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Entenda o Quadro Ideológico por trás do “Extremismo Islâmico”

’’O que conhecemos como tradição islâmica, filosofia islâmica e pensamento islâmico…é ignorância, e devemos buscar o Islã puro para voltarmos a elite pura da Ummah (nação islâmica).’’

– Sayyid Qutb

Emergiu em 2014, nas redes sociais e portais informativos, um novo fenômeno mundial: o ‘’Estado Islâmico do Iraque e Síria’’, ou como passou a autodefinisse simplesmente ‘’Estado Islâmico’’. Parecendo invencíveis, conquistando cidade após cidade, povo após povo, proclamando o regresso do Califado, dizendo que irão tomar o mundo muçulmano ‘’corrupto e desviado’’ e em seguida o Ocidente abaixo de seu domínio implacável.

Domínio este que significa o totalitarismo religioso, especialmente com relação as mulheres e minorias religiosas: os comentaristas geralmente explicam que eles aplicam ‘’ao pé da letra’’ os ensinamentos do Profeta Muhammad (570-632) (que a Paz esteja com ele), e que a politica do ISIS é um regresso ao Islã dos primeiros tempos, ao Islã ‘’puro’’: os meios de comunicação validam assim a ideologia deste grupo, e criam confusão no público apresentando uma mistura de Islã, terrorismo, violência e intolerância.

Os porta-vozes do ‘’Estado Islâmico’’ convocam a todos os muçulmanos do mundo a unirem-se a eles, alegando que suas leis e sua legitimidade são divinas; ao mesmo tempo, circulam vídeos deles onde; realizam execuções massivas de prisioneiros, impõem, o equivalente da burqa afegã, o ‘’niqab’’ às mulheres, praticam a escravidão, destroem igrejas e mausoléus, marcando as casas dos cristãos e ameaçando-lhes com o pagamento de um imposto especial, e a escolherem entre conversão ou mote.

Grupos como ISIS ou al-Qaeda utilizam numerosos preconceitos que o Islã provoca no Ocidente, para cumprirem sua política de terror e semearem o medo entre seus inimigos. Por outro lado, o Ocidente também se utiliza dos mesmos preconceitos com o fim de justificar suas politicas liberticidas contra sua própria população (como por exemplo, o Patriot Act nos EUA depois do 11 de setembro), que afeta todas as minorias muçulmanas, e também para justificar sua presença militar no Oriente Médio, o apoio econômico aos regimes autoritários aliados. e as conquistas e ocupações armadas em vários países árabes durante as ultimas décadas.

Por tal motivo, circula uma quantidade importante de propaganda sobre o que se sucede atualmente no Iraque: o ISIS difundindo vídeos nas redes sociais, que tem dois objetivos diferentes: um é o lado social da politica do ISIS (água e eletricidade grátis, distribuição de comida, controle dos preços, ordem restaurada) e a outra parte é sobre sua politica de terror contra os prisioneiros e os militares do exercito regular do Iraque e da Síria.

E do lado ocidental (e sem duvida, produzidas pela propaganda estatal do Iraque, Irã e Síria) se difundem mentiras grotescas como as seguintes: o ‘’Estado Islâmico’’ teria ordenado a excisão de todas as mulheres, se um militante do ISIS é morto por uma mulher nunca entrará no paraíso, e também a famosa lenda da ‘’jihad do sexo’’, já utilizada em outro contexto, que propaga que existem mulheres muçulmanas do mundo inteiro que vão para lá servirem de ‘’esposas’’ aos combatentes.

Propagar falsidade sobre eles é na realidade contribuir para com o discurso do ISIS, que afirma que o mundo inteiro está conspirando contra eles, o que não é verdade, pois se utilizaram de certa maneira de algumas políticas ocidentais e diferentes atores regionais (como mostraremos mais adiante). Contudo, o fato de que se inventam mentiras e propaganda contra eles, não deveria impedir a nós muçulmanos de denunciar seus atos, pois há feitos que são totalmente verdadeiros e que eles mesmos reivindicam como: os atentados em todo mundo, a expulsão massiva dos cristãos, a imposição de uma interpretação desviada, anacrônica e extremista da lei religiosa, a transformação das igrejas em centros islâmicos, o massacre sistemático dos prisioneiros de guerra, a perseguição das minorias religiosas e o sectarismo ultra-violento contra os xiitas e sunitas tradicionais.

O outro lado é a atitude dos adeptos da ‘’teoria da conspiração’’, um verdadeiro ópio das massas, que nos impede de pensar e atuar, difundindo que o autoproclamado ‘’califa’’ al-Baghdadi seria um ‘’agente dos serviços secretos israelenses’’, um ‘’iluminati’’ ou um ‘’maçom’’. Esta ‘’linha de pensamento’’ desresponsabiliza totalmente os indivíduos e os grupos políticos, e perde de vista a luta pelos interesses ideológicos, econômicos e políticos que caracterizam o mundo, para converter a história em uma luta eterna entre os ‘’bons’’ e os ‘’maus’’.

Agora quero, de minha modesta perspectiva de simples crente muçulmano, apresentar-lhes minha analise sobre o surgimento deste grupo, a que interesses servem, no que consta sua ideologia, para logo contrasta-lo com o exemplo do mesmo profeta do Islam e a prática histórica dos muçulmanos na segunda parte do artigo.

Raízes Históricas e Ideológicas

O grupo nasceu das cinzas da segunda invasão norte-americana no Iraque (2003-2011) e se chamava naquele tempo ‘’Tawhid al-Jihad’’ que poderia ser traduzido como ‘’Unicidade Lutadora’’, referindo-se a unicidade de Deus, conceito chave da teologia muçulmana, porém deformado pela ideologia wahabita.

O wahabismo, o qual seus seguidores chamam de ‘’salafismo’’, referindo-se aos ‘’salaf’’, as primeira gerações de muçulmanos, surgiu na Arábia do século XVIII quando seu fundador, Muhammad ibn Abdul Wahhab (1703-1792), começou a difundir a ideia segundo a qual, a maioria dos muçulmanos haviam se tornado heréticos e se afastaram da prática das primeiras gerações, que eram apóstatas e por tanto, o mundo islâmico deveria ser ‘’purificado’’. Esta ideologia é muito próxima das que podemos encontrar em outras religiões, como o movimento puritano no cristianismo por exemplo. Você tem que pensar o que significou em termos de guerras e massacres, a Reforma Protestante na Europa, para ter uma ideia do que é este movimento para o mundo muçulmano.

A ideologia Wahhabi radical consiste em dois pontos principais:

1 – Afirmam uma nova concepção muito estreita do monoteísmo, declarando práticas e costumes anteriores e tradicionais entre os muçulmanos como a ‘’interseção’’ (at-tawassul), ou seja, pedir (com a permissão de Allah, e não adorar) ao profeta, seus familiares ou pessoas virtuosas esperando obter benefícios espirituais, como um regresso ao politeísmo, e então, uma apostasia que merece o castigo da morte.

Esta é a consequência da maior ‘’contribuição’’ do wahabismo a teologia muçulmana sunita clássica: a mudança do conceito de adoração. A adoração, que era antes incompleta sem a intenção de adorar, tem agora uma nova definição: todos os atos que são normalmente reservados a adoração, se são feitos para outro que não Deus, são considerados como associação (shirk) e, então, quem o faz torna-se um politeísta e apostata.

2-Luta extrema contra as ‘’inovações’’ (bid’a), ou seja, tudo o que foi incluído na religião islâmica depois da morte do profeta, sem seguir a tradição sunita clássica de distinguir entre boas e más inovações. (3)

Ou seja, cada muçulmano ou muçulmana disconforme com estes pontos ( 99% dos muçulmanos na época do surgimento do wahabismo, e 97% dos de hoje) são declarados ‘’apostatas’’ e seu sangue é considerado ‘’lícito’’, isso significa que podem ser mortos, no primeiro caso, e declarados ‘’inovadores’’ no segundo.

É muito importante notar o fato de que o fundador desta seita nem sequer terminou seus estudos religiosos, que foi criticado e refutado por seu próprio irmão, e que hoje existem milhares de refutações desta ideologia escritas pelos sábios do Islam tradicional sunita e xiita do mundo inteiro. A pobreza intelectual desta ideologia é tão grande como sua simplicidade: é também uma rebelião contra os sábios e a intelectualidade. Por isso sempre falam do ‘’necessário regresso ao Alcorão e exemplo do Profeta (sunnah)’’ ignorando o fato de que o Alcorão, como qualquer texto religioso, é sempre interpretado pela razão humana.

Seu êxito é muito grande entre os ex-delinquentes ‘’arrependidos’’ e novos convertidos, e de maneira geral se alimenta da guerra, desordem, e do caos político e religioso. É o mesmo sintoma do relativismo moderno e da perda de segurança espiritual e intelectual que implica em uma tão grande circulação de ideias e crenças: seus seguidores se destacam pelo ódio da dúvida e aproximação.

Chamam por exemplo a sua forma de rezar como: ‘’A Oração do Profeta como se a viste’’, quando o resto dos muçulmanos rezam segundo a interpretação dos sábios das primeiras gerações que tentaram aproximar-se ao máximo do que pensamos que foi a oração do profeta em si. Estamos falando de detalhes tão secundários como o da posição das mãos durante a recitação, pela qual a pessoa pode ser considerada um ‘’herege’’ (por eles) na melhor das hipóteses.

No inicio do século XIX, depois do encontro do líder da tribo beduína ‘’Al-Saud’’ com o fundador do wahabismo e a adoção de sua ideologia por ele, os wahabitas começaram uma especie de ‘’cruzada’’ dentro do mundo islâmico, partindo de seu coração: a Arábia. Iniciaram pela tomada de Karbala, a cidade mais importante do xiismo no Iraque (1801). e logo seguiram tomando as duas cidades mais importantes do Islã: Meca e Medina (1803-1806) na Arábia, onde destruíram túmulos e santuários, matando milhares e milhares de pessoas em seu caminho, e escravizando os sobreviventes: todos os que não estavam conforme sua nova teologia, ou seja, os sunitas, os xiitas e as minorias religiosas.

Neste ponto, eu acho que a relação com o que está acontecendo atualmente no Iraque e na Síria se torna clara.

Logo foram derrotados pelo Império Otomano que retomou as cidades mais importantes do Islã: Meca e Medina (1812 e 1813).

Um século mais tarde, um chefe da tribo, Abdul Azis ibn Saud, com os mesmos wahabitas e apoio essencial dos britânicos que buscavam desmembrar o Império Otomano, conquistou a Arábia que é conhecida desde então com ‘’Arabia Saudita’’, e adotou como ideologia estatal o wahabismo. Estando baseado sobre o seguinte pacto: o sábios wahabitas não questionavam a politica do reino, e o poder politico deixa a policia religiosa aplicar a ‘’reforma’’ contra a população e os peregrinos muçulmanos que visitam o país aos milhares todos os anos. Depois da chegada desta ideologia ao poder, houveram várias mudanças dentro da doutrina para fazê-la compatível com o exercício do governo: se rejeita a violência e tem que obedecer de qualquer forma o poder politico, a desobediência ao rei é entendida como desobediência a Deus.

Em 1945, o encontro entre Saud Ibn Abdul Aziz e o presidente Franklin D. Roosevelt marcou o começo de uma aliança que define o Oriente Médio de hoje: os EUA asseguram a proteção da dinastia e os Saud asseguram o acesso ao subsolo árabe. Assim se explica a longevidade de um regime heterodoxo e extremamente impopular na terra santa dos muçulmanos.

Hoje em dia, apesar de todo o dinheiro que tem, e do apoio norte-americano, esta corrente ideológica é muito minoritária (seguida por menos de 3% dos mundo muçulmano) e funciona como uma religião paralela, com seus próprio sábios, suas próprias interpretações do Alcorão Sagrado, suas próprias mesquitas e grupos políticos.

A transformação de uma reforma religiosa pré-moderna em ideologia política, que pode ser utilizada fora de seu contexto original, é o produto do encontro desta doutrina e das contribuições da Irmandade Muçulmana do Egito, e entre eles um homem conhecido como Sayyid Qutb (1906-1966).

Sayyid Qutb era um autor e crítico literário egípcio que foi um intelectual secular a maior parte de sua vida, muito influenciado pelas ideias terceiro-mundistas, pelo marxismo e pelo nacionalismo cultural prevalecente no Egito durante a primeira metade do século XX. Depois de uma viagem aos EUA, a qual foi para ele um grande despertar em relação a uma sociedade ‘’decadente e imoral, sem profundidade nem espirito’’, que ele se reencontrou com a tradição islâmica como fonte de um modelo alternativo ao materialismo que ameaçava o Egito ‘’de leste a oeste’’.

Ao regressar ao Egito, ele se juntou a Irmandade Muçulmana que conclamava para justamente a re-islamização da sociedade e do Estado para a conquista do poder. É importante notar que Qutb não mudou seus objetivos políticos fundamentais na sua transição ideológica, nem as bases de suas análises (era tão somente um marxista). Se não, somente seu referente, e se pôs a escrever um grande comentário do Alcorão sem ter os prerrequisitos teológicos normalmente necessários.

Depois da tomada do poder por Gamal Abdel Nasser, apesar de ter sido um ex-aliado da Irmandade, ele declarou o grupo como terrorista e Qutb termina encarcerado. É na prisão que Qutb antes de ser executado, escreveu o livro que ser tornaria de certo modo a ‘’biblia’’ do Islã politico-revolucionário: ‘’Sinais no Caminho’’ (Ma’alim fi al-Tariq).. Neste livro, Qutb considera que as sociedades muçulmanas regressaram a ignorância pré-islâmica, e que uma ‘’vanguarda de muçulmanos’’ deve levantar-se para destruir a ‘’ordem pagã’’ e estabelecer a ‘’sociedade ideal do Islã, de piedade e justiça’’. Esta ideia de uma vanguarda revolucionaria é totalmente estrangeira a 1400 anos de tradição islâmica, e é uma clara inspiração dos movimentos revolucionários da época. Fato notável, Qutb define o Islã como ‘’a espiritualidade cristã com o igualitarismo do comunismo’’.

É importante sublinhar aqui que o ISIS é mais que uma soma de suas partes. Não se trata de dizer que tomamos o wahabismo e agregamos com Qutb e temos o ISIS, e sim que estes diferentes elementos mais as agregações teóricas de pessoas como Osama bin Laden, a ideia de uma guerra terrorista contra o Ocidente, ou Abu Musab al-Zarqawi, e a ideia de estabelecer um califado antes de se ter o apoio popular, nos permite fazer uma genealogia do fenômeno. Porém, encontramos muito frequentemente os nomes de Ibn Abdul Wahab e Sayyid Qutb na literatura do ISIS.

A Al-Qaeda e seus ramos, o chamado ‘’Estado Islâmico’’ encarnam o ‘’neo-wahabismo’’, que é fundamentalmente uma rebelião da ‘’reforma da reforma’’, ao ver esta última como uma traição da doutrina original do wahabismo, e seu eixo politico sistemático, por tanto, é declarar o poder real saudita como ‘’regime apostata’’.

Esta minoria dentro da minoria, ou seja, os ‘’neo-wahabitas’’, graças a sua ideologia muito simples e seu anarquismo político, tem uma força de desordem muito importante e útil para qualquer poder que sabe fazer uso deles. São por essência incapazes de governar, pois a rigidez de sua doutrina lhes faz totalmente incapazes de adaptarem-se às realidades do exercício do poder, esta doutrina é então uma ferramente infinita de subversão no mundo muçulmano.

Quando chegam ao poder, mudam inevitavelmente sua doutrina e tomam o modelo ‘’saudita’’: estar contra o poder politico é igual a estar contra Deus.

Isto já se passou em 2014, no Iraque-Síria, onde o ‘’Estado Islâmico’’ estabeleceu um califado e o líder atual da Al-Qaeda, Ayman Al Zawahiri o declarou como regime apostata. E por sua parte, o ‘’Estado Islâmico’’ declarou que todos os grupos que não reconhecem a seu chefe como califa dos muçulmanos eram apostatas.

Já podemos ver claramente com este exemplo concreto, a capacidade de subversão infinita que representa o wahabismo: um grupo neo-wahabita se estabelece como poder politico, então é declarado como ‘’heterodoxo’’ por outro grupo mais ‘’puro’’ (leia-se, mais extremista). Existe um mecanismo similar em outras filosofias politicas, não necessariamente religiosas, como o marxismo ou o anarquismo, onde a tendencia da tendencia se forma uma atrás da outra, sempre reclamando uma ortodoxia mais pura que a anterior.

Deve-se notar também a utilidade de tais grupos para os diversos poderes políticos regionais: podem assim demonizar todo tipo de oposição a seus regimes, como Bashar al-Assad na Síria e al-Maliki no Iraque, que associam de maneira sistemática toda rebelião contra eles com os ditos grupos, embora só representem uma minoria dentro da oposição. O que se iniciou no Iraque e na Síria como uma série de manifestações populares pacificas contra as injustiças, se radicalizou muito rapidamente por causa das terríveis repressões de Nur al-Maliki e Bashar al-Assad, esta radicalização das massas sunitas beneficiou tanto o ‘’Estado Islâmico’’ como a estes poderes.

Dante Ibrahim Matta, 2015

(versão revisada em 2016)

Estudante de teologia islâmica

Fonte e bibliografias do texto em: https://www.sunnismo.com/islam-y-los-fanaacuteticos-1-origen-ideologiacuteca-y-trayectoria-histoacuterica-por-dante-ibrahim-matta.html

 
 

 

 

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