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Sharî`ah, Tarîqah e Haqîqah – As Três realidades do Islam

Tariqah, ou Via Espiritual que é comumente conhecida sob o nome tasawwuf ou Sufismo, é a dimensão esotérica e interior do Islam e assim como a sharia, tem suas raízes no Alcorão e na prática profética. Representado o coração da mensagem islâmica, de mesmo modo como o coração físico está escondido da visão exterior.  Insistimos – como o coração é a fonte interna da vida e o centro que coordena interiormente todo o organismo religioso do Islam; a tariqa é o aspecto mais sútil e difícil do Islam para se compreender, ao mesmo tempo que seu efeito externo é visto em muitas manifestações da sociedade islâmica e da civilização em geral. Nossa tarefa aqui é delinear os princípios essenciais da Tarîqah e suas raízes corânicas. Trata-se de delinear as características que tipificam a espiritualidade islâmica da qual a Tarîqah é o curador e para a qual fornece os meios de realização.

Conforme previamente apontado, a sharia é a Lei Sagrada em virtude da qual a aceitação implica na transformação do homem em muçulmano. Apenas vivendo de acordo com seus preceitos o homem pode adquirir o equilíbrio que é a base necessária para entrar na via espiritual, ou tariqah.

“Apenas um homem que sabe andar em terreno plano pode esperar escalar uma montanha”

Sem a participação na sharia, a vida da tariqah seria impossível e, de fato, esta última está entrelaçada em suas práticas e atitudes com as práticas prescritas pela sharia.

Alguns dos mestres sufi tradicionais, especialmente os da ordem Shadhiliyah, usaram o símbolo geométrico de um círculo para descrever a relação entre essas dimensões fundamentais do Islam. A partir de qualquer ponto no espaço pode-se gerar um círculo e um número indefinido de raios que ligam cada ponto da circunferência ao centro do circulo. A circunferência é a sharia cuja totalidade compreende toda a comunidade muçulmana. Todo muçulmano em virtude de aceitar a lei sagrada é como um ponto permanente neste círculo. Os raios simbolizam as turuq (plural de tariqah). Cada raio é um trajeto da circunferência ao centro. Como dizem os sufis, existem tantos caminhos para Deus quanto são numerosos os filhos de Adão. A Tariqah, que existe em muitas formas diferentes corresponde aos diferentes temperamentos e necessidades espirituais dos homens, é o raio que liga cada ponto ao Centro. É somente em virtude de estar na circunferência, isto é, de aceitar a Sharia, que o homem pode descobrir diante de si um raio que leva ao Centro. Somente seguindo a Sharia a possibilidade de ter a porta da vida espiritual aberta se realiza.

Finalmente no Centro há a Haqiqah ou a Verdade que é a fonte tanto da Tariqah como da Sharia. Assim como geometricamente o ponto gera tanto o raio como a circunferência, também metafisicamente Haqiqah cria tanto a Tariqah como a Sharia, a Haqiqah ou Centro, que está “em toda parte e em nenhum lugar”.  A Lei e o Caminho foram ambos trazidos independentemente por Deus, que é a Verdade. E ambos refletem o Centro de maneiras diferentes. Participar da Sharia é viver sob o reflexo do Centro ou Unidade, pois a circunferência é o reflexo do Centro. Representando, portanto, a causa necessária e suficiente para viver uma vida inteira e ser “salvo”. Mas há sempre aqueles cuja constituição interior é tal que eles não podem apenas viver na reflexão do Centro, mas devem procurar alcançá-lo. Seu Islam é trilhar o caminho (tariqah) para o Centro. Para eles, a Taríqah é providencialmente o meio pelo qual eles podem alcançar esse final ou meta final, esta Haqiqah que sendo a origem de todas as coisas, é onde se origina uma tradição integral que compreende uma Lei e o Caminho ou uma circunferência e os raios.

Embora o Islam, na sua totalidade, tenha sido capaz de preservar ao longo da sua história um equilíbrio entre as duas dimensões da Lei e do Caminho, houve ocasionalmente aqueles que enfatizaram um em detrimento do outro. Houve aqueles que negaram os raios em favor da circunferência, que negaram a validade da Tariqah à luz do Sharia. Alguns deles tiveram a função, como guardiões da Sharia, de defendê-la e a sua absoluta necessidade, enquanto em outro nível eles podem ter aceitado ou até mesmo ter participado da própria Tariqah. Esses homens são chamados de ‘ulamâ’ al-zâhir, os doutores da Lei, cujo dever é guardar e preservar os ensinamentos da Lei Sagrada. Outros têm ido ao ponto de negar completamente o Caminho, ficando satisfeitos apenas com uma interpretação externa da religião. Eles são os (qishrî) `ulamâ’ que romperiam o equilíbrio entre as dimensões exotérica e esotérica se eles dominassem toda a comunidade muçulmana. Mas, embora como uma reação contra o Ocidente moderno, uma certa tendência estreitamente ligada a essa visão ganhou ascendência em certos quadrantes, tal ponto de vista nunca prevaleceu sobre a ortodoxia total e manteve-se uma posição periférica. Para a grande maioria dos muçulmanos ortodoxos, o sufi continua a ser um muçulmano devoto que é respeitado pela profundidade de sua vida religiosa, mesmo se tudo o que ele pratica não seja conhecido ou compreendido pelo resto da comunidade em geral.

Por outro lado também houve aqueles que ocasionalmente tentaram quebrar o equilíbrio em favor da Tariqah como se fosse possível para o Caminho existir no mundo sem a Lei que serve como seu escudo e protege-o da minguante Influência do mundo. Na verdade, muitos dos movimentos que terminaram na criação de seitas ou até em desvio e ruptura com a ortodoxia do Islam surgiram na tentativa de exteriorizar o esoterismo sem o apoio da Sharia. Em geral, uma seita pseudo-religiosa e desviante parte de um fundo esotérico que, ao quebrar o molde protetor da Sharí’a, se desvia de sua natureza original, resultando em seitas pequenas relativamente inofensivas ou pseudo-religiões positivamente nocivas dependendo do clima em que tais movimentos crescem.

No entanto, Islam em sua totalidade tem sido capaz de preservar este equilíbrio entre o exotérico e o esotérico ou tafsir e ta’wil, no que diz respeito à interpretação do Alcorão. A maior parte da ortodoxia da comunidade muçulmana sempre foi capaz de prevalecer e impedir que a Lei de sufocasse o Caminho ou o Caminho quebrasse o molde da Lei e, assim, destruísse o equilíbrio da sociedade islâmica. A vitalidade religiosa e espiritual do Islam veio da presença de ambas as dimensões ao longo dos séculos, que juntas constituíram uma tradição religiosa integral capaz de criar uma sociedade religiosa e as normas da vida espiritual. De acordo com o conhecido símbolo sufi, o Islam é como uma noz na qual a sharia é sua casca, sua semente é a tariqah e o líquido interno que é invisível embora presente por toda parte, é a Haqiqah.  Uma noz sem casca não poderia crescer no mundo da natureza e sem semente não teria fim e propósito. A Sharia sem a Tariqah seria como um corpo sem alma, e a Tarîqah sem a Sharia estaria desprovida de um apoio externo e simplesmente não poderia subsistir e manifestar-se neste mundo. Para a totalidade da tradição, um como o outro são absolutamente necessários.

Muitos dos provérbios de mestres sufis que, à superfície, parecem quebrar ou negar o Sharia devem ser entendidos no plano de fundo das condições que prevaleceram na situação e do público a quem foram dirigidos. Se um Hafez escreveu que alguém deveria jogar fora seu tapete de oração ou um Ibn `Arabi que escreveu que seu coração era o templo de adoradores de ídolos, isso não significa que esses mestres estavam negando a Lei Sagrada. Na verdade, eles estavam dirigindo-se a uma audiência para quem a prática da Shariah era considerada como garantida e eles estavam convidando os homens a transcender o mundo das formas, penetrando no significado interior da Sharia. Há um mundo de diferença entre uma comunidade onde todos praticam a Lei Sagrada e uma onde ninguém o faz.

Atualmente, muitos querem transcender o mundo das formas sem possuir as formas. Eles querem queimar os pergaminhos (usando um termo budista), sem ter os pergaminhos. Mas o homem não pode jogar fora o que ele não possui. Os Sufis que estavam convidando homens a jogar fora as formas externas estavam dirigindo-se a pessoas que já possuíam essas formas. Não havia perigo de homens caírem abaixo das formas; a sharia estava sempre presente para evitar tal perigo. Hoje são muitos que vivem sem uma forma religiosa e confundem o transcender as formas com uma queda abaixo das formas. A Tariqah não pode ser alcançada a não ser através da Shariah e a aparente negação do Caminho não é da própria Shariah, mas a limitação da verdade apenas em relação às formas externas. Nada está mais longe da intenção dos sufis do que romper a Shariah e introduzir espécies de individualismo e revolta contra as formas religiosas que alguns modernistas gostariam de realizar em nome do sufismo. A liberdade que a Tariqah proporciona através da aceitação e posterior transcendência das formas da Lei Sagrada é a antípoda da “liberdade” quantitativa de rejeitar completamente a Lei Sagrada. Um se assemelha ao outro apenas no sentido de que Satanás é o macaco de Deus. Só uma alma simples ou que não quer entender pode confundir uma liberdade com a outra. Não se pode rejeitar um esoterismo em nome de um esoterismo que não se possui. Uma árvore é julgada pelo seu fruto e não é necessária qualquer outra prova da futilidade de tal tentativa do que o fruto amargo que dela tem brotado.

Nenhuma prova melhor é necessária da conexão interna entre a Tariqah e a Sharia do que o fato de que em muitas regiões do mundo o Islam se espalhou através do sufismo. Em certas seções da Índia, no Sudeste Asiático e em grande parte da África, o Islam se espalhou pela primeira vez através do exemplo pessoal dos mestres sufis e do estabelecimento de uma ordem sufi. Só depois a Sharia se espalhou e o Islam tornou-se amplamente aceito. Se o sufismo fosse uma intromissão alienígena no Islam, como muitos orientalistas gostariam que acreditássemos, como poderia servir de ponta de lança para a propagação da Sharia? É a ligação interna entre a Lei e o Caminho que tornou possível a disseminação do Islam em muitas áreas através dos mestres e santos sufis que forneceram um exemplo vivo da espiritualidade islâmica.

Retirado de: Ideais e Realidades do Islam, S H Nasr

Fonte: https://www.abc.se/~m9783/k/trq_e.html

 
 

 

 

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