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Entenda a ”relação” da Shariah (lei islâmica) com Crimes de Honra

Esta é a parte da história sobre crimes de honra que você provavelmente não lerá nem ouvirá. Em 1947, na colônia britânica da Nigéria, os juízes ingleses tiveram que impedir o que eles viram como a decisão retrograda de um tribunal local da sharia (lei islâmica). Um homem tinha sido condenado à morte por assassinato, mas o tribunal superior britânico apontou que oque havia ocorrido, havia sido um crime de paixão. O homem tinha matado o amante de sua esposa. O tribunal da shariah não ficou impressionado com essa desculpa, mas o tribunal britânico decidiu que o assassino não merecia morrer¹. Sim, você leu corretamente. Um tribunal da shariah, aplicando a lei da sharia, não comprou o argumento de ”crime de paixão” que tem servido há muito tempo como justificativa para crimes de honra. O tribunal britânico sim.

Crimes de honra nunca estão longe das manchetes. O islamofóbico Clarion Fund até lançou um documentário chamado ”Honor Diaries”, que repete a acusação de que o Islã apoia crimes de honra e que esses atos de violência são endêmicos em sociedades muçulmanas.

Mas a verdade da questão é que crimes de honra não são causados ou encorajados pelo Islã. Os casos de crimes de honra, apesar da retórica popular em torno deles, não são nem mesmo um problema específico de muçulmanos². Suas ocorrências mais concentradas e graves não envolvem muçulmanos. Esta ignorância sobre os ensinamentos do Islã e as realidades da violência contra as mulheres tem sérios custos. Primeiramente, colocar a culpa dos crimes de honra no Islã antagoniza muçulmanos desnecessariamente. Alimenta a narrativa, prevalente em muitos países muçulmanos, que descarta os direitos humanos como um proxy para a ocidentalização e o imperialismo cultural. Em segundo lugar, o sensacionalismo sobre o Islã desvia de uma realidade que muitos homens se mostram contrários a admitir: a violência contra as mulheres é um problema global com raízes muito mais profundas do que as doutrinas de uma religião ou as características de uma cultura. Ele precisa ser tratado como tal. Por fim, a obsessão pela alegada aceitação “existente” no Islã por crimes de honra cega os muçulmanos e não-muçulmanos à condenação desses crimes nos ensinamentos de Muhammad e na shariah.

A tragédia da violência dirigida às mulheres por serem mulheres é muito difundida e de longa duração para ser produto de qualquer religião ou mesmo de uma cultura em especial. Embora tome formas diferentes e apareça com frequência variada de região para região, aflige todas as sociedades. As sociedades patriarcais (ou seja, todas as sociedades de um grau ou outro) às vezes “justificam” parte dessa violência como conseqüência da raiva desencadeada num “crimes de paixão”. Outras formas de violência contra as mulheres, como crimes de honra, podem envolver premeditação e até mesmo a coordenação de várias pessoas, incluindo mulheres relacionadas com a vítima. Nessas partes do mundo mais atormentadas pela violência contra as mulheres, os sistemas legais tendem a oferecer clemência oficial ou não oficial aos homens que o cometem.

Crimes de honra são apenas parte do fenômeno maior do femicídio, ou o assassinato de uma mulher por algum motivo associado ao seu gênero. Mulheres e  meninas que são as vítimas de tal violência são atacadas porque são percebidas como violadoras de alguma expectativa profunda de como as mulheres devem supostamente agir em sua sociedade. Na região do Mediterrâneo, especialmente no Oriente Médio e Norte da África, assim como em países sul-asiáticos, as afrontas são a “honra” da mulher ou de sua família. O ”Fundo das Nações Unidas para a População” (FNUAP) estimou, de forma conservadora, que pelo menos 5.000 mulheres por ano são vítimas de crimes de honra. Na Índia e no Paquistão, isto muitas vezes implica em uma filha ou irmã sendo morta por se apaixonar por um homem sem aprovação dos pais e ocorre entre populações hindus e muçulmanas. O femicídio toma outras formas em outros lugares. Um relatório da ONU de 2012 detalha como em partes da África Austral, Sul e Sudeste da Ásia, centenas de mulheres são mortas a cada ano após serem acusadas de bruxaria. Seus assassinos recebem sentenças mais leves com alarmante regularidade.

Apesar da atenção que recebem da mídia, crimes de honra não são o tipo mais prevalente de femicídio. O número de crimes de honra, seja nos países muçulmanos ou em outros lugares, são pálidos em comparação com a forma mais grave de violência contra as mulheres, a saber, matanças de dote entre a população hindu da Índia. O assassinato de uma esposa por seu marido ou sua família, muitas vezes por queimadura, por não ter conseguido um pagamento de dote suficientemente grande para a família do marido,  ou meramente por não cumprir as expectativas em seus deveres de esposa, ocorreu em números chocantes. Um relatório da ONU de 2012 observou que 8,383 assassinatos de dote conhecidos ocorreram na Índia em 2009, acima de 4.836 em 1990. Embora o governo indiano tenha banido a lei  dote décadas atrás e classificado assassinatos de dote como uma infração criminal, a questão do dote e seus problemas permanecem um costume importante e as mortes suspeitas das esposas raramente são investigadas. A polícia muitas vezes rejeita essas mortes como acidentes de cozinha.

As organizações islamófobicas apontam que o Islã e as leis dos países muçulmanos justificam homicídios de honra ou tratam-os levemente. No segundo ponto, eles estão corretos. Tais leis são um problema, e um que parece ter proliferado no Oriente Médio. Na lei egípcia, um homem que mata sua esposa e / ou seu amante depois de pegá-los “em flagrante delito” é apenas punido com prisão em vez de pena de morte. Marrocos, Kuwait, Líbano, Síria, Iêmen, Omã, Emirados Árabes Unidos e as leis da Jordânia estendem penas drasticamente reduzidas pelo assassinato de qualquer parente (e seu amante) que um homem encontre em tal situação (embora os Emirados Árabes Unidos e uma atualização de 2001 para as leis da Jordânia permitam a mesma desculpa para uma mulher que encontrar seu marido na cama com outra mulher).

Mas nenhuma dessas leis tem qualquer base na shariah ou ensinamentos islâmicos. Na verdade, elas foram originalmente importadas do Ocidente. O direito penal no Oriente Médio hoje foi moldado pelo Código Penal otomano de 1858, que foi emitido como parte dos esforços do Império Otomano falhando em imitar seus rivais europeus. O Código foi pouco mais do que uma tradução do Código Penal francês de 1832, copiando palavra por palavra de seu castigo laxista por crimes de honra. Isso ainda é evidente hoje nas leis do Líbano, Síria, Jordânia e em menor medida no Marrocos (nunca parte do Império Otomano), que se leem como traduções literais do francês. Os códigos de leis franceses e otomanos também serviram como a principal inspiração para as leis do Egito igualmente.

No Paquistão, outro país que regularmente aparece em notícias sobre crimes de honra, encontramos um caso semelhante com a lei britânica. Apesar de ter um sistema legal influenciado pela shariah, o direito penal do Paquistão permanece baseado no código de 1860 que os britânicos importaram para governar a Índia colonial. Esta lei concedeu clemência a um marido que matasse sua esposa devido a “grave e súbita provocação”. O Paquistão reformou esta lei em 1990, ironicamente, numa tentativa de aproximar as leis do país de acordo com a shariah. Em particular, o Tribunal Federal da Shariah do Paquistão declarou que “de acordo com os ensinamentos do Islã, a provocação, por mais grave e súbita que seja, não diminui a intensidade do crime de assassinato” (sic). Infelizmente, os tribunais paquistaneses, por vezes, ainda reduzem as punições para os homens que cometem crimes de honra. Mas os juízes que o fizeram justificaram isso, citando novamente a “grave e repentina provocação” sofrida pelo assassino – o texto exato da lei britânica³.

A shariah tem uma posição clara sobre crimes de honra, posição esta vinda diretamente das decisões do Profeta Muhammad: um marido que mata a esposa e/ou seu amante cometeu homicídio como qualquer outro caso, mesmo se o marido pegasse os dois no ato (de penetração). A base disso vem dos hadiths, ou provérbios do Profeta Muhammad. Quando lhe foi perguntado o que aconteceria se um marido encontrasse a mulher com outro homem, o Profeta respondeu que o marido não poderia matá-lo e que ninguém pode ser punido a menos que o marido trouxesse quatro testemunhas que tinham visto o ato. O Alcorão estabeleceu o procedimento prático para maridos ou esposas que suspeitem de infidelidade, bem como aqueles que flagrassem seu cônjuge, mas não tivessem testemunhas: o casal iria aparecer perante um juiz, e o cônjuge acusando juraria a Deus cinco vezes que a sua acusação era verdade. Se o cônjuge acusado então jurasse cinco vezes a Deus que eles eram inocentes, nenhuma das partes seria punida, mas o casal se divorciaria (Alcorão 24: 6-7).

Os estudiosos muçulmanos tinham plena consciência dos perigos da violência contra as mulheres. O famoso estudioso iemenita al-Shawkānī (século 1834) escreveu que uma das razões pelas quais os homens assassinos de mulheres são passíveis de serem executadas é o fenômeno da violência masculina contra as mulheres por supostas ofensas de honra. Ele concluiu que “Não há dúvida de que a laxidade neste assunto é um dos maiores meios que levam à destruição da vida das mulheres, especialmente nas regiões beduínas, que são caracterizadas por um coração duro e um forte senso de honra e vergonha decorrentes de Tempos pré-islâmicos “.

A estranheza dos homicídios de honra a shariah é tão clara que, durante séculos, os estudiosos da doutrina islâmica têm estado em um acordo substancial sobre a questão. * De fato, quando confrontados com um relato de que o antigo califa Omar havia decidido que os homens que matassem suas esposas, tendo-as encontrado envolvidas no adultério não seriam punidos, os estudiosos muçulmanos só puderam concluir que ele deveria estar se referindo que eles não seriam punidos por Deus na vida após a morte. Nesta vida, sob a perspectiva da shariah estava claro que eles eram assassinos. No período moderno, muitos dos estudiosos muçulmanos mais proeminentes de todas as seitas e origens, tais como os sunitas Yūsuf al-Qaraḍāwī e Abdallāh al-Ghumārī (1993) e o posterior estudioso xiita Muḥammad Ḥusayn Faḍlāllāh (de 2010), Declararam que o homicídio de honra era totalmente inadmissível no Islã, assim como um grupo de imãs canadenses, o Conselho Muçulmano da Grã-Bretanha e o proeminente imã americano Zaid Shakir.

Podemos continuar a utilizar a já esgotada  reivindicação de que o Islã ”permite crimes de honra” ou podemos apontar que os ensinamentos do Profeta e a shariah condenam o ato em termos inequívocos. A violência contra as mulheres e o fracasso dos sistemas legais para puni-la é um problema sério nos países muçulmanos como o Afeganistão e o Paquistão. O Islã e a shariah devem ser mobilizados como argumentos contra isso e não como suas supostas causas. Os números de mortes de dote entre os hindus só na Índia superam os homicídios de honra globalmente, e o país que é classificado como o pior no ranking da ONU de femicídio é o decididamente não aplicante da shariah, majoritariamente católico, El Salvador. Essas realidades, juntamente com o fato de que as leis nos países muçulmanos que indulgem homicídios de honra são realmente importados da Europa, devem nos lembrar de algo que nossa sociedade ignora convenientemente: a violência contra as mulheres é o problema da humanidade e faz parte do passado e presente do Ocidente como em qualquer outro lugar.

Sobre o autor: Jonathan Brown é professor da Escola de Relações Exteriores da Universidade de Georgetown e editor-chefe da Oxford Encyclopedia of Islam and Law e autor de vários livros, incluindo Misquoting Muhammad: The Challenges and Choices of Interpreting the Prophet’s Legacy.

* Existe uma exceção flagrante à rejeição geral de homicídios de honra na tradição da Shariah. A lei no Império Otomano criou um espaço para a prática com base numa estranha inversão da decisão do Profeta sobre a questão. Em um dos Hadiths, o Profeta explica que matar um cônjuge adúltero só poderia ser legítimo se houvesse quatro testemunhas de seu adultério, uma vez que essa era a prova necessária para normalmente condenar alguém de adultério. Em vez de entender isso como uma condição impossível e distante (já que teria que haver quatro, testemunhas masculinas erguidas que houvessem todas visto a penetração real ocorrer), alguns juristas otomanos usaram-na para cunhar em laxismo em homicídios de honra. Mesmo assim, porém, haviam limites. A lei otomana só exonerava os homens que haviam matado suas esposas ou filhas, e só se aplicava em situações em que o homem matasse o amante masculino para impedi-lo de completar um ato em andamento. Isso realmente violaria a compreensão do comando do Profeta, como explicado por Sa’d b. ‘Ubāda, que, embora inicialmente fosse contra a decisão do Profeta por causa de seu orgulho e honra, disse então que, se encontrasse um homem com sua esposa, “não o moveria até que eu trouxesse quatro testemunhas. E, por Deus, eu não os traria até que aquele homem tivesse terminado “.7 A incomum permissividade otomana em relação aos crimes de honra explicaria por que o Império adotou a lei francesa que o permitia em 1858.

Fonte contendo as bibliografias utilizadas em: https://www.yaqeeninstitute.org/publications/islam-is-not-the-cause-of-honor-killings-its-part-of-the-solution/

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