Página Inicial » História Islâmica » O Protestantismo do Islam

O Protestantismo do Islam

Não é fácil mutilar o Islam. Em outras religiões, os “reformistas” têm que se infiltrar na hierarquia para implementar seus programas. No Islam, não há hierarquia: nenhum bispo, nenhum Dalai Lama, nenhum rabino-chefe, nada. A ortodoxia, na medida em que esta palavra essencialmente cristã pode ser emprestada com segurança pelos muçulmanos, não é ditada aos fiéis por uma classe de burocratas religiosos assalariados. Em vez disso, é definido pelo consenso (ijma) de toda a comunidade de fé, escreve Mohammed Al-Abbasi (1914-1972). Essa forma aparentemente extrema de democracia religiosa, naturalmente, reconhece certos limites. “Minha comunidade não concordará com erros”, prometeu o Profeta abençoado; o que significa que um veredito foi dado através do ijma (consenso), contudo, sempre que é constituído, com toda certeza foi sob a guia Divina. Vox populi, vox Dei (A voz do povo é a voz de Deus).  TOda ideia, conceito e opinião dentro do Islam com relação a autoridade religiosa são, por definição, extraídas das fontes imutáveis da sunnah e do Alcorão, interpretadas e reformuladas para manter sua relevância em meio a mudanças nas condições sociais. Mas dentro desses parâmetros escriturários, sempre existirá um bom espaço, que pode ser preenchido com conflito ou diversidade construtiva, de acordo com o gosto.

O Islam clássico, que sobreviveu, pelo menos em teoria, até o presente século, ficou bastante orgulhoso desse tipo de pluralismo. Afinal, os primeiros muçulmanos não acreditavam que as diferenças entre os estudiosos da comunidade eram uma misericórdia de Deus? A existência de inúmeras escolas teológicas e jurídicas incentivou o debate e o auto-exame, reduzindo assim o risco de estagnação? É verdade que a hostilidade entre as diferentes interpretações do Islã levou a conflitos ocasionais e causou desordem aos governos que precisavam impor um código legal padrão. Mas em geral, o sistema funcionou, mantendo uma diversidade de séculos dentro da unidade essencial e reconhecível da vida muçulmana. A chegada da modernidade pulverizou esses arranjos, provavelmente para sempre. Quando as potências europeias invadiram e ocuparam as terras muçulmanas, varreram os antigos tribunais e escolas, e impuseram normas e didáticas de aprendizagem inventados por eles mesmos. Estudantes árabes e indianos de repente encontraram-se aprendendo Homero (poeta grego) e Wordsworth (poeta inglês, 1770-1850), Voltaire (filósofo francês, 1694-1778) e Adam Smith (filósofo britânico, 1723-1790). Na Argélia, até a independência em 1961, cada criança árabe teve que memorizar um poema que dizia o seguinte: “Nossos antepassados, os gauleses, tinham cabelo loiro (nos ancetres les Gaulois etaient blonds)”. Mesmo quando os estados muçulmanos recuperaram sua independência política, essa desorganização extrema não havia chegado ao fim. As relíquias da antiga ordem islâmica, que não haviam sido extirpadas pela força, eram, na maioria dos casos, enfraquecidas demais para se re-afirmarem. Entre as elites pelo menos, o holocausto cultural parecia ter sido um verdadeiro sucesso. E, no entanto, os defensores dessa conversão em massa: os missionários seculares, seus convertidos e as escolas, esqueceram algo importante. Simplesmente, a alma européia não pode ser exportada. O triunfo da cultura ocidental na América e na Austrália só obteve êxito devido à matança de nativos, substituindo-os por europeus. Já no mundo islâmico , isso não foi tão fácil, apesar dos sucessos parciais em lugares como Argélia e Cazaquistão. Os nativos eram muito numerosos, e a região era e ainda é muito quente, para a imigração européia funcionar corretamente; daí a maioria conseguiu manter suas terras e suas vidas. Os novos ocupantes e líderes ficaram satisfeitos em deixar isso acontecer, confiante de que no decorrer do tempo, a desmoralização e a decadência da cultura indígena levariam a uma conversão bem-sucedida às atitudes e ao estilo de vida do colonizador.

O que esses teóricos esqueceram, fatalmente, é que para se construir e implantar uma cultura, é preciso que os costumes pertençam ao presente e ao passado. O presente poderia ser adquirido, através da vestimenta e através da aplicação de metodologias próprias nas escolas . O passado europeu, no entanto, permaneceu em posse dos europeus. Daí a esquizofrenia dos intelectuais seculares no mundo muçulmano. Surgiu então a esquizofrenia dos intelectuais seculares no mundo muçulmano, desencadeando o sucesso crescente do Islam alternativo, o então chamado fundamentalista.  Para ser um muçulmano secularizado e ocidentalizado, é preciso abandonar o passado. Contudo, o muçulmano pode “dar de ombros” para o estilo de vida europeu, no entanto, ele pode até produzir uma obra de sucesso, mas ainda é um intruso, e sabe disso, enquanto seus amigos europeus são os produtos da longa e constante evolução de uma única cultura e provavelmente, reconheceriam o estilo de vida dos antepassados, relacionando-os aos seus. Já o intruso, é um convertido, cujos ancestrais viviam uma vida que para ele é desconhecida ou inimaginável. Em algum lugar da sua linhagem há uma grande falha, transparecendo o outro. A alma do autêntico europeu, por mais indiferente que possa ser ao seu passado, não é tão fragmentada.

Levaram-se várias décadas para que os intelectuais, arrancados do mundo muçulmano, percebessem que não poderiam ser europeus, afinal. Quando essa percepção começou a surgir, o caminho suave para a modernidade de repente pareceu  virar-se bruscamente em direção a incerteza e ao caos. As primeiras vozes do despertar indígena, como Jalal Al-e Ahmad (etnólogo,1923-1969), tinham sido pseudo-europeus que haviam visto o processo de suicídio cultural em relação ao que era: a renúncia de uma cultura, juntamente com a tentativa emocional e filosoficamente impossível de substituir uma coisa pela outra. Mas então veio a mudança. Esta nova consciência, vinda dos apóstatas do processo europeu e não por representantes da cultura indígena sobrevivente, não ficou satisfeita com o que viu na religião tradicional. Havia muita diversidade e pouca hamonia. Com a reformulação do pensamento advindo do Ocidente e conduzido por um entusiasmo vertiginoso que os cegava para os aspectos mais finos da herança clássica, muitos dos fundamentalistas anunciaram que acharam o islamismo do povo horrivelmente desordenado. Por que não varrer todas as teias de aranha medievais e criar um novo Islam, racionalizado e pronto para ocupar seu lugar como uma ideologia ao lado do marxismo, do capitalismo e do nacionalismo secular? Para atingir esse objetivo, pensava-se que os quatro madhhabs do fiqh teriam que dar início. O mesmo seria para as tradições teológicas de Ashari e Maturidi. As ordens sufis eram, muitas vezes espetacularmente, exóticas e desordenadas, consequentemente, elas, teriam de ser expulsas também. Na verdade, pelo menos noventa por cento dos textos islâmicos tradicionais ser colocados na máquina de trituração. Enquanto o que restasse, seria o Islam do Profeta, desprovido de “vermes desagradáveis” e presidindo um mundo islâmico reunificado, caminhando para um destino novo e brilhante.

Os historiadores, se tivessem sido consultados, poderiam ter apontado para esses ativistas ansiosos, os quais, exatamente a mesma política, teria sido perseguida pelos fanáticos da Reforma na Europa e com alguns resultados muito inesperados. Os problemas eram muitas vezes bem semelhantes. O edifício escolástico medieval foi derrubado, para ser substituído por uma dependência das escrituras conforme interpretado pela consciência individual. Os grandes estudiosos do passado foram finalmente enterrados, muitas vezes, mesmo depois de terem sido amaldiçoados ou condenados amargamente. A idéia de santidade, uma vez que estava ausente do vocabulário dos primeiros crentes (sendo todos santos, eles não precisavam disso), era considerada suspeita. Os lugares de culto não possuíam uma decoração elaborada, enquanto o complexo simbolismo sagrado, que antigamente sustentava as artes, provou ser um alvo especialmente tentador. As comemorações religiosas foram reduzidas àquelas que estavam confirmadas explicitamente na revelação. A cidade e o campo foram purgados da tradição sagrada local e submetidos a uma política de padronização. Ao ordenar que a esterilização espiritual fosse feita, resultou na abertura de um caminho para o materialismo grosseiro da Revolução Industrial e a eventual secularização geral da mente européia.

Previsivelmente, nosso próprio protestantismo islâmico, como o de Calvin, Lutero e Cromwell, na prática, produziu divisão e não unidade, assim como pobreza mental e cultural, em vez de um novo brilho. Não só os protestantes muçulmanos (salafis, como eles se autodenominam erroneamente) em conflitos com sábios tradicionais ortodoxos, mas também acham notoriamente difícil concordar entre si. Somente no Egito, estima-se que existam mais de setecentos grupos salafistas, entre os quais argumentos amargos e até confrontos violentos, são deprimentemente comuns. No Afeganistão, a incapacidade dos combatentes wahhabis de tolerar a existência de outras leituras do Islã, afundou o país em uma guerra civil, que causou mais dano do que dez anos de ocupação russa. O motivo dessa intolerância e discórdia é óbvio. Agora que as Quatro Escolas foram “rejeitadas” como inovação (bid’a), cada muçulmano protestante deve consultar somente o Alcorão e os Hadiths, a fim de aprender sobre as doutrinas e os ritos da religião. O resultado foi previsível: em vez de quatro escolas, agora temos milhares. Mesmo na Grã-Bretanha, existem grupos muçulmanos cujo contato com a educação tradicional é tão tênue que se referem a traduções do Alcorão e da Sunna, ao invés de perguntar a especialistas ou consultar trabalhos adequados de fiqh e aqida. Falas deles é algo desnecessário e desagradável, mas todos estamos familiarizados com o rigor fanático e com as interpretações bizarras que podem surgir, e o estranho prazer que eles têm em atacar a todos aqueles que diferem de sua visão totalitária e superficial da religião . Vale a pena pensar sobre por que essa abordagem do “faça você mesmo” em relação a Shari`a, é tão perigosa. Para se extrair fatwas diretamente do Alcorão, é preciso dominar o árabe, e sabemos que a tradução literal não existe, há somente um sentido. Também é necessário conhecer os as sete variantes do Alcorão, e saber quais os versos que estão revogados e, pelo menos, ler os principais comentários. E como se isso não bastasse, a tarefa de emitir fatwas através da sunna é algo que demanda mais exigência. Há hadiths, mesmo em Bukhari e Muslims, que são conhecidos por serem anulados e que não se aplicam, enquanto muitos outros só podem ser aplicados conforme seu contexto original. E há muitos hadiths fortes espalhados por centenas de livros que não foram traduzidos para o inglês. Além de tudo isso, é preciso entender os mecanismos legais sofisticados, reconhecidos pelos primeiros muçulmanos, como a analogia (qiyas), o consenso, as considerações de interesse público, as várias classes de hadith, e assim por diante. A menos que alguém conheça tudo isso, estará há um passo de se afastar do caminho reto e de introduzir formas de inovação extremas e repreensíveis na Sharia.

Deve ficar claro que a alternativa responsável é seguir uma das quatro escolas aceitas (Hanafi, Shafi’i, Maliki e Hanbali), cujos fundadores eram infinitamente mais competentes do que os jovens entusiastas de hoje, que emitem fatwas diretamente das fontes reveladas, sem conhecimento algum. Da mesma forma, aplica-se às questões espirituais e pode ser muito perigoso tentar deduzir um método espiritual para nós mesmos, em vez disso devemos reconhecer que não estamos qualificados para fazer isso e que devemos buscar um guia espiritual especializado no Alcorão e na Sunna . Nada é mais perigoso que navegar no oceano da revelação, seja da lei ou do espírito, em um navio feito por si mesmo, em vez de ser construído por um grande mestre-artesão. Um exemplo? Eu já estive em uma mesquita do gueto, no Brooklyn, Nova York, ouvindo um grupo de novos conversos tentando descobrir, a partir da tradução de Yusuf Ali, da tradução do Alcorão e de Muhsin Khan de Bukhari, se seria permitido roubar dinheiro de uma cachaçaria. Quando eu intervim, descobri que nenhum deles tinha ouvido falar dos Quatro Madhhabs ou da necessidade de confiar em um sábio. Você que está lendo, provavelmente, pode enumerar mais exemplos desse tipo de ignorância letal, relatando suas próprias experiências. O mundo muçulmano, ao se esforçar em tirar o peso da secularidade, corre o risco de desencadear uma confusão protestante, que destruirá sua homogeneidade para sempre, assim como a Reforma destruiu a dos cristãos e afundou a Europa em séculos de guerras religiosas selvagens. O islamismo tradicional e autêntico, ainda ensinado em universidades como Al-Azhar, localizada no Cairo, Egito, forneceu a base para uma homogeneidade estável, demonstrável e viável. Os modelos autodenominados Salafi, quer escolhamos chamá-los de Wahhabi ou qualquer outra coisa, tendem a gerar intolerância, desordem e hostilidade a todas as formas de vida intelectual e espiritual. Uma atitude que, em última instância, pode ter sucesso onde os colonos e os ocidentais falharam. O entusiasmo dos inimigos do ijma (consenso) parece assemelhar-se à agonia, sem sinal de vida nova.

Fonte: https://masud.co.uk/protestant-islam/

Sobre a Redação

A Equipe de Redação do Iqara Islam é multidisciplinar e composta por especialistas na Religião Islâmica, profissionais da área de Marketing, Ilustração/Design, História, Administração, Tradutores Especializados (Árabe e Inglês). Acesse nosso Quem Somos.