeita Deus como uma superstição irracional não tem a intenção de nunca acreditar e mudar, então, quando ele morre, ele é recompensado na medida de sua intenção, para sempre, fora da justiça de Allah. O crente que ama Allah e age de acordo com isso não tem a intenção de mudar, então, quando ele morre, ele também é recompensado na medida de sua intenção, para sempre, pela misericórdia de Allah.

O fogo do inferno eterno é um castigo terrível; mas alguém prevenido vale por dois e, após a revelação, é apenas o que seus habitantes escolheram para si mesmos: “Leia seu registro: você mesmo é suficiente hoje como alguém que fala contra você mesmo” (Alcorão 17:14). A ameaça existencial de um incêndio impediu que muitos erros iníquos neste mundo fossem infligidos a outros, embora eu nunca tenha ouvido falar de uma discussão intelectual sobre ética que o fizesse. O inferno é um perigo, mas é uma misericórdia para quem faz escolhas sensatas. Como a felicidade infinita do paraíso, seu efeito é exaltar o valor de cada momento da vida humana nesta morada, pela sabedoria de Allah.

Medo e esperança

Abu Ali al Rudhabari disse: “A certeza mais benéfica é aquela que exalta o Verdadeiro aos seus olhos, faz com que tudo ao lado Dele diminua neles e instila medo e esperança em seu coração”. O sheikh Abd al Wakil costumava dizer que o medo e a esperança eram as duas asas do crente, sem as quais ele não poderia ascender. Ambos evocam súplicas e Allah adora ser perguntado. Além disso, o medo e a esperança são obrigatórios. Imam Taqi al Din al Subki diz:

A posição espiritual (maqam) de cada homem é compatível com seu hal (estado), e seu hal com seu conhecimento do Divino (marifa). As pessoas variam imensamente nisso, ninguém sendo mais perfeito nisso do que o Profeta, enquanto as pessoas depois dele estão cada uma de acordo com sua própria posição, algumas possuindo muito, outras pouco. O medo é obrigatório: Allah Altíssimo diz: “Temei a mim, se fordes verdadeiros crentes” [Alcorão 3: 175], e o Altíssimo diz: “Portanto, nenhum de vós tema os homens, mas tema a mim” [5:44]. E a esperança é obrigatória, porque é o oposto do desespero, e o desespero é haram: Allah Altíssimo diz: “Em verdade ninguém se desespera do alívio enviado por Allah, exceto o povo dos incrédulos” [12:87], e O Altíssimo diz, “E quem desespera da misericórdia de seu Senhor, senão aqueles que estão totalmente perdidos? [15:56]” (Fatawa al Subki (18), 2.556).

No caminho sufi, o medo e a esperança devem ser percebidos pelo viajante desde o início. As possibilidades de sofrimento e liberação são essenciais para os estágios ascendentes do dhikr, em que o medo (khawf) e a esperança (raja) são transmutados primeiro, respectivamente, em reverência (hayba) e amor íntimo (uns), depois em rigor (jalal) e beleza (jamal), e então extinção e finalmente subsistência no Sublime (al Jalil) e no próprio Belo (al Jamil). O medo e a esperança, nestes estágios sucessivos, permanecem as duas asas do viajante, pois os mais apaixonados pelo Amado continuam a ser os mais temerosos de ofendê-lo e de serem expulsos de Sua presença. Como disse Abu Madyan: “A presença com Ele é o paraíso, e a ausência Dele é o inferno”. A possibilidade de punição e sofrimento continua a ser um estímulo no caminho da realização espiritual, mesmo em seus níveis mais elevados, até que o viajante tenha os dois pés no paraíso e possa ver por si mesmo o triunfo das transformações que Allah assim operou nele.

Castigo pelo pecado

Muito do sofrimento que o homem experimenta é recompensa pela desobediência. Allah diz: “Qualquer infortúnio que sobrevenha a você é pelo que suas próprias mãos ganharam, e Ele perdoa muito” (Alcorão 42:30) – que é a regra geral, para a qual alguns dos títulos discutidos acima e abaixo contêm exceções. Os estudiosos afirmam que cada decisão da Lei Sagrada foi revelada para nosso benefício, não para o de Allah. Os efeitos do certo e do errado são muito mais cruciais no mundo vindouro, mas como o versículo acima deixa claro, eles também são, pelo menos às vezes, punidos nisso. Para aqueles que Allah ama, a punição os leva de volta ao caminho do tawfiq e da obediência. Para aqueles com quem Allah está irado, a desobediência é punida por cometer outros atos de desobediência. Como disse o místico Muzayyin: “Um pecado após o outro é punição para o primeiro, e uma boa ação após a outra é a recompensa para a primeira”.

Um pecado que muitas vezes traz infortúnios inesperados neste mundo é revelar os pecados aos outros. Allah ordenou que escondêssemos todos os pecados, exceto quando isso levasse alguém a ser ferido. O Profeta disse: “Quem esconde as faltas de um muçulmano, Allah ocultará suas faltas neste mundo e no próximo” (Muslim (14), 4.2074: 2699. S). Isso inclui suas próprias faltas. O Profeta disse: “Todos da minha Umma serão perdoados, exceto aqueles que cometem iniquidades abertamente. Na verdade, a indecência aberta inclui um homem cometendo um ato à noite, e então pela manhã, quando Allah escondeu o que fez, dizendo: ‘Ó fulano, ontem à noite eu fiz isso e aquilo’. Ele passou a noite, seu Senhor tendo ocultado o que ele fez, e a manhã veio, e ele puxou o véu de Allah” (Bukhari (2), 8.24: 6069. S). No Islam, mencionar um pecado é, em si, um pecado. Quantas pessoas foram incapazes de resistir a contar a um amigo ou cônjuge a maldade que fizeram em sua vida anterior e Allah as puniu com nojo e desprezo no coração do outro, que nunca poderiam ser esquecidos completamente! Não há baraka no haram.

Existem outros pecados palpavelmente punidos neste mundo antes do outro, como o orgulho, maus-tratos aos pais ou opressão aos outros. O Profeta disse: “Cuidado com a oração do injustiçado, pois não há véu entre ela e Allah” (Bukhari (2), 3.169-70: 2448. S). A negligência também em relação à administração da ordem natural é punida por um mundo no qual não podemos comer, beber ou respirar sem absorver nossa própria sujeira. “A corrupção apareceu na terra e no mar por meio do que as mãos das pessoas ganharam, para deixá-las saborear algo do que fizeram, para que porventura se arrependam” (Alcorão 30:41).

O Exemplo do Paciente

Os inocentes, às vezes, são julgados com sofrimento, a fim de manifestar sua posição espiritual ou inspirar outros com seu exemplo. Os profetas, por exemplo, foram exemplos para a humanidade e seu sofrimento foi maior do que o de qualquer outra pessoa – não para puni-los ou purificá-los, pois eles já eram sem mancha, mas para ensinar à humanidade a paciência e fortaleza. O Profeta foi questionado: “Quem entre a humanidade está em maior aflição?” e ele respondeu: “Os profetas, depois os que mais se parecem com eles, depois os que mais se parecem com eles. Um homem é provado na medida de sua religião: se sua religião é firme, sua provação é grande; ao passo que se houver fragilidade em sua religião, ele é julgado de acordo com sua religião. A tribulação permanece com o servo até que o deixe caminhando na terra sem um único erro” (Tirmidhi (19), 4.601—2: 2398. S). No entanto, esta é provavelmente uma elucidação da exceção, que é a tribulação na vida dos justos, ao invés do caso geral, que é o fato de eles serem preservados dela – pois é uma sunna pedir a Allah que seja livre de aflições. O Profeta disse a Abu Bakr: “Peça a Allah pelo bem-estar (muafah), pois ninguém jamais recebeu nada, depois da certeza, que fosse melhor do que o bem-estar” (Ahmad ( 9), 1,3: 5. S).

O exemplo de outros

O homem vive em um grupo, pensa e fala em palavras e símbolos legados a ele por um grupo e se beneficia de uma política mais ampla da humanidade, tanto latitudinalmente, da comunidade de indivíduos e nações encontradas hoje, quanto longitudinalmente, das sucessivas gerações que partiram antes e deixaram para trás as riquezas da cultura e da civilização até nossos próprios tempos. Todos nós somos educados não apenas por nossas próprias vidas, mas pela vida dos outros, sejam eles indivíduos, grupos ou povos inteiros. O refinamento e educação de Rabb al Alamin abrange tanto indivíduos como coletividades. Allah nos ensina através da lição objetiva de civilizações anteriores, a quem Ele advertiu enviando-lhes orientação, mas que zombaram e encontraram a destruição, que por mais que possamos nos sentir como nação, criadores de guerra, comunidade de explicação científica e civilização, “Quem é mais poderoso do que nós no poder?” (Alcorão 41:15) foram as famosas últimas palavras de todos que as disseram. “Ou será que eles não viram que Allah, que os criou, é mais poderoso do que eles no poder?” (41:15). A humildade diante da onipotência é mero realismo, mas “o homem sempre foi quem mais disputou por todas as coisas” (18:54) e, sem a lição objetiva dos povos anteriores, a maioria de nós nunca entenderia isso. Não há injustiça nisso, pois “quando Allah envia uma punição sobre um povo, a punição atinge quem quer que esteja entre eles; então eles são exaltados, cada um de acordo com suas próprias obras” (Bukhari (2), 9.71: 8108. S). O exemplo de outros cujo orgulho e loucura causaram sua destruição é uma lição poderosa para não seguir seu caminho e, portanto, uma felicidade e misericórdia para aqueles que desejam aprender.

A Recompensa Divina

Os sofrimentos experimentados por pessoas boas neste mundo vêm da generosidade de Allah, que os beneficia com isso. O Profeta disse: “Nenhum muçulmano sofre de fraqueza, doença, preocupação, tristeza, irritação ou melancolia – mesmo o espinho que o pica – sem que Allah expie alguns de seus crimes (Bukhari (2), 7,148-49: 5642. S). Certa vez, ele disse sobre a satisfação de um muçulmano com o destino em tempos bons e ruins: “Um crente é como um grão brotando: onde quer que o vento sopre, ele balança; e quando o vento para, ele se endireita: ele se curva com aflição. E um homem perverso é como um cedro robusto, erguendo-se no alto até que Allah o separe quando quiser (ibid., 5644. S). O mensageiro de Allah também disse: “Quem quer que Allah queira para o bem, aflige de alguma forma” (ibid., 5645. S) – isto é, porque “Allah ama aqueles que são verdadeiramente pacientes” (Alcorão 3: 146). Por estas razões, o Profeta observou: “Que maravilha é a questão do crente, porque tudo o que lhe acontece é bom: se lhe sucede bem, ele mostra gratidão, e é melhor para ele; e se algo ruim lhe acontecer, ele mostra paciência, e é o melhor para ele” (Muslim (14), 4.2295: 2999. S).

Essa generosidade costuma se manifestar tanto em grupos quanto em indivíduos. No mundo natural, a consciência da dor, embora desagradável de suportar em um nível individual, é evolutivamente benéfica e adaptativa para os indivíduos possuírem ao ensiná-los o que evitar. Se o indivíduo morre, ele traz prosperidade à espécie como um todo por meio da seleção natural. Na sucessão de nações e civilizações, há uma seleção cultural de usos, instituições e invenções – a escrita, por exemplo – que são mais benéficas e úteis pelo menos em alguns aspectos do que as anteriores. “E quanto ao que beneficia as pessoas, permanece na terra” (Alcorão 13:17). Quando os inocentes são abusados ​​e sofrem, as leis passam a existir. Quando doenças os afligem, novos medicamentos são desenvolvidos. Das espécies que interagem com seu ambiente de maneiras complexas, a natureza oferece poucos exemplos que não podem sentir dor. É simplesmente muito vantajoso.

Resistência através da variação

A resistência aumenta com a diferença e a adversidade. Sidi Ali al Jamal, o sheikh de Mawlay al Arabi al Darqawi, diz em seu livro:

Perceba também que a sabedoria [hikma, aqui descrita como a causa que faz algo funcionar da maneira que funciona] que está por trás de todos os seres também está por trás do homem, ou seja, as variações. Allah criou o bem-estar e a preservação do homem por meio de variações e Allah prejudicou e destruiu o homem ao permanecer em uma condição ao invés de outra. O mesmo ocorre com todo ser; ele e o homem são o mesmo: assim é nas coisas materiais e, portanto, é nas coisas imateriais. Pois Allah Altíssimo é sábio e belo e tudo o que Ele criou é de sabedoria insuperável e beleza ilimitada. Tudo o que Ele criou para você, em você mesmo ou em todo ser, você necessita totalmente; enquanto Ele disse: “Ainda assim, eles estão em desacordo” [Alcorão 11: 118]. A variação é, portanto, o meio de sobrevivência do homem e de todos os seres, e a falta de variação constitui os meios de destruição do homem e de todos os seres. Por isso, você pode ver que o homem, como todos os seres, enquanto varia sua comida, suas palavras, o que ouve, vê ou cheira, seu andar ou sentar, mover sua mão ou deixá-la descansar, se mover sua virilha ou deixá-la descansar – então ele está melhorando sua saúde, tanto física quanto espiritualmente. E enquanto ele permanecer estaticamente fixo em uma coisa, sem o seu oposto, a corrupção o impregnará na medida em que ele permanecerá fixo. Tanto é assim que, se ele persiste por tempo suficiente em sua fixação e permanece com ela, ele se atrofia e finalmente perece. Sempre que ele diz: “Isso é apropriado” ou “Isso é impróprio”, ele ignora a sabedoria de Deus, tanto em si mesmo quanto nos outros. Essa sabedoria resume a saúde dos corpos, a saúde das almas e a saúde de todos os seres. E o mesmo ocorre com o aumento: não há nenhum, exceto por meio da variação. Ou diminuição: não há nada, exceto por falta de variação – seja em todos os seres, ou no homem (Maani al insan (10), 181-81).

Estase não é natural para os seres humanos. Sem sono e vigília, fome e saciedade, dor e alívio, pobreza e riqueza, tristeza e alegria, o homem não prosperaria neste mundo.

Estímulo para o crescimento espiritual

O Profeta disse: “A paciência é uma luz insuperável” (Muslim (14), 1.203: 223) e alguns Sufis, como os Malamatiyya ou “seguidores do caminho da culpa”, têm considerada paciência com a dor psíquica, particularmente a do escárnio, censura e desprezo dos outros, um meio de podar a falta de sinceridade espiritual. Os sheikhs desta escola, Hamdun de Nishapur e outros, notaram que o coração presta uma atenção excessiva ao que os outros pensam e que o amor pelo respeito dos outros muitas vezes é um motivo para falta de sinceridade para com Allah. Eles descobriram que quebrar os hábitos normais da mente, o desamparo resultante e o desânimo por ser deixado sem ninguém ou nada para ajudar – exceto Deus – era um meio para abrir uma porta entre a alma e o Divino. Mawlay al Arabi al Darqawi usou isso metodicamente para precipitar a compreensão em seus discípulos de que não havia recurso de Allah exceto a Ele. Quando os discípulos o tomaram como seu sheikh, ele os fez dar tudo o que possuíam e então irem mendigar de porta em porta, especialmente em bairros onde eles eram bem conhecidos e certamente enfrentariam insultos e humilhações. Foi muito eficaz em quebrar egos e Darqawi encheu o Norte da África com awliya e arifin. Ibn Ata Illah diz: “Nada implora mais por você do que a necessidade absoluta; nem nada é mais rápido em trazer dons divinos do que humilhação e carência” (Hikam (8), 43: 129). Eu, pessoalmente, experimentei algo da baraka disso quando me mudei para a Jordânia, em 1980. Eu tinha trabalhado na pesca marítima por alguns anos, era grande e achava difícil – até que vários anos de doença hepática crônica, nunca identificada com precisão, me deixaram muito fraco para andar mais do que cinquenta metros sem exaustão. Poucas coisas me beneficiaram mais do que este período sombrio e angustiante, a partir do qual eu finalmente percebi que só Allah estava no controle e que “o homem verdadeiramente foi criado fraco” (Alcorão 4:28). Abul Hasan al Shadhili experimentou isso tantas vezes em seu próprio caminho que disse: “Por Deus, eu não vi triunfo, exceto na humilhação.” Claramente de forma mística, a noite escura da alma muitas vezes precede o amanhecer da iluminação. O sofrimento é apenas parte da história.

Tentativas

Os sofrimentos são uma prova espiritual de Allah, que diz: “Nós o provamos com o mal e com o bem como um teste e a Nós serás devolvido” (Alcorão 21:35). Dúvidas sobre a misericórdia de Allah, desespero com o destino, o waswasa do Diabo em implantar a própria questão que estamos tratando aqui no coração e ofuscar a resposta – todos esses sofrimentos são um teste de Allah. Os sufis dizem que as pessoas são de quatro categorias em seus testes:

Se alguém se mostra paciente com o teste e o vive, significa que está passando por ele. Allah diz: “O paciente deve receber seu salário totalmente, sem acerto de contas” (Alcorão 39:10).

Se alguém se beneficia do teste aprendendo, mudando e ganhando experiência que evitará testes semelhantes no futuro, isso é característico do dervixe, cujo caminho depende de se beneficiar tanto de seu bem quanto de seu mal. Ele se beneficia de seu bem agradecendo a Allah por isso e não se virando para olhar para ele; beneficia-se de seu mal com o coração partido, o arrependimento e para nunca mais voltar a cometê-lo. Ele também se beneficia do mal dos outros, mudando-o com sua língua, sua mão ou por uma oração em seu coração, e se é incapaz de mudá-lo, beneficia-se ao perceber que isso é mau, o que é recompensado por Allah como fé no que os profetas ensinaram. Um sufi é uma pessoa que não pode deixar de se beneficiar enquanto estiver viajando.

Se uma pessoa está satisfeita com Allah por honrá-la com o teste, e aspira ter sucesso em obter Seu bom agrado, então o teste significa um aumento espiritual e significa que essa pessoa é um awliya e, além disso, está em uma posição elevada entre os outros, pois os testes de Allah raramente são exceto naquilo que alguém tem de mais caro, e são proporcionalmente mais difíceis para aqueles de posição superior. Shibli costumava dizer: “Allah elevar os graus espirituais de Seus servos é proporcional à angústia deles: se Ele tivesse derramado sobre o awliya o peso de uma formiga do que Ele derramou sobre os profetas, eles teriam derretido e sido eliminados.

Finalmente, se alguém está amargurado com o teste e ressentido com o destino de Allah, isso significa que está falhando, a menos que vire as costas para o Diabo e a si mesmo, tome o caminho do arrependimento e volte para uma das outras categorias.

O sofrimento dos outros

Os sofrimentos dos inocentes, como desastres naturais, doenças ou a desumanidade de outros, são temporários e serão uma fonte de triunfo na próxima vida, a esfera infinita do nome de Allah, al Rahim, o Todo-Compassivo. As crianças que morrem encontram a bem-aventurança eterna.

Neste mundo, o sofrimento dos inocentes é igualmente uma prova para espectadores e observadores, que não são inocentes se podem fazer algo para aliviá-los. O Profeta disse: “O crente não é alguém que passa a noite enquanto seu vizinho está com fome” (Mustadrak (5), 4.167. S). Estudiosos da Lei Sagrada mencionam que, embora alguns deveres no Islam sejam de valor definido, como as cinco orações diárias, o jejum no mês do Ramadan, o hajj uma vez na vida – outros são igualmente obrigatórios, mas de valor indefinido, como cooperar com um outro em boas obras, alimentando os famintos, ajudando os necessitados ou prestando socorro em desastres. Alguém que pode ajudar um sofredor gastando seu dinheiro, seu tempo, sua influência, seus conselhos ou, pelo menos, suas orações. Pela sabedoria de Allah, este também é o julgamento da humanidade “com o bem e o mal, como um teste” (Alcorão 21:35).

Caindo na Real

Nosso Criador advertiu o homem contra ligar seu coração a este mundo, na língua de Seus profetas nas revelações de todas as eras e povos anteriores, e neste versículo, dizendo: “Nem é a vida presente exceto um desvio e frivolidade; e verdadeiramente a Morada Final é a vida que não perece, se eles apenas soubessem” (Alcorão 29:64). Abdullah ibn Umar disse: “O Mensageiro de Allah me pegou pelos ombros e disse: “Esteja neste mundo como se você fosse um estranho ou um viajante na estrada” (Bukhari (2), 8.110: 6416).

Colocar esperanças em algo que deve desaparecer é uma falta de senso de realidade. Como as lâmpadas, cujos fabricantes são capazes de fazer um vácuo perfeito em que o filamento nunca oxida e, portanto, a lâmpada nunca precise ser substituída, mas em que deixam um traço de oxigênio para que mais lâmpadas precisem ser consumidas no futuro, este mundo foi propositalmente projetado por seu Criador para ficar aquém das expectativas humanas. Este é o lutf ou “todo-sutil amor-bondade” de al Latif, O Onisciente e Todo-Solícito para com Seus servos. Se a dor, o desapontamento e a sordidez deste mundo fossem menos evidentes, as pessoas esqueceriam a beleza infinita do Amado e a morada de Sua generosidade ilimitada. Ibn Ata Illah diz: “Ele sabia que você não aceitaria um mero conselho, por isso Ele fez com que você experimentasse seu sabor, para torná-lo mais fácil para você deixá-lo” (Hikam (8) 62: 230).

Recorrendo ao Criador

Os sofrimentos são frequentemente causados ​​por outras pessoas, como Allah diz: “E fizemos de vocês uma prova para outros: vocês serão pacientes?” (Alcorão 25:20). Allah prova o pobre vendo o rico e se perguntando por que ele não é como ele, prova o mal vendo o bem, prova o humilde vendo o nobre, prova esposas com maridos e maridos com esposas, prova pais com filhos, e filhos com pais, tenta professores com alunos que vão mal. Todos esses testes informam aos testados que o que eles realmente querem não está nas mãos de outras pessoas para dar, mas apenas em Allah. Ibn Ata Illah disse: “Ele apenas fez com que o aborrecimento aparecesse em suas mãos para que você não ficasse satisfeito com eles. Ele quer fazer você se cansar de tudo, para que você não se distraia Dele por nada” (Hikam (8), 63: 235). Este é o ponto de toda a nossa dor e decepção, seja de nós mesmos ou de outros: que seja um meio para Allah. Como disse o sheikh al Buzidi: “Tudo o que você deseja se encontra na Entidade de Deus”.

Gratidão por Bênçãos

No nível pessoal, o sofrimento ensina o homem a agradecer a Deus por suas bênçãos. Ibn Ata Illah diz: “Quem não aprecia o valor das bênçãos por tê-las, apreciará por perdê-las” (Hikam (8), 56: 199), e disse: “Quem é ingrato pelas bênçãos tornou-se responsável por perdê-las, enquanto quem lhes mostra gratidão as amarrou com as suas verdadeiras amarras” (ibid., 29: 64). É relatado que o Profeta uma vez “pediu a sua família algo para comer com seu pão, e eles disseram: ‘Não temos nada além de vinagre’. Ele pediu um pouco e começou a comer com ele, dizendo, ‘Que molho de vinagre esplêndido! Que molho de vinagre esplêndido!” (Muslim (14) 3.1622: 2052. S) – ensinando-nos não apenas a mostrar tato e graciosidade em todas as circunstâncias, mas também a sunna de exaltar até mesmo as menores bênçãos. Esta última era sua prática inevitável, não por ingenuidade ou ignorância de bênçãos maiores, mas porque cada bênção menor, se pensarmos por um momento, pressupõe para ser desfrutado uma infinidade de bênçãos importantes, como saúde, vida, segurança, tempo e liberdade; bem como estar livre da dor, necessidade, opressão, injúria e milhares de outros infortúnios. Ou seja, de um ponto de vista mais concreto, realmente não há bênçãos menores. Sem privação, não contaríamos nossas bênçãos, o que torna a privação, para a maioria de nós, uma bênção.

Perfeição da Gnose

Por sofrimento, perda e privação, Allah aperfeiçoa o conhecimento experiencial de arif do Divino. Pois conhecer o Um envolve não apenas conhecê-Lo em Sua entidade (dhat), mas em Seus nomes e atributos, em Suas regras, que ordenam e hierarquizam as relações entre as coisas existentes, e em Suas ações, das quais o mundo e tudo o que ele contém são os mais palpáveis.

A marifa dos sufis está no limite superior de todo um contínuo de Iman ou fé e, como ela, é díspar em grau entre aqueles a quem é concedida. Abul Hasan al Shadhili, em sua Grande Litania, costumava orar pela “vasta gnose” (marifa wasia), não para sugerir que nunca foi nada além de vasta, mas para reconhecer o abismo entre o conhecimento humano, embora sublime, e O conhecimento perfeito de Deus de Si mesmo. O sheikh Abd al Rahman também neste sentido costumava dizer, com Ibn al Arabi, que “ninguém conhece a Deus senão Deus”. No entanto, o pedido de Abul Hasan por “vasto conhecimento” também leva outros a se esforçarem para expandir sua marifa ainda mais neste abismo infinito. Um dos meios mais reveladores de fazer isso é a firmeza em contemplar o Divino no momento da prova. Ibn Ajiba estimula leitores misticamente inclinados a usá-lo, dizendo: “Quanto àquele que conhece [Allah] na beleza divina, mas não no rigor e majestade divina, ou quando dado a, mas não quando negado, ou em triunfo mas não na humilhação, na saúde mas não na doença, no bem-estar mas não na aflição, na riqueza mas não na pobreza, na facilidade mas não nas dificuldades – tal pessoa é mentirosa” (Iqadh al himam (6), 489).

A última palavra é, talvez, uma espécie de hipérbole, pois quando Allah testa alguém, mesmo um servo que tem marifa, é da natureza de um teste divino levar o indivíduo ao limite de suas capacidades. Caso contrário, não seria um teste. Nas ministrações do Dr. Marcel Carret ao Sheikh al Alawi enquanto ele estava prestes a morrer, por exemplo, quando ele perdeu a consciência, o médico injetou nele um estimulante que o trouxe de volta daquele local distante. O sheikh acordou com uma reprovação nos lábios por afastá-lo de seu Amado. Carret escreve:

“ (…) Ele abriu os olhos e me olhou com ar de censura.

‘Por que você fez isso?’, ele disse. ‘Você deveria ter me deixado ir. Não há razão para me impedir. O que tem de bom?’

‘Se estou ao seu lado’, respondi, ‘é porque Deus assim o quis. E se Ele quis, foi para que eu pudesse cumprir meu dever de médico você’.

‘Muito bem’, disse ele. ‘In sha ‘Allah’” (se Deus quiser) (A Sufi Saint (12), 31).

Naquele momento de separação violenta após proximidade, e em um extremo de fraqueza física, a opacidade do Sheikh al Alawi ao contemplar o médico, que afinal era apenas um meio de efetuar a vontade divina, foi sucedida por um grau mais alto de reconhecimento, expandindo seu conhecimento do Divino. Como Ibn Ata Illah diz: “Meu Senhor, eu percebo a partir da diversidade de vestígios fenomenais e as transformações de estágios sucessivos, que o que Tu queres de mim é que Te revelas a mim em tudo, para que eu não ignore Você em qualquer coisa” (Munajat (8), 82: 11).

Falta de progresso no caminho espiritual

Sofrimentos espirituais incluem aqueles de murids cujo suluk estagnou. Quando, no início da minha tariqa, uma vez reclamei com o Sheik Abd al Rahman sobre minhas ocasionais baixas e desânimos, ele me disse: “Allah faz a expansão espiritual (bast) e a contração (qabd) alternarem no coração humano, como a noite alterna com o dia, até que Allah o faça somente com Ele”. Além dessas oscilações, há os períodos de aridez espiritual que às vezes se instalam após o início do caminho de um discípulo como um teste de Allah de sua autenticidade. Qualquer um pode ser um servo quando é fácil, mas quem será um servo quando é difícil? A verdadeira servidão significa tawakkul (confiança em Allah) e continuar na servidão, aconteça o que acontecer. Como Ibrahim al Dasuqi disse: “Quem quer que Allah teste, que suporte pacientemente, pois Ele só o provou a fim de exaltá-lo – ou livrar-se dele”.

Mas quando o progresso espiritual é retido por muito tempo, o discípulo pode muito bem enfrentar um obstáculo básico, como orgulho, falta de contentamento ou poluição ruh por internalizar os pontos de vista, objetivos ou caráter daqueles que estão espiritualmente mortos. Esses obstáculos podem permanecer sem solução por anos, “colocando uma boa cara neles” e não retornando ao sheikh. Nesse caso, a dor causada pela falta de progresso é uma mensagem de Deus para o murid de que ele tem um problema de atitude e deve voltar ao básico. Uma tariqa consiste não apenas em um discípulo, mas em um mestre por cuja orientação o discípulo realiza sua jornada quando tem adab e perseverança. O sofrimento é um presente de Allah quando nos traz de volta ao caminho do sucesso e, muitas vezes, é o prenúncio do crescimento divino, como Ibn Ata Illah diz: “As necessidades intensas que aparecem são os dias de festa dos discípulos” (Hikam (8), 52: 174).

Alienação de Allah

Outro sofrimento espiritual mais comum é a alienação de Allah por causa do pecado. A sabedoria nisso é que a pessoa se arrepende e renova sua proximidade com Allah. Ibn Ata Illah diz: “Quantos pecados que trouxeram humilhação e necessidade foram melhores do que um ato de adoração que trouxe triunfo e arrogância” (ibid., 36: 96). Nesse sentido, o Profeta disse: “Por Aquele em cujas mãos está minha alma, se todos vocês não pecassem, Allah acabaria com vocês e traria um povo que pecou e pediu perdão a Allah, e Ele perdoou (Muslim (14), 4.2106: 2749. S). Quando o pecado não é seguido pelo arrependimento, a sabedoria divina nele contida é uma lição objetiva para os outros por meio da destruição e perdição do indivíduo, dependendo de quais nomes divinos ele se manifesta, como o Vingador, o Humilhador ou outro.

Por fim, as manifestações da sabedoria divina no sofrimento são muitas. A maioria dos sofrimentos nos ensina o desapego de tudo, exceto de Allah. Alguns, como os dos profetas e santos, inspiram-nos um senso da exaltação espiritual de quem sofre e sua fortaleza. Alguns nos mostram a magnitude da bênção divina do alívio após a angústia. Todos revelam àqueles com sabedoria a imensidão da perfeição divina, beleza, soberania e justiça, “mas ninguém se lembra, mas os mais límpidos” (Alcorão 2: 269). Mesmo um pouco de sabedoria mostra a nulidade da ideia de que “alguém justo e bom não permitiria o sofrimento e o mal se pudesse evitá-los”. Até mesmo sugerir isso mostra uma profunda falta de realismo sobre a natureza humana, que dificilmente poderia ser esperada de alguém que viveu algum tempo neste mundo e lidou com pessoas, muito menos de alguém que as criou.

7. Conclusões: A Natureza do Mal

Para resumir tudo o que dissemos, os aspectos anteriores da sabedoria divina são revelados por uma atitude existencial (hal) de total confiança em Allah, cuja marca é husn al dhann bi Llah, ou sempre pensando o melhor de Allah. Aqueles que o possuem não inventam situações hipotéticas e então sobrecarregam Allah com eles, mas se limitam a eventos concretos que sabem que aconteceram, e cujos detalhes são totalmente conhecidos por eles. “Sofrimento”, em geral, é uma realidade abstrata hipostatizada, pois o sofrimento da parte pode muito bem acarretar no benefício do todo, ou um dos muitos outros aspectos da sabedoria que mencionamos.

Voltemos, por um momento, ao silogismo com o qual começamos:

(1) Deus é todo-poderoso.

(2) Deus é justo e bom.

(3) Alguém justo e bom não permitiria o sofrimento e o mal se pudesse evitá-los, mas ambos existem no mundo.

(4) Portanto, Deus não é onipotente ou não é justo e bom.

De nosso conhecimento de tawhid, a divina unidade e singularidade, está claro por que a conclusão “Portanto, ou Deus não é todo-poderoso, ou não é justo e bom” não segue essas premissas; a saber, porque seus termos-chave “justo” e “bom” são ambíguos: eles são usados ​​na premissa (2) conforme se aplicam a uma ordem de ser, a do Divino; enquanto na premissa (3) são usados ​​tanto como se aplicam ao Divino, como se aplicam a uma ordem inteiramente distinta de ser, a do homem – de quem geralmente é verdade que “alguém justo e bom não permitiria o sofrimento e mal se ele pudesse evitá-los” – mas nem sempre, mesmo assim, já que alguém justo e bom pode muito bem escolher o “menor de dois males”, ou impor sofrimento temporário por digamos, uma cirurgia, para efetuar uma cura, ou por inúmeros outros motivos eticamente válidos. E nossos cerca de vinte exemplos na seção anterior mostraram quanto menos a primeira afirmação da premissa (3) se aplica a Deus.

Vimos que a autonomia de Allah, Sua suprema perfeição em Si mesmo e o fato de que o homem não é um coparticipante (sharik) dela acarretam em uma série de consequências:

Em primeiro lugar, a bondade, justiça, misericórdia e outros atributos de Allah só podem ser apreendidos por nós na medida em que nosso entendimento humano pode absorver a luz do que Ele nos revelou sobre eles no Alcorão e na sunna do Profeta. Como Abul Hasan al Shadhili disse em sua Litania da Luz:

“Não posso contar com Seu louvor, Você é como Você louvou a Si mesmo: Na verdade, Você é muito majestoso até mesmo para louvores, que são apenas acidentes indicando Sua generosidade que Você nos concedeu na língua de Seu mensageiro para que possamos adorá-Lo em nossa própria medida, não na Sua” (Awrad al Tariqa al Shadhiliyya (17), 38).

Em segundo lugar, a justiça de Allah é intrinsecamente diferente da justiça humana. “Moralmente responsável” significa nada mais, nada menos, do que “responsável perante Allah”. Não faz sentido perguntar se Ele é justo, porque Seu julgamento é o que a justiça é. “Ele não é responsável por nada que faça, e sim eles são responsáveis” (Alcorão 21:23).

Terceiro, por causa da natureza limitada e fragmentária de nosso conhecimento sobre o passado, presente e futuro (para não falar dos detalhes do cosmos, nossos próprios motivos, os dos outros, as partes da vida dos outros que não vemos, e acima de toda a eternidade), somente por meio da qual as consequências do presente se tornarão transparentes para a compreensão, o sofrimento e o mal permanecem pelo menos em algum grau opacos nesta vida. Seu conhecimento total, se formos realistas sobre os nossos próprios limites, deve ser entregue ao Criador.

Quarto, porque Allah é a realidade primária e as particularidades que conhecemos imperfeitamente derivam somente Dele. Sua própria perfeição implica que, da perspectiva da onisciência, o mundo é perfeito, embora apenas pareça imperfeito, mau e cheio de sofrimento desnecessário sob um ponto de vista humano que é limitado e incompleto.

Em outras palavras, a realidade em sua totalidade, o verdadeiro concreto, é a infinitude de Allah e Sua perfeição ilimitada. O arifin (aquele que conhece Allah direta e experiencialmente), homens como Imam Ghazali, Mawlana Rumi, Sheikh al Alawi, ou Sheikh Abd al Rahman (Allah esteja bem satisfeito com eles), percorreram o caminho até Ele e perceberam essa perfeição ao contemplar sua Fonte, dizendo com Abd al Ghani al Nabulsi: “Meus olhos para nada além de Sua beleza não contemplam” (Diwan (15), 1.246). Seu ponto de vista espiritual revelou a eles a afirmação radical de tudo que vem de Deus, e eles disseram a uma voz, como o próprio Profeta disse: “Toda a criação de Allah Poderoso e Majestoso é boa” (Ahmad (9), 4.390: 19475. S), ou como nosso sheikh costumava expressar: “Se qualquer um de vocês englobasse o Invisível em conhecimento, não escolheria nada além do que é”. Pois tudo o que existe só existe por meio da disposição perfeita de Allah sobre Sua própria soberania: Ele faz o que quer e governa como ordena. A pergunta óbvia para o homem é: por que não se esforçar para ganhar Seu eterno favor e bem-aventurança, em vez de Sua eterna ira e punição?

Finalmente, de tudo isso podemos entender a natureza do mal, e que é inimigo do homem, não de Deus. O mal é a rebelião contra o Divino que não é seguida de arrependimento.

Fontes

(1) al-Bajuri, Ibrahim ibn Muhammad, and Muhammad ibn Yusuf al-Sanusi. Hashiya al-Shaykh Ibrahim al-Bayjuri [sic.] ‘ala Matn al-Sanusiyya [Bajuri’s Hashiya printed with Sanusi’s al-‘Aqida al-sughra in the margins above al-Anbabi’s Taqrir]. Cairo: Dar Ihya’ al-Kutub al-‘Arabiyya, 1347/1929.

(2) al-Bukhari, Muhammad ibn Isma‘il. Sahih al-Bukhari. 9 vols. Cairo 1313/1895. Reprint (9 vols. in 3). Beirut: Dar al-Jil, n.d.).

(3) Copleston, Frederick. A History of Philosophy. 9 vols. Norwich: Burns Oates and Washbourne, 1947.

(4) al-Ghazali, Abu Hamid. Ihya’ ‘ulum al-din [with Zayn al-Din al-‘Iraqi’s al-Mughni ‘an haml al-asfar containing notes on its hadiths printed below it, and ‘Umar al-Suhrawardi’s ‘Awarif al-ma‘arif on its margins]. 4 vols. 1347/1929. Reprint. Beirut: ‘Alam al-kutub, n.d.

(5) al-Hakim, Abu ‘Abdullah Muhammad. al-Mustadrak ‘ala al-Sahihayn [with Imam Dhahabi’s Talkhis evaluating its hadiths printed below]. 4 vols. Hyderabad, 1334/1916. Reprint (with index vol. 5). Beirut: Dar al-Ma‘rifa, n.d.

(6) Ibn ‘Ajiba, Ahmad ibn Muhammad, and Ahmad ibn Muhammad Ibn ‘Ata’ Illah. Iqaz al-himam fi sharh al-Hikam [Ibn ‘Ata’ Illah’s al-Hikam al-’Ata’iyya printed with Ibn ‘Ajiba’s commentary]. Cairo: Mustafa al-Babi al-Halabi wa Awladuhu, 1392/1972.

(7) Ibn al-‘Arabi, Muhyiddin. al-Futuhat al-Makkiyya. 4 vols. Cairo, 1329/1911. Reprint. Beirut: Dar al-Fikr, n.d.

(8) Ibn ‘Ata’ Illah, Ahmad ibn Muhammad. al-Hikam al-‘Ata’iyya wa al-munajat al-ilahiyya. Ed. Ahmad ibn ‘Ubayd. Damascus: al-Maktaba al-Arabiyya, 1393/1973.

(9) Ibn Hanbal, Ahmad. Musnad al-Imam Ahmad Ibn Hanbal. 6 vols. Cairo 1313/1895. Reprint. Beirut: Dar Sadir, n.d. [Nas citações dos escritores presentes neste documento, após o volume e o número da página desta edição do Musnad (que é o padrão), o número do hadith e sua avaliação de autenticidade foram fornecidos a partir de outra edição mais recente:] Ibn Hanbal, Ahmad. Musnad al-Imam Ahmad Ibn Hanbal. Eds. Shu‘ayb al-Arna’ut et. al. 50 vols. [including five vols. 46—50 of indexes,]. Beirut: Mu’assasa al-Risala, 1995/1416—1421/2001.

(10) al-Jamal, ‘Ali. al-Yawaqit al-hisan fi tasrif ma‘ani al-insan. Edited with notes by Mokrane Guezzou. Amman: Mokrane Guezzou, [2000] n.d.

(11) al-Juwayni, Abul Ma‘ali. al-‘Aqida al-Nizamiyya. Edited with introduction and notes by Muhammad Zahid al-Kawthari. Cairo: Maktaba al-Azhar li al-Turath, 1412/1992.

(12) Lings, Martin. A Sufi Saint of the Twentieth Century: Shaikh Ahmad al-‘Alawi. Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 1973.

(13) Murchie, Guy. The Seven Mysteries of Life. Boston and New York: Houghton Mifflin Company, 1999.

(14) Muslim ibn al-Hajjaj. Sahih Muslim. Ed. Muhammad Fu’ad ‘Abd al-Baqi. 5 vols. Cairo 1376/1956. Reprint. Beirut: Dar al-Fikr, 1403/1983.

(15) Nabulsi, ‘Abd al-Ghani. Diwan al-haqa’iq wa majmu‘ al-raqa’iq. 2 vols. Bulaq 1270/1854. Reprint (2 vols. in 1). Damascus: ‘Abd al-Wakil al-Durubi, n.d.

(16) Scott, Sir Walter. The Life of Napoleon Buonaparte [sic.], Emperor of the French, With a Preliminary View of the French Revolution. 9 vols. Edinburgh: Longman, Rees, Orme, Brown, and Green, 1827.

(17) al-Shadhili, Abul Hasan, e sheikhs de sua tariqa. Awrad al-Tariqa al-Shadhiliyya. Ed. by Nuh Ha Mim Keller. Amman: Dar al-Zahid, 1418/1997.

(18) al-Subki, Taqi al-Din. Fatawa al-Subki. 2 vols. N.p., n.d. Reprint. Beirut: Dar al-Ma‘rifa, n.d.

(19) al-Tirmidhi, Abu ‘Isa. Sunan al-Tirmidhi. Ed. Muhammad Fu’ad ‘Abd al-Baqi. 5 vols. Cairo n.d. Reprint. Beirut: Dar Ihya al-Turath al-‘Arabi, n.d.

Fonte: Unto the One

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